Entrevista: O cineasta José Araripe Jr. fala sobre cordel e a série “No País da Poesia Popular”, disponível no CineBrasilTV

entrevista por João Paulo Barreto

Existe uma sensação de pertencimento que abraça o espectador que assiste aos episódios de “No País da Poesia Popular” (2022), série idealizada pelo poeta, escritor e compositor Bráulio Tavares, e pelo cineasta José Araripe Jr, que assume a empreitada da direção dos 13 capítulos desta primeira temporada exibida no canal de TV por assinatura CineBrasilTV. A citada sensação de pertencimento, aliás, abraça não somente aqueles que têm a sorte e o privilégio de terem nascido no Nordeste e reconhecem o patrimônio cultural impulsionado por sua região, mas, também, a todos os brasileiros atentos à existência desses tesouros que ilustram tal patrimônio.

Na sua construção, a pesquisa de Tavares, que apresenta a série, em paralelo à direção de Araripe, traz à audiência um aprofundamento didático dos diversos significados de expressões artísticas como o cordel, a xilogravura, a cantoria, o folheto, o repente, a contação e, claro, a poesia. O resultado, ao final de cada episódio de 30 minutos, dá ao público uma ideia do quão intensa e valorosa é tal cultura, bem como nos abre as portas para tornar tal abraço de pertencimento ainda mais caloroso quando nos permitimos ir além da série, buscando conhecer mais e mais seus temas.

Vale frisar que o adjetivo “didático” utilizado aqui não surge de maneira a classificar como entediante ou enfadonho o modo como Araripe e Tavares optaram por construir a estrutura narrativa dos episódios. O diretor explica: “Antes de tudo, eu quis fazer uma obra de legado didático. Porque as pessoas fogem dessa coisa do didático. Julgam o didático chato. Não! O didático é uma obrigação que nós temos com a cultura. Principalmente de fazer uma viagem. Então, a partir daí, a minha linguagem era um ‘on the road’. Eu tento fazer uma ‘contação’ a partir do movimento. Importante viajar. Importante mostrar que aquilo acontece em muitos lugares e em uma velocidade que eles vivem “, pontua Araripe.

Nessa estrutura ‘on the road’, 17 cidades brasileiras foram visitadas e diversas fontes entrevistadas. Pessoas da velha guarda, como o músico Bule-Bule, além de nomes mais contemporâneos, como o poeta Lirinha e o cantor e compositor Lenine, são destaque nas entrevistas capitaneadas por Araripe. Em cada um dos 13 episódios dessa primeira temporada (a segunda já está confirmada), um tema diferente dentro das várias possibilidades do cordel, do repente, da cantoria, dentre outras abordagens dessa expressão que vai do social ao humor, passando pela fantasia, pela ficção científica e pelo romântico. Trata-se de um mergulho profundo nas várias nuances da poesia.

Na riqueza de suas fontes, a série adentra no Brasil fazendo jus ao seu nome que, de modo preciso, o define como o país da poesia popular. A poesia que se mostra de várias formas, com diversos alcances e cunhos sociais, com seu viés crítico e politizado, mas, acima de tudo, soberana como poesia, como frisa o diretor José Araripe Jr. “O cordel é extremamente ligado à crítica social. Você vai encontrar em todos os gêneros que a gente apresenta uma preocupação sempre muito forte de se analisar e se criticar a realidade. Então, independente do lugar onde aquele cordel seja produzido, seja na capital do país ou em uma pequena cidade do interior da Paraíba, você vai encontrar o poeta preocupado em descrever a realidade de forma direta,” explica o diretor. Nos vários tipos de cordel, diversas camadas dessa interpretação em seu cunho social se fazem presentes. Mas a soberania poética é a prioridade dentre todas essas camadas.

“É como uma pessoa que está antenada nas questões urgentes do dia a dia, mas, também, traz uma bagagem de entender que a cultura se transforma. Para essa pessoa, é mais fácil não ser radical. Mais fácil ter mais camadas. Com essas camadas, o trabalho pode ficar mais consistente. Porque coloca-se todas as camadas. Tem a camada crítica, tem a camada mais histórica. Antes de tudo, a poesia tem que ser soberana. A poesia não pode ser apenas um instrumento para discurso. Porque quando é um instrumento só para discurso, ela perde força, ela se esvazia”, alerta Araripe.

Poeta, escritor, tradutor e compositor, Bráulio Tavares demonstra em sua pesquisa para No “País da Poesia Popular” um domínio valoroso dessa cultura. Natural de Campina Grande, na Paraíba, ele é o nosso guia pelas viagens tanto pelas cidades do nordeste, quanto por Rio e São Paulo, locais que a série também visitou. Conhecendo as possibilidades e alcance da poesia pelo Brasil, a série consegue construir pontes que denotam a força da união de sua arte. Para Araripe, amigo de Bráulio desde os anos 1970, quando ambos apresentavam Teatro de Cordel no Vila Velha (conhecido palco localizado no Centro de Salvador), “No País da Poesia Popular” serve como uma homenagem fraterna ao poeta.

“Esse projeto nasce de um desejo que eu tinha, de uma admiração muito grande e um respeito por Bráulio Tavares. É uma espécie de homenagem que eu tento fazer a um mestre. Esse grande intelectual brasileiro. Um dos maiores artistas que existem no Brasil. Apesar dele ser um grande roteirista de filmes, de programas de TV e de ser um parceiro de grandes músicos brasileiros, ele é, antes de tudo, um profundo conhecedor dessa cultura que ele conhece pé no chão na cidade de Campina Grande, onde nasceu, um centro incrível onde isso acontece naturalmente. Essa obra, então, é para sagrar a inteligência desse gênio. Isso é para entregar ao mundo a força e o talento desse cara. Esse mensageiro da poesia popular”, explica Araripe.

A série tem novos episódios sempre aos domingos, 22h30, no CineBrasilTV (www.cinebrasil.tv). Reprises acontecem durante a semana. Para o Scream & Yell, o cineasta José Araripe Jr. concedeu essa entrevista aprofundando o tema e o modo de construção de “No País da Poesia Popular”. Leia abaixo!

Lembro-me de, há dois anos, conversar com Antonio Nóbrega sobre “Brincante”, filme de Walter Carvalho, sobre o aspecto lúdico das obras oriundas da poesia e das cantorias. Ele, inclusive, é uma das fontes entrevistas na série “No País da Poesia” Para você, como esse aspecto se relaciona com o cordel?
O lúdico está ligado principalmente a essa capacidade da oralidade. A cantoria, a literatura de cordel, a “contação” de romance, tudo que tem uma base na métrica e na rima, tudo isso tende a ser lúdico. Porque é feito para entreter. É feito para chamar atenção. Exige a concentração de quem está assistindo. E existe processos de sedução. Então, essa musicalidade da oralidade termina sendo oferecida como ritmo, também. Não somente o conteúdo. A forma, a maneira de narrar ou de contar, com a ajuda da pulsação da rima, por assim dizer, acaba oferecendo à leitura de um folheto uma musicalidade que não depende do violão. Já a cantoria depende de um ritmo que está ligado a um gênero. Esse gênero pode ser o baião ou um martelo agalopado, ou outro tipo de ritmos, como o martelo alagoano, por exemplo. Então, existe, sim, uma tradição da oralidade. Muitos dizem que o cordel chega ao Brasil pelos portugueses e espanhóis. Mas também há quem afirme com muito mais assertividade que se trata de uma tradição vinda dos árabes, dos judeus. Na segunda temporada da série, inclusive, vamos explorar essa variedade de formas de poesia rimada que tem no mundo inteiro.

“No País da Poesia” nasce de uma pesquisa feita pelo escritor, poeta e compositor, Bráulio Tavares. Como foi levar o seu olhar de diretor para traduzir esse estudo de Bráulio?
Eu e Bráulio nos conhecemos há muitos anos. Fizemos teatro de cordel no Teatro Vila Velha (tradicional teatro localizado no centro de Salvador) no final dos anos 1970 com João Augusto Azevedo. No Teatro Vila Velha, havia um núcleo forte com Bemvindo Sequeira, Harildo Deda, Sonia dos Humildes. Grandes veteranos. E nós éramos os jovens. E nos uníamos àquilo para fazer o teatro de cordel tanto no palco como na rua. E eram todos baseados em folhetos. O folheto pode ser o de 16 páginas ou o de 32 páginas, sendo que, normalmente, o de 32 é o romance. Tem um monte de tipo. E é justamente o que dá origem aos 13 episódios. Cada episódio da série é sobre um tipo de cordel. O cordel é considerado a poesia da bancada. Aquilo que é escrito e que o poeta tem um tempo para fazer. Diferente da cantoria, onde ela é improvisada a partir de um mote do público. Agora, a poesia de cordel, apesar de ser considerada nos meios literários mais da elite como uma literatura mais vulgar, ela é extremamente rígida em suas formas e suas regras. Você tem as sextihas, as septilhas, os decassilabos. E é tudo com muita matemática, digamos assim. Então, nasce de um desejo que eu tinha, de uma admiração muito grande e um respeito por Bráulio Tavares. Essa série, na verdade, é uma espécie de homenagem que tento fazer a um mestre. Esse grande intelectual brasileiro. Um dos maiores artistas que existem no Brasil. Nascido em Campina Grande, um artista que tem essa bagagem orgânica. Essa não é a minha bagagem orgânica. Apesar de eu ser filho de cearense, não é a minha bagagem. Mas é a bagagem orgânica de Bráulio Tavares. E ele dedica boa parte da sua vida intelectual a isso. Apesar de ser um intelectual que traduz ficção científica, um dos maiores autores da ficção científica, alguém premiado internacionalmente. Apesar de ele ser um grande roteirista de filmes, de programas de TV e de ser um parceiro de grandes músicos brasileiros, de ter belas canções gravadas por grandes músicos brasileiros, ele é, antes de tudo, um profundo conhecedor dessa cultura que ele conhece pé no chão na cidade de Campina Grande, onde nasceu, um centro incrível onde isso acontece naturalmente. Essa obra, então, é para sagrar a inteligência de um gênio brasileiro. Isso é para entregar ao mundo a força, a inteligência e o talento desse cara. Esse mensageiro da poesia popular.

Bule-Bule e José Araripe Jr. / Foto de Lis Schwabacher

Percebo na estrutura do documentário que você buscou não ceder tanto ao formato “talking heads”, trazendo inserções musicais e autores de cordel com seus trabalhos. Como se deras essas escolhas?
Antes de tudo, eu quis fazer uma obra de legado didático. Porque as pessoas fogem dessa coisa do didático. Julgam o didático chato. Não! O didático é uma obrigação que nós temos com a Cultura. Principalmente de fazer uma viagem. Então, a partir daí, a minha linguagem era um “on the road”, certo? Eu tento fazer uma “contação” a partir do movimento. Importante viajar. Importante mostrar que aquilo acontece em muitos lugares e em uma velocidade que eles vivem. Elem vivem viajando. A vida deles, a profissão deles, só funciona se eles viajarem. É assim desde o tempo da antiguidade, porque eles precisam levar as notícias. Eles precisam contar as histórias. Eles precisam ouvir e ver novas histórias. E isso se faz com o pé na estrada. Então, essa construção do personagem que é Bráulio, que vai viajando por aqueles lugares com a mala, a mala do folheteiro, que é um símbolo do vendedor de folheto, são modos diferentes. O folheteiro viaja para vender o trabalho que, às vezes, pode ser dele, mas, também, pode ser de muitos outros poetas. Uma espécie de livreiro. Às vezes, é livreiro e editor, mas ele vai para vender o trabalho de muitos poetas. Já o cantador, ele vai, normalmente com uma dupla, para vender o próprio trabalho. Então, há uma diferença aí. Mas as estruturas, vamos dizer, dos versos, é praticamente a mesma. É aquilo que relativo à métrica e à rima, às silabas, tudo isso obedecendo a uma cultura muito rígida.

Vocês selecionaram uma lista grande de pessoas para participar como fontes entrevistadas. Como foi esse processo?
Essa pesquisa foi um trabalho de Bráulio. Eu acrescento durante o processo, mas esse tracking da pesquisa é dele. Porque o que me interessava como diretor era levar o mundo de Bráulio, esse fantástico mundo de Bráulio, para o espectador. E assim, o meu papel foi de tentar tirar o máximo dele, o máximo de indicações possíveis. Tanto os clássicos, porque você vai encontrar poetas de 80, 90 anos, poetisas que já estão próximas aos 100 anos. Você vai encontrar jovens que estão renovando o ambiente. E não só o ambiente do cordel, mas o ambiente da cantoria. Você vai encontrar artistas famosos, como Lirinha, como Lenine. Poetas que já faleceram, mas que de alguma forma continuam sendo trabalhados por seus filhos, como o baiano Rodolfo Coelho Cavalvante. Seu filho, Ismoca (Isaias Cavalvante), que também já é um ancião, leva aquilo adiante. Você vai encontrar um Bule-Bule, que é um ícone da nossa Bahia, e um cantador dos mais queridos no Brasil. Não tem um lugar que a gente chegue que alguém não pergunte: “Cadê Bule-Bule?” Quer dizer, ele acabou sendo um ícone. É um ícone tanto pela qualidade quanto pela forma com a qual ele cria sua arte. Você vai encontrar, também, muitas mulheres importantes fazendo literatura de cordel. Você vai encontrar muitos jovens que transitam entre os quadrinhos, as ilustrações, e o cordel. Entre a xilogravura e o cordel. Porque há uma tradição que a gente não esqueceu nessa série que é o encontro entre cantoria, cordel e xilogravura. É o momento em que a xilogravura passa a se popularizar no Brasil a partir da capa do cordel. Se não fosse a capa do cordel, a xilogravura não tinha ganho no Brasil o status de arte contemporânea que tem hoje, de arte que frequenta museus. Temos a presença do maior de todos, J. Borges. Nós fomos até Bezerros, em Pernambuco, para entrevistá-lo em seu estúdio. Ele também é cordelista. Porque tem essa coisa do Lenine, por exemplo, que só tem a obra que tem, hoje, e ele fala isso na entrevista, porque ele e um grupo de jovens bebiam na literatura de cordel. Então, faltou muita gente importante? Faltou. Muito que a gente não conseguiu, na verdade. Não tinha agenda. Um exemplo foi o Moraes Moreira, que é um cordelista recente. Ele, nos últimos anos de sua vida, assumiu um lado cordelista. Mas não conseguimos marcar com ele uma entrevista.

Braulio Tavares / Foto: Divulgação

Sim. Na ocasião de sua morte, lembro-me de ter lido sobre sua experiência nesse campo.
Exatamente. Moraes Moreira tinha esse lado. Enfim, nós vamos, também, encontrar editores jovens. Um cara que a partir do cordel, montou uma editora. E eles vendem muito cordel porque há um decreto que foi da época do governo Lula que transformou a literatura de cordel em patrimônio imaterial. E aí foi aberto, via Ministério da Educação, a demanda de cordel na sala de aula. Então, o cara faz um livro de cordel com uma tiragem de 100 mil exemplares. Acaba vendendo muito mais do que um gênio da literatura que tenha ganhado o prêmio Jabuti, por exemplo. Inclusive, o prêmio Jabuti já premia cordel, também. O próprio Bráulio já ganhou o Jabuti. Você vai encontrar Klévisson Viana e Arievaldo Viana, que são dois irmãos do Ceará. Também são desenhistas de quadrinhos. Tem também o Stélio Torquato, que é um professor que se dedica a adaptar clássicos da literatura universal. Inclusive, clássicos da literatura infantil. Já existem mais de 70 títulos com esse tipo de adaptação. A adaptação passou a ser, inclusive, uma coisa muito exigida pela própria escola ou pelas editoras. Tem adaptações da obra de Shakespeare em cordel. Existe cordel com 18 mil estrofes. Uma obra de cordel com 18 mil estrofes! É um mundo tão incrível que vamos fazer uma segunda temporada porque chegamos à conclusão que não demos conta da metade. Que não fomos justos com muitas pessoas importantes. E a migração também é uma questão muito ligada à nossa série. Porque o cordel faz com que as pessoas migrem. Nós fomos para Rio e São Paulo. Poderia soar estranho: “Pô, vocês foram para Rio e São Paulo?” Sim. Fomos para Rio e São Paulo. Visitamos 17 cidades brasileiras. Queríamos ter ido para mais, mas por uma questão de orçamento, foram 17 cidades. E você vai encontrar no Rio, além da feira de São Cristovão, lá conhecida como a Feira do Paraíba, e, também, como Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Ali é um universo onde a cantoria e o cordel existem como unidade. Pessoas que se encontram todos os dias. No Rio, está, também, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Depois nós fomos a São Paulo, onde você tem dezenas de personagens fazendo a literatura de cordel se tornar popular de diversas formas. A gente encontrou o Lirinha lá em São Paulo, e ele faz uma conexão muito interessante com essa coisa dos movimentos novos que começam a surgir. Não conseguimos captar bem, mas vamos fazer isso na segunda temporada, quando abordaremos o slam. É um movimento de poesia cantada das mulheres. A questão do rap e do coco (popular ritmo musical do Norte e do Nordeste brasileiros). A questão do ritmo e da poesia que apesar de não ter as regras rígidas, mas é muito parecida com o coco, que é muito popular no Nordeste e também em São Paulo. Isso foi um universo que nessa primeira temporada não conseguimos captar como gostaríamos, mas pretendemos abordar em uma segunda temporada.

Na sua opinião, qual a importância do cordel enquanto expressão de influência crítica social e política para o povo brasileiro?
O cordel é extremamente ligado à crítica social. Você vai encontrar em todos os gêneros que a gente apresenta uma preocupação sempre muito forte de se analisar e se criticar a realidade. Então, independente do lugar onde aquele cordel seja produzido, seja na capital do país ou em uma pequena cidade do interior da Paraíba, você vai encontrar o poeta preocupado em descrever a realidade de forma direta que é quando ele faz o Jornal do Sertão, como o cordel é conhecido. Por muito tempo, as pessoas não tinham acesso ao jornal e o folheto vendia 40, 50 mil unidades em 3, 4 dias em uma capital como Recife. Cada folheto daquele ia para o interior levado por uma pessoa. Chegava no lugar onde as pessoas não sabiam ler. E alguém lia aquilo que seria a versão popular de fatos como a chegada homem na lua, o tri campeonato, o assassinato de Kennedy, a morte de Getulio Vargas, ou seja, o papel do cordel como um instrumento de análise da realidade, da informação. E da crítica, da sátira. No humor do cordel, você já vai encontrar o tempo inteiro a forma provocativa de jogar sal nas feridas da sociedade. Principalmente uma sociedade quase feudal, patriarcal. Uma sociedade ainda oligárquica na maioria do sertão. E aquilo é um instrumento de luta. Às vezes, até circulando de uma que forma que deixa de circular no papel. Alguém lê em uma reunião e um membro da família normalmente se encarrega de decorar aquilo, que passa de geração para geração sem existir o papel, só contado por pessoas que muitas vezes nem sabem ler. Não tiveram a oportunidade de aprender. As gerações mais atuais, principalmente as mulheres, elas também estão fazendo do cordel as trincheiras de suas lutas, que são urgentes, que resgatam o tempo em que elas nem podiam escrever cordel. Nós temos um episódio que fala sobre a mulher no cordel e a gente vai ficar sabendo que o primeiro cordel escrito por uma mulher no Brasil, a autora assinou como se fosse um homem. E que não é incomum isso no mundo inteiro, nós fizemos uma pesquisa e vimos que vários lugares na Inglaterra, na França, em vários lugares, muitas mulheres escreviam sob um pseudônimo masculino, porque a sociedade e as editoras não vinham aquilo como algo pudesse atrair, que pudesse ser respeitado. E o feminismo está muito presente nesse cordel mais contemporâneo produzido pelas mulheres. Assim como tem mulheres, já senhoras, que fazem um mix das duas coisas. Ao mesmo tempo em que elas estão antenadas com as lutas contemporâneas, elas, também, são mensageiras da cultura do cordel no sentido mais amplo. Por exemplo, o cordel de fantasia, que é um cordel muito presente. O cordel que conta o sobrenatural, por exemplo. Aquele que conta as grandes façanhas dos guerreiros e personagens épicos, libertadores. É como se fosse, digamos, uma pessoa da minha idade que está antenada nas questões urgentes do dia a dia, mas, também, traz uma bagagem de entender que a cultura se transforma. Então, para a gente, é mais fácil não ser radical. Mais fácil ter mais camadas, e com essas camadas, o nosso trabalho pode ficar mais consistente. Porque a gente bota todas as camadas. Tem a camada crítica, tem a camada mais histórica. Antes de tudo, a poesia tem que ser soberana. A poesia não pode ser apenas um instrumento para discurso. Porque quando ela é um instrumento só para discurso, ela perde força, ela se esvazia. Assim como o cinema, também. Isso é uma coisa que eu penso desde a adolescência. Aquela coisa do panfleto. Tem muita gente hoje fazendo filme só com a preocupação de atender às agendas. E aí se perde a força que o cinema proporciona enquanto poesia, enquanto delírio, enquanto fantasia. Todos nós somos seres ideológicos, politizados. Então, a obra não precisa ser um panfleto explícito. A obra tem que trazer nos seus personagens essas grandes questões sociais, esses conflitos. Tentar ver nos personagens, e não exatamente na obra, para que aquilo não pareça que foi feito para dar conta de uma apenas coisa, de um panfleto.

Lenine / Foto: Divulgação

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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