Entrevista: João Bittencourt e Fabiano Passos falam do livro “Paternagem Punk: Ensaios sobre criação em três acordes”

entrevista por Bruno Lisboa

“Enquanto a paternidade compreende uma relação construída entre um homem e uma criança pelo fato do primeiro ter ‘cedido’ seus espermatozoides e/ou ter registrado em cartório a sua filiação paterna, a paternagem é uma relação de afeto e responsabilidade construída entre um pai e uma criança a partir de um processo. Ou seja, paternagem é um exercício, não uma condição dada. Sob essa perspectiva, um indivíduo pode ser pai (biológico) e não exercer a paternagem. Do mesmo modo, uma pessoa pode estar engajada em uma criação ativa e não ser o progenitor”, explica João Bittencourt, um dos organizadores (ao lado de Fabiano Passos) do livro “Paternagem Punk: Ensaios sobre criação em três acordes” (2022), que relata experiências de paternagem de pais com envolvimento na cena hardcore / punk nacional.

Com prefácio escrito por Ruy Fernando (No Violence), o livro tem 17 textos feitos por pais ligados a cultura punk, entre eles, Rodrigo Lima (Dead Fish), Shamil Carlos (Horace Green), Sandro (Ex-Mukeka Di Rato) e Rodrigo Rosa (Parental Advisory). A publicação é uma colaboração de três editoras independentes – Revelia Livros, Edições Analógicas e Estopim – e foi concretizada no melhor esquema “faça você mesmo”.

Os textos que compõem “Paternagem Punk” abordam uma gama variada de temas de cunho universal que vão desde críticas pontuais ao consumismo, da chegada do bebê a “entrada no mundo adulto”, educação emancipatória, crítica da criação autoritária, o pai trabalhador e seus dilemas, crítica da masculinidade tóxica, paternidade solo, aprendizado dos limites e da liberdade, medo de ser pai, conflitos geracionais entre outros. Na entrevista abaixo, Fabiano Passos e João Bittencourt falam sobre o processo de criação da obra, inspirações, a distinção entre paternidade e paternagem, conflitos geracionais, o exercício transformador da paternagem, a inserção dos filhos na cultura punk, a recepção do livro em esferas para além do punk, projetos futuros e muito mais. Leia abaixo.

Primeiramente gostaria de parabenizar a iniciativa de trazer um tema tão importante à tona! Mas de imediato eu gostaria de saber mais sobre a gênese do projeto: como se deu o processo de seleção dos convidados e dos textos publicados?
Fabiano: Assim como a ideia do livro, a seleção dos convidados e temas dos textos surgiram de forma bem natural durante um bate-papo no Whatsapp no grupo Paternagem Punk. Na época que a ideia da publicação surgiu, o grupo tinha uns 30 pais punks participando e todos os presentes foram convidados a escrever, uns 15 deles se comprometeram a participar, sendo que somente um dos autores do livro foi convidado e não fazia parte do grupo até então. Deixamos também a temática e o formato do texto para livre escolha de cada autor, cada um escreveu sobre o tema com o qual tinha mais afinidade e da forma na qual se sentia mais à vontade. Acredito que, por isso, a diversidade dos temas abordados no livro surgiu de forma natural também.

No mercado editorial brasileiro existem parcos exemplos de livros sobre paternidade que tenham a música (em especial o punk) como ponto de referência. Me lembro aqui somente de “Papai punk” do Jim Lindberg (vocalista do Pennywise). Nesse sentido, quais foram as inspirações (literárias ou não) que nortearam a obra?
João: Realmente, além do livro do Jim Lindberg, o nosso é o único a tratar especificamente da relação entre paternidade e punk. É difícil falar de inspirações porque o livro é uma produção coletiva. Posso afirmar que, para mim, as maiores inspirações vieram do documentário “The Other F* World” (2011), que retrata o cotidiano de alguns pais punks bastante conhecidos no cenário internacional como o próprio Jim (Pennywise), Fat Mike (Nofx), Flea (Fear/ RHCP), Mark Hoppus (Blink), Lars Frederiksen (Rancid) entre outros. Uma outra fonte de inspiração veio do livro “Tranny: Confesssions of Punk Rock’s Most Infamous Anarchist Sellout”, escrito por Laura Jane Grace (Against Me). Apesar de não tratar especificamente da relação entre pais e filhos, fiquei muito sensibilizado e comovido com o processo de transição de gênero narrado por Laura e como isso impactou a relação dela com sua filha. Alguns livros mais acadêmicos também me ajudaram a refletir sobre a produção da masculinidade e a relação desta com as dinâmicas de cuidado e criação: “Masculinities” (R. Connel), “O mito da masculinidade” (Sócrates Nolasco) e “Beyond Patriarchy” (M. Kaufman) são alguns desses títulos. Porém, reforço que essas foram as minhas inspirações particulares.

Um dos eixos centrais do livro é fazer um paralelo entre o que é paternidade e paternagem. Como é um tema desconhecido de muitos gostaria que vocês abordassem quais são as características de cada um.
João: Essa foi uma questão que o Fabiano trouxe para o coletivo, uma vez que o grupo se chamava anteriormente paternidade punk. Ele destacou a importância de pensarmos a relação entre pais e filhos(as) como um vínculo muito mais abrangente, que não se limita às dimensões jurídica e/ou biológica. Enquanto a paternidade compreende uma relação construída entre um homem e uma criança pelo fato do primeiro ter “cedido” seus espermatozoides e/ou ter registrado em cartório a sua filiação paterna, a paternagem é uma relação de afeto e responsabilidade construída entre um pai e uma criança a partir de um processo. Ou seja, paternagem é um exercício, não uma condição dada. Sob essa perspectiva, um indivíduo pode ser pai (biológico) e não exercer a paternagem. Do mesmo modo, uma pessoa pode estar engajada em uma criação ativa e não ser o progenitor.

João Bittencourt é um dos organizadores do livro

Outro ponto interessante da obra é a linguagem simples de cada texto que trata de temas complexos a partir de situações individuais, mas que conseguem soar de maneira universal e tocante. Como foi o processo de criação dos textos de vocês em especial? Vocês pensaram nesses pontos de forma intencional ou isso ocorreu de maneira natural?
Fabiano: Somos pais e somos punks, então por mais que esse livro tenha um viés muito importante para nós, que é o do pensamento punk, alguns temas gerais da paternidade irão tocar outros pais e mães que não necessariamente estejam envolvidos nessa cena. Meu texto em particular tem um formato bem confessional e eu nunca tinha escrito algo no estilo, então fui escrevendo-o à medida que as ideias e os parágrafos iam surgindo, e depois fui arrumando de uma forma que aquilo fizesse sentido. Meu texto é um relato de sentimentos que me acometem constantemente desde o momento em que soube que me tornaria pai e esses temas também já estiveram presentes em muitas conversas na minha terapia. O interessante é que somente esses dias, relendo o meu texto depois do livro impresso, percebi que eu quis escrever um texto sobre amadurecimento no meu processo de ser pai e escrevi também um texto sobre o amadurecimento no meu processo de ser filho.

João: Os temas foram sugeridos pelos papais autores, não houve interferência minha e do Fabiano. A nossa única exigência é que fosse escolhida uma canção que traduzisse um pouco o sentimento despejado no texto. Cada um falou de suas experiências particulares, daquilo que lhe afetava de forma mais intensa. Como as experiências individuais são também coletivas, pois somos seres sociais que compartilhamos um mesmo repertório simbólico, a identificação com as histórias é inevitável. Certamente nossa relação com o punk também influenciou de maneira significativa o processo de escrita dos artigos, temas como autoridade/autoritarismo, educação libertária e a crítica das diferentes formas de opressão tiveram um lugar de destaque na coletânea. O meu texto especificamente trata do tema da autoridade, ou melhor, da maneira como muitos pais lidam com essa questão. Me interessei pelo tema devido ao lugar que a discussão ocupa no punk e não porque tive uma infância/juventude repleta de cobranças e regras inegociáveis. Para ser bem sincero, nunca precisei confrontar a autoridade de meu pai ou da minha mãe de uma forma mais contundente porque havia uma relação de confiança mútua, por exemplo, tive passe livre para pintar cabelo, usar piercing e fazer tatuagem, atitudes vistas como disruptoras e que intensificam conflitos entre pais e filhos(as). Não significa dizer que eles gostavam ou achavam bonito, mas, que eles entendiam que isso não mudaria o fato de eu ser um filho carinhoso e consciente de minhas obrigações.

O conflito geracional relacionado a criação é outro tema que permeia grande parte dos textos que compõem a coletânea. Para vocês quem foram as pessoas ou elementos centrais que fizeram com que vocês vissem o exercício da paternidade de forma diferente?
Fabiano: O meu pai sempre foi do estilo provedor no sentido financeiro, presente fisicamente, mas um pouco afastado emocionalmente. Então, por mais que eu não tivesse diretamente um modelo de paternidade que fosse considerado ruim pela maioria das pessoas, para mim aquilo nunca foi suficiente. Eu sempre fui um cara mais sentimental, que sentia falta de conversar sobre sentimentos com o pai, de ter mais apoio emocional em alguns momentos, por isso eu sempre pensei em fazer diferente quando fosse pai. Infelizmente durante a minha vida, ao meu redor durante um bom tempo, eu tive mais exemplos de pai que eu não queria ser, do que do que eu gostaria de ser.

João: Como já expus anteriormente, no meu caso, não houve situações específicas no contexto familiar que influenciaram diretamente as minhas percepções sobre paternidade, digo, no sentido de me inspirar a querer fazer diferente. Meu pai foi um excelente modelo para mim, ele nunca levantou a mão para um filho ou utilizou um discurso agressivo com intuito de intimidar e amedrontar. Sempre foi muito carinhoso, mesmo sendo um homem de poucas palavras. Acredito que essa vontade de querer fazer diferente foi muito mais influenciada pela minha relação com o punk, pelo aprendizado com amigas mulheres e pelo contato com uma literatura política, especialmente, sobre gênero e feminismo. Afinal de contas, como é possível se dizer punk em um sentido político e deixar para sua companheira ou companheiro o peso das responsabilidades domésticas e da criação de um filho?

Para aqueles que encaram a paternagem de forma plena é comum ouvir que a vida foi transformada de maneira imensurável. Para vocês o quão impactante tem sido ver a criação sob esse viés? E por que vocês acham que, apesar de tantas mudanças e avanços, a paternidade ainda é encarada de forma tradicional e retrógada?
João: Realmente é algo transformador. É até difícil de explicar por que é uma mistura de sentimentos diversos, que vai do amor exagerado ao sofrimento de não estar agindo da forma adequada, sendo o pai que essa pessoinha merece. Eu tenho aprendido muito todos os dias, sobre empatia, sobre respeito, sobre paciência, sobre cuidado…é uma escola para toda a vida. Acredito que a defesa de uma paternidade conservadora em nossos dias, apesar de mudanças significativas nas percepções sobre os papéis de gênero, compreende um movimento de manutenção do status quo masculino. Homens aprendem desde cedo que devem ser cuidados, especialmente por mulheres, entendem que estas devem servi-los, sejam mães, avós, esposas ou amigas. Defender esse modelo conservador é uma indicação de que eles percebem a autonomia feminina como uma ameaça à monopolização de seus privilégios.

Fabiano Passos também ajudou a organizar o livro

O punk é algo que nos define e é natural pensar que transmitiremos nossos ideais para nossas crias. Nesse sentido, como tem sido a inserção da molecada nessa cultura?
Fabiano: Por aqui a inserção ainda tá acontecendo de forma lenta, Fábio gosta de ouvir minha banda e já foi em alguns shows antes da pandemia e agora com a retomada dos eventos já consegui levar em um show meu. Quero que as coisas ocorram de forma natural com ele, por isso apresento as coisas para ele e vou tentando identificar o que mais agrada ele. Atualmente ele tem mostrado uma maior afeição por hip hop do que por rock em geral.

João: É tudo muito tranquilo. Nunca forcei nada em relação a gostos e preferências, mas claro, ouço música punk a todo instante e vivo com camisetas de bandas, então, acabo influenciando diretamente. Ela já sabe reconhecer os logotipos, e gosta de algumas, especialmente Ramones. Ela também é muito crítica e contestadora, questiona padrões e odeia o Bolsonaro (risos). Estou bem orgulhoso!

Tenho acompanhado as postagens no Instagram do livro e acho interessante o fato de que ele tenha chegado para um público maior que, por muitas vezes, não tem uma relação direta com o punk. Isso era algo que vocês esperavam? Como tem sido o feedback que vocês têm recebido?
João: Penso que o feedback sobre o livro está sendo melhor do que esperávamos, especialmente por “furar a bolha”. A boa aceitação, a meu ver, possui relação com o fato de falarmos sobre experiências e situações que qualquer pessoa que é pai ou mãe já vivenciou ou está vivenciando. É muito gratificante ver pessoas de diferentes partes do país marcando os autores no Instagram, dizendo que se identificaram profundamente com os textos, que se emocionaram. Isso mostra que de alguma forma conseguimos acessar esses indivíduos, e principalmente, afetá-los com nossas reflexões.

A primeira edição esgotou de forma rápida antes mesmo de uma divulgação plena do livro e vocês já estão vendendo a segunda impressão. Nesse sentido quais são os planos futuros? Um volume 2 está nos planos?
Fabiano: Não Somos Amazon, a gente sempre fala isso entre nós, somos três editoras novas e pequenas (Analógica, Estopim e Revelia), tocadas por três pais com outros compromissos financeiros, de trabalho e familiares, por isso estamos fazendo pequenas tiragens do livro à medida que ele vai sendo vendido. Em setembro começamos a divulgação efetiva do livro com os eventos de lançamento em algumas cidades e envio do livro para divulgação em locais, mídias e perfis específicos e a resposta tem sido muito positiva. A gente já tá pensando em um segundo volume, mas não sei dizer ainda para quando isso será possível, pois acho que ainda temos muitos lugares para chegar com o primeiro livro, mas, já pode ir pensando no tema do seu texto viu Bruno?

Por fim, num mundo onde a paternagem se torne, assim espero, algo comum qual será o legado a ser deixado para gerações futuras?
Fabiano: Acho que o principal legado seria o de transformar a paternagem em um tema recorrente de forma leve nas rodas de conversa de todos os homens, sejam eles punks ou não.

–  Bruno Lisboa  escreve no Scream & Yell desde 2014. 

2 thoughts on “Entrevista: João Bittencourt e Fabiano Passos falam do livro “Paternagem Punk: Ensaios sobre criação em três acordes”

  1. Ideia simples e genial. Estamos sendo diariamente ameaçados por essa visão de mundo bolsonarista. Todos os esforços são válidos para impedir isso. Penso que apostar nas novas gerações é um dos caminhos.parabens.

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