Ao vivo: 8ª edição da Mostra Cantautores cria espaços intimistas de celebração da canção durante três dias em Belo Horizonte

texto por Renan Guerra
fotos de Alexandre Biciati e Lucca Mezzacappa

“Como é bom poder tocar um instrumento”, canta Caetano Veloso em “Tigresa”, faixa do álbum “Bicho”, de 1977. Um instrumento, uma voz e um mar de canções: é nessa possibilidade mínima que a Mostra Cantautores – cuja oitava edição aconteceu de 02 a 04 de dezembro – cria um espaço de celebração da música e de aproximação da criação artística com seu público. Surgida em 2011 em Belo Horizonte dos esforços dos mineiros Jennifer Souza e Luiz Gabriel Lopes (aka Luizga), a mostra recebeu desde então mais de 100 nomes em shows que buscam manter essa verve intimista. Após enfrentar um hiato de quatro anos, por uma conjunção de fatores, dentre eles a própria dificuldade de se produzir cultura em meio aos desmontes do setor no país, a mostra voltou ao calendário num clima de reencontro e, por isso mesmo, optou por teatros menores que deixavam o público mais próximo dos artistas. E a ideia é realmente criar essa conexão de intimidade, por isso no palco só o artista e seus instrumentos, sem banda, sem coro, sem outras distrações, só as canções nuas e um artista em diálogo aberto com os ouvintes.

Da esquerda para a direita: Luiz Gabriel Lopes e Jennifer Souza; John Ulhoa e Fernanda Takai (acima); os CDs da Mostra; Gabriela Amorim e Renan Guerra (abaixo). Fotos de Lucca Mezzacappa (inclusive a de abertura)

Durante três dias, o evento passou por dois teatros, o Teatro de Bolso, no Centro Cultural Sesiminas, e o Galpão Cine Horto, espaço da companhia de teatro Grupo Galpão, nome fundamental da cultura mineira. Por esses dois palcos se alternaram Josyara (BA), Davi Fonseca (MG), Igor de Carvalho (PE), Jasmin Godoy (HOL/MG), Bruno Berle (AL), Letícia Fialho (DF), Badi Assad (SP) e Maurício Tizumba (MG) num line-up que visava apresentar a diversidade de autores e criadores, mesclando nomes mais jovens, como Jasmin Godoy que deve lançar seu disco de estreia em 2023, e artistas consagrados, como Badi Assad e Maurício Tizumba.

Antes de contarmos um pouco do que rolou em cada show é interessante falar sobre a formatação da mostra: os shows são separados por sessões e o público compra ingressos para o show de seu interesse, o que gera um fluxo de pessoas entre as apresentações, aquela espécie de encontro entre quem chega e quem sai – e entre aqueles que ficam para todas as apresentações. Além disso, o festival também conta com momentos de diálogo e debate sobre a criação artística e o mercado de música, abrindo espaço para um olhar amplo sobre a música e o fazer criativo. Para quem teve a oportunidade de vivenciar o festival por inteiro, é uma imersão num universo musical distinto, algo diferente daquela energia esfuziante de um grande festival – e a gente sabe bem o quanto isso é bom, vivemos isso recentemente no Primavera Sound SP –. Na Mostra Cantautores, a experiência é mais aconchegante. É como se fôssemos abraçados por essas canções, a emoção se encontra naquele silêncio compartilhado no escuro do teatro, nas trocas de se sentir tão pertinho do artista, de ficar ali ouvindo histórias e conhecendo um pouco mais de cada música.

Fotos de Alexandre Biciati

Esse tipo de experiência é cada vez mais rara, ainda mais na escala imersiva em que acontece a Mostra Cantautores, por isso é uma experiência que vale ser vivenciada por quem ama música. Dito isso, vamos contar abaixo um pouco sobre como foram esses três dias da 8ª Mostra Cantautores, aproveite:

Sexta-feira, 02/12

Josyara / Foto de Alexandre Biciati

Josyara
Diretamente da Bahia, Josyara foi a artista responsável por abrir os trabalhos da edição 2022 da Mostra Cantautores. Acompanhada de sua guitarra, ela apresentou faixas de seu disco de estreia, “Mansa Fúria” (2018), e de seu mais recente trabalho “ÀdeusdarÁ” (2022) – disco sobre o qual ela já conversou aqui com o Scream & Yell. Sozinha em cena, é interessante como Josyara consegue navegar entre os polos distintos da delicadeza e da força descomunal, e isso se ressalta no uso que ela faz da guitarra, conseguindo extrair dor e cuidado de um instrumento tão cheio de fúria. Para além de seu repertório, que inclui pérolas como “Apreciação”, “Rota de Colisão” e “ladoAlado”, Josyara também inseriu em seu setlist uma homenagem para Gal Costa cantando a canção “Volta”, em momento de sublime delicadeza. Uma abertura que já deu o tom de que as coisas seriam em alta classe nessa mostra.


Davi Fonseca / Foto de Alexandre Biciati

Davi Fonseca
Pianista, compositor e arranjador, Davi Fonseca é natural de Minas Gerais e seu som navega por caminhos aparentemente mais densos, com referências que bebem do jazz e de uma tradição mais formal. No palco, ele apresenta em grande parte as canções de seu disco de estreia “Piramba”, de 2019. Mesclando jazz e a tradição da música popular brasileira, o show de Fonseca ganha outras nuances com sua voz forte, em canções belas e íntimas, mas é curioso como tudo é adensado por sua fala sedutora que, ao melhor estilo mineiro, sabe contar histórias e causos como ninguém, entremeando o show de momentos de leveza e riso. Tudo é costurado por suas canções que almejam esse espaço mais sinestésico do som e é interessante se deixar levar por seu piano. Um grande show e um artista a se ficar atento!


Sábado, 03/12

Igor de Carvalho / Foto de Alexandre Biciati

Igor de Carvalho
Natural de Recife, Igor de Carvalho é um artista jovem e extremamente prolífico. Sua relação com a palavra é muito clara e é interessante como isso se materializa em canções caudalosas, verborrágicas, que às vezes parecem um trem desembocado. De todo modo, é esse tom entre o canto e a fala que conquista um público diverso. Na plateia de seu show, uma cena chama atenção: uma família de avó, mãe e filha, todas reunidas na primeira fileira; a mãe completamente embasbacada com o show e a filha a mergulhar naquele mesmo êxtase da mãe; uma cena curiosa, mas que chamou a atenção pela beleza do momento. Igor de Carvalho passeou por diferentes fases de sua carreira, cantando canções como “Absurdo ser Normal”, “Suporto Perder” e “Tá Tudo Aqui Dentro”, e conseguiu criar conexões mesmo com aqueles seus ouvintes mais recentes, mostrando a proximidade que um palco pequeno de teatro e um violão podem trazer.


Jasmin Godoy / Foto de Alexandre Biciati

Jasmin Godoy
A aposta dessa edição, Jasmin Godoy é uma artista natural da Holanda, mas que tem suas raízes familiares em Minas Gerais. Seu primeiro disco, “Show Me The Way”, será lançado em 2023. No palco da Mostra Cantautores ela apresentou um pouco dessas canções inéditas e é muito curioso o que foi visto ali, pois um show de canções novas nem sempre é a coisa mais envolvente e atrativa, mas Jasmin conseguiu puxar aquele público. E isso prova muito da abertura daquelas pessoas reunidas no teatro, pois as canções de Jasmin não são necessariamente pop e acessíveis – e, além disso, são em sua grande maioria cantadas em inglês. Ela gosta de definir que faz “landscape songs”, canções emotivas, melancólicas, sobre cenas e cenários bastante pessoais à compositora, algo que remete a diferentes nomes, como as cantoras de alt-pop dos anos 90, a alguns universos de PJ Harvey e Aimee Mann, num resultado curioso. Mesclando entre a guitarra e o violão, e medindo certa dose de nervosismo e timidez, Jasmin Godoy se provou uma aposta certeira e fica agora a curiosidade para ouvir seu disco de estreia.


Bruno Berle / Foto de Alexandre Biciati

Bruno Berle
Natural de Alagoas, Bruno Berle é dono de um dos grandes discos de 2022, “No Reino dos Afetos”, lançado pela Far Out Recordings. De todo modo, é curiosa a multiplicidade de Bruno: é como se existisse o disco, que é uma coisa, o show dele com seu parceiro Batata Boy, que é uma segunda coisa, mais pras bandas da música eletrônica, e o seu show voz e violão, que é uma terceira coisa. Na Mostra, ele apresentou essa sua versão diminuta. De presença lânguida e com uma leveza invejável, Berle consegue cativar quando entoa canções como “Até Meu Violão” e “O Nome do Meu Amor”. E é interessante como ele se conecta de forma bastante íntima com seus pares geracionais, na hora de apresentar cada parceiro musical, ele gostava de destacar o estado de origem deles, criando essa sensação de espaço-tempo de sua turma. Enfim, Bruno é um artista a se acompanhar em todas as suas nuances. E, se você não ouviu, ouça “No Reino dos Afetos”!


Domingo, 04/12

Leticia Fialho / Foto de Lucca Mezzacappa

Letícia Fialho
O terceiro dia foi aberto com a presença de Letícia Fialho, vinda direto de Brasília. Acompanhada de uma guitarra, Fialho passeou pelo repertório de seu álbum de estreia, “Maravilha Marginal” (2018), bem como por alguns de seus EPs, como “Carta de Fogo” (2021). De caráter pop, a MPB da artista se conversa com diferentes cenários, ecoando as canções brasilienses, dialogando com as cantoras da geração dos anos 90 e ainda apontando para a Música Preta Brasileira – como diria Sandra de Sá. Fialho, além de uma compositora com olhar extremamente interessante sobre o mundo, é também uma boa contadora de histórias e seu show é entremeado por pequenas reflexões, por histórias de sua carreira e por diálogos com a audiência, que, aliás, abraçou seu show de forma calorosa sabendo cantar muitas das canções de cabo a rabo, mostrando a verve pop do trabalho de Fialho.

Badi Assad / Foto de Lucca Mezzacappa

Badi Assad
Natural de São Paulo, Badi Assad é uma artista de carreira longeva e complexa, com diferentes frentes e projetos, Para a Mostra Cantautores, Badi montou um show realmente focado no seu universo de compositora. Com 19 discos lançados, ela levou ao palco uma viagem por seu repertório, passando desde seus momentos mais pop e MPB até chegar em suas canções mais experimentais, sem deixar de lado seu projeto infantil. Tudo isso funcionou de forma bastante coesa e o que se sobressai é a virtuose da artista, tanto em sua relação com a guitarra quanto em seu uso absurdo da voz. Vê-la ao vivo, com uma guitarra, e a fazer sons inúmeros com a voz, nos faz ter a sensação de uma banda completa no palco, é algo surpreendente e que seduz a plateia. Além disso, é interessante como Badi Assad costura suas histórias nas canções e consegue criar um show que possui uma narrativa interessante e envolvente.


Mauricio Tizumba / Foto de Alexandre Biciati

Maurício Tizumba
Instrumentista, cantor, compositor, ator e empreendedor cultural, Maurício Tizumba é uma figura fundamental na cultura de Minas Gerais desde os anos 70. Com forte relação com o congado mineiro, Tizumba é um artista conectado com a história da cultura negra mineira e consegue levar isso para o palco com inteligência, talento e um bom humor cativante. De voz forte e com um domínio encantador dos múltiplos instrumentos que ele leva ao palco, Tizumba mescla canções religiosas de matriz afro, canções típicas do congado e canções pop ao estilo da MPB radiofônica, tudo de forma coesa e bem amarrada. Sagaz e aberto à resposta do público, o artista carrega a clássica figura mineira do contador de histórias – e de causos e algumas mentiras também. Seu show é um espetáculo que vai além das canções, mesclando toda a sua teatralidade a favor da música, criando uma colcha de retalhos de força pungente, que emociona na mesma medida que faz rir. Maurício Tizumba é daquelas artistas que emanam força e luz no palco e isso é único demais. Um fechamento luxuoso pra essa Mostra Cantautores. E que a 9ª edição não tarde!

Mauricio Tizumba / Foto de Alexandre Biciati

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com Monkeybuzz e Revista Balaclava. Alexandre Biciati é fotógrafo: www.alexandrebiciati.com

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