Séries: Tragédia da Boate Kiss é revista em duas séries dolorosas que visam lançar luz sobre um caso que precisa ser discutido

texto de Renan Guerra

27 de janeiro de 2013, um incêndio em uma boate na cidade de Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, deixa 242 mortos e 636 feridos. A tragédia da Boate Kiss, provocada por uma série de falhas humanas, é ainda uma dor latente para as famílias envolvidas e os sobreviventes daquela noite, especialmente pelo fato de que o processo judicial em torno do caso segue aberto – o processo mais recente sobre o caso acabou anulado em segunda instância e até o momento segue uma incógnita. Com os 10 anos desse acontecimento trágico é natural que se retorne ao caso de diferentes maneiras, por isso mesmo chegou recentemente ao streaming duas séries com abordagens distintas do caso.

Todo Dia a Mesma Noite” (2023) é uma série ficcional da Netflix baseada no excelente livro “Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss” (2018), da jornalista Daniela Arbex, adaptada por Gustavo Lipsztein e dirigida por Júlia Rezende e Carol Minêm. Com um recorte muito específico sobre um grupo de famílias, a série ficcional reconta em seus capítulos iniciais a noite da tragédia e depois perpassa a dor do luto e as batalhas judiciais que as famílias e os sobreviventes enfrentaram nos anos seguintes. “Todo Dia a Mesma Noite” enfoca de forma direta a passagem em que familiares das vítimas foram processados pelo Ministério Público gaúcho e também trata da criação da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, mas, em seus cinco capítulos, não chega a acompanhar o processo judicial do caso, realizado entre 2021 e 2022.

Cena de “Todo Dia a Mesma Noite”, disponível na Netflix

Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria” (2023), série documental da Globoplay, é dirigida por Marcelo Canellas, jornalista gaúcho formado na Universidade Federal de Santa Maria e que acompanhou de perto as histórias de familiares e sobreviventes da tragédia da Kiss nos últimos 10 anos. A série de cinco episódios relembra o caso, passa pela cobertura realizada na época e apresenta um grupo de personagens, entre pais de vítimas, sobreviventes e advogados envolvidos no caso. O foco principal aqui é acompanhar o julgamento que foi realizado em Porto Alegre, em 2021. Entre cenas do processo e entrevistas com familiares, o público é levado por diferentes passagens que remontam os fatores que geraram a tragédia, bem como acompanha outras histórias de tragédias semelhantes, como o caso da boate República Cromañón, em Buenos Aires, em 2004 (comentado aqui no Scream & Yell).

São duas abordagens bastante distintas, mas com um denominador comum: ambas visam reacender a luz sobre um caso que segue em uma celeuma judicial, com uma busca incessante desses familiares e sobreviventes por justiça, bem como pela perspectiva de que casos assim não voltem a acontecer. É uma história extremamente dolorosa e complexa e, claro, gera reações diversas no público. A criação de uma série ficcional em torno do caso foi vista por uma parcela do público como algo “exploratório”, que apenas visa remexer nessa dor de forma a gerar lucro. É uma perspectiva de se enxergar esse tipo de produção, mas, querendo ou não, as nossas tragédias acabam sendo motores de reverberação na cultura e esse tipo de obra auxilia na construção de memória e, ao seu modo, de justiça. Do holocausto ao ataque às Torres Gêmeas, tudo se tornou material de obras de ficção que reverberam essas dores e nos ajudam a tangenciar o tamanho dessas feridas.

Óbvio que ambas são obras culturais e têm coisas boas e coisas ruins, afinal há filmes bons e filmes ruins. No caso de “Todo Dia a Mesma Noite”, da Netflix, o material base de Daniela Arbex já era forte e potente, mas além disso há um cuidado que merece ser destacado na produção da série. Ela obviamente é muito triste, porque é uma história horrível, mas em nenhum momento a série é desrespeitosa ou exploratória de uma violência gráfica e direta. Nesse sentido, a realidade pode ser bem mais dura e “Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria”, do Globoplay, traz relatos e entrevistas extremamente diretas e fortes, que são de embrulhar o estômago. São perspectivas de olhar para uma mesma história. A série ficcional tem o seu ponto alto na delicadeza da construção dos personagens, tanto que as atuações de Paulo Gorgulho e Bianca Byington, por exemplo, são louváveis, uma vez que eles conseguem nos transmitir – em olhares, gestos e movimentos – essa dor imensurável de uma forma quase palpável,.

As histórias contadas em “Todo Dia a Mesma Noite” foram aprovadas pelos personagens reais que as inspiraram. São pessoas que já haviam participado do livro de Daniela Arbex e que fazem parte da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. Essa associação está envolvida na produção das duas séries e acredita que esse tipo de produção pode auxiliar o movimento deles em busca de justiça e talvez uma maior celeridade no andamento do processo. Mas, óbvio, são muitas pessoas atingidas pela tragédia, entre familiares de vítimas e outros sobreviventes, tanto que um grupo de pais que não integra a Associação mostrou desconforto com a produção da série ficcional e veio a público dizer que entraria com um processo contra a Netflix – não sabemos como isso vai se desenrolar, de todo modo, é algo plausível quando estamos falando de uma história real e extremamente dolorosa.

Cena de “Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria”, disponível no Globoplay

O fato é que as duas séries, tanto a de ficção quanto a documental, são produções sérias e bem amarradas, que conseguem, a sua maneira, trazer um panorama da tragédia da Boate Kiss e de seus desdobramentos. É óbvio que esse tipo de produção causa incômodo – e essa é realmente uma das intenções, não é? Ninguém produz uma série sobre uma tragédia para trazer calmaria, mas sim pra reavivar esses incômodos e trazer movimentos necessários de ação. Além disso, não é um produto para todos os públicos, é óbvio que deve ser evitado por pessoas mais sensíveis ou com outras questões pessoais. De todo modo, é inegável que esse tipo de produção precisa existir. Fingir que isso não aconteceu por um dito “respeito às vítimas e familiares” é uma forma de esquecimento desse caso e é, obviamente, algo que as famílias não querem e lutam contra.

É muito doloroso e extremamente complexo, mas o fato é que precisamos aprender a lidar com as nossas tragédias de forma mais madura. Apagamento e silenciamento não podem ser formas de lidar com o luto. Reavivar essas histórias é também uma forma de rever o quanto o nosso judiciário é falho e o quanto os sistemas políticos brasileiros não dão suporte às famílias e aos sobreviventes de tragédias nacionais. São feridas que ainda estão abertas e não podemos fechar os olhos para elas, por mais difícil que seja.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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