Entrevista: José Miguel Wisnik lança “Vão” afirmando a vida e o desejo de beleza

entrevista por Bruno Lisboa

Músico, ensaísta, professor sênior de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, pai. Essas são algumas das diversas funções / associações que podem ser feitas a José Miguel Wisnik. Na música, Wisnik debutou com “José Miguel Wisnik”, um trabalho independente em 1992. De lá para cá vieram “São Paulo Rio” (2000), “Pérolas aos Poucos” (2003), “Indivisível” (2011) e “Ná e Zé” (2015, com a cantora Ná Ozzetti), trabalhos que oscilam entre o erudito e o popular.

Como escritor e ensaísta estão entre as suas principais publicações “O Som e o Sentido” (1989), “Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil” (2008) e “Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração” (2018). Autor premiado, José recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (1978), o Troféu Noel Rosa como compositor revelação (1989), o prêmio do Festival de Gramado (1989), o prêmio da APCA (1991, 1993 e 1995), o prêmio do Festival de Cinema do Ceará (2001) e o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional (2019).

Agora em 2022 ele retorna com um novo trabalho discográfico, “Vão”, um álbum belíssimo que traz à tona a beleza da vida, mesmo em meio ao caos inerente a esses dias incertos. Mônica Salmaso, Arnaldo Antunes, Luiz Tatit, Paulo Neves, Sophia Chablau, integrantes da banda BaianaSystem (Junix, Seko e Japa System), Celso Sim, Carlos Rennó foram alguns dos artistas que contribuíram para o resultado.

Em entrevista concedida por e-mail, Wisnik fala sobre suas origens musicais, sua relação com área acadêmica, intenções alimentadas com o novo disco, a importância do posicionamento político, participações especiais, os desafios de produzir um álbum à distância, o exercício da paternidade e a influência artística na carreira dos filhos, planos futuros e muito mais. Leia abaixo!

Primeiramente eu gostaria de fazer um elogio direcionado a sua musicalidade. É interessante observar como você consegue atingir algo que imagino que não seja fácil: transitar entre o erudito e o popular. Nesse sentido, como se deu a sua formação enquanto musicista e como se deu o processo de construção desta relação?
Muito obrigado, Bruno. A minha formação foi, de fato, feita toda nesse trânsito. Dos sete aos vinte anos estudei piano clássico. Queria ser pianista de concerto e estava me encaminhando para isso. Aos 17 anos toquei como solista de concerto com a orquestra sinfônica do Theatro Municipal o Concerto n. 2 de Saint-Säens. Mas a vida de pianista clássico não combinava pra mim com o mundo que a canção popular e a universidade me apresentavam àquela altura, em 1967 e 68. Foi uma crise muito grande quanto aos caminhos a seguir. Me vi perdido por um bom tempo, mas acabou prevalecendo o fato de que esse trânsito é muito brasileiro, que Tom Jobim já passara por ele na música e Vinícius de Moraes na poesia.

Sua versatilidade transcende, inclusive, o universo da música indo ao encontro da área acadêmica como professor e escritor. Como se deu a sua relação com estas áreas e de que maneira elas se relacionam com a música? São elementos que se interrelacionam ou são conflitantes?
Entrei no curso de Letras da USP querendo ser músico e escritor, e saí professor de literatura. As coisas eram conflitantes pra mim, naquela época. Achei que ser músico exigia se dedicar exclusivamente à música e que, portanto, eu não tinha o direito de ser músico. Com o tempo vi que as coisas são mais fluidas. Não só pra mim. Chico Buarque é compositor e romancista, Caetano Veloso é compositor e ensaísta, Arnaldo Antunes, Cacaso, Wally Salomão, Alice Ruiz, são poetas do livro e da canção, Antonio Cícero também, além de filósofo etc. Essa acaba sendo uma característica da cultura brasileira. Acabei juntando isso com o trabalho diário de professor, que eu amo, e que é o terceiro vértice do triângulo.

“Vão” soa, para mim, como um registro belíssimo que traz à tona a beleza da vida, mesmo em meio ao caos do contemporâneo. Para além desta temática quais as intenções você alimentou para com esse novo disco?
A principal é essa que você mesmo disse, afirmação da vida e desejo de beleza, que as canções podem nos trazer, mesmo com o estado de coisas no mundo. Mas não quis lançar o disco sem que ele se referisse de alguma forma ao pesadelo do negacionismo, das fake news, da necropolítica, do neojaguncismo do desgoverno atual no Brasil (como acontece na faixa “Chorou e Riu”). Ou do estado de mercantilização generalizada do mundo, quase sem vão para que se respire fora disso (“Estranha religião”).

Em entrevistas recentes você tem apontado as agruras do Brasil recente que vê se esfacelando, diariamente, áreas fundamentais ligadas a pesquisa acadêmica e a cultura. Em tempos tenebrosos como os nossos qual a importância da classe artística se posicionar? Você acredita que este seja um exercício obrigatório?
É mais do que um exercício. Artista se posiciona sempre, queira ou não, no modo como exercita a linguagem. Falo do posicionamento artístico enquanto tal, não da temática política, necessariamente. A música transpira modos de se relacionar com a vida, com os outros, com o mundo. E não precisaria mais que isso. Mas, em tempos tenebrosos, é preciso mais, é preciso se posicionar politicamente, explicitamente.

Seus discos costumam ser projetos de criação coletiva. Para o álbum mais recente, por exemplo, você reuniu um time diversificado de artistas – Mônica Salmaso, Arnaldo Antunes, Luiz Tatit, Paulo Neves, Sophia Chablau, integrantes da banda BaianaSystem, Celso Sim, Carlos Rennó. Como se dá o processo de escolha de convidados? Como eles contribuem para o processo criativo como um todo?
Sim, cada uma dessas pessoas citadas é um artista singular que representa, ao mesmo tempo, uma linhagem cultural. Eu sou muito das parcerias, das trocas. Acho que a arte é o espaço das poligamias. Os integrantes do Baiana System, por exemplo, Junix (guitarra), Seko (baixo) e Japa System (percussão), trouxeram algo da vibração da “Reza Forte” para “Estranha Religião”. Na mesma faixa, Sophia Chablau é a voz jovem com a personalidade de quem tem uma banda roqueira própria, Carina Iglecias traz a vibração do Teatro Oficina e a maravilhosa Ilessi, no coro de “Chorou e Riu”, a voz negra do Rio de Janeiro. Celso Sim é um parceiro de longa data em shows meus, e nos conhecemos também no Oficina. Monica Salmaso e Ná Ozzetti são grandes cantoras profundamente paulistas. Ná tem um apego especial à questão ambiental, e está não por acaso em “O Jequitibá”; Monica é uma voz que dá uma profundidade toda sua ao lirismo político de “Chorou e Riu”, que, além disso, dialoga com a bossa nova. Assim também os parceiros que você citou, cada um é um e tem sua marca, mas o processo criativo como um todo vem sim da interação dessas forças diferentes, com uma resultante coletiva.

O disco foi produzido parcialmente ao longo de dois anos, em meio a pandemia. Nesse sentido, quais foram os desafios de seguir produzindo nesse período? Produzir e gravar à distância trouxe novos aprendizados?
Atualmente ficou muito comum gravar à distância, com músicos que estão em outras cidades e têm seus próprios estúdios. O produtor de “Vão”, Alê Siqueira, mora em Portugal, e trabalhou de lá, sem problemas. As distâncias e o isolamento trouxeram restrições, principalmente, é claro, para a realização de shows, mas expandiram os modos de interação à distância.

Como você já adiantou acima, “Vão” foi produzido por Alê Siquiera, produtor que, assim como você, tem transitado entre a erudito e a popular. Como se deu a aproximação entre vocês e quais as contribuições ele traz ao seu fazer artístico?
Essa já é uma longa história. Conheci Alê Siqueira quando ele era ainda bem garoto (tem a idade do meu filho mais velho) e nos entendemos imediatamente. Ele também transita entre o erudito e o popular e conhece profundamente as mais diferentes linguagens musicais, além de se dar muito bem com os músicos mais diversos. Nossa parceria começou com a trilha de “Parabelo” (1997), feita para o Grupo Corpo. Para o grupo mineiro fizemos também “Onqotô” (2005) e “Sem Mim” (2011). Além dos meus discos, temos a glória de ter feito juntos “Do Cóccix ao Pescoço” (2002), que trouxe Ela Soares de volta à cena contemporânea, e “O Anel” (2020), que abriu a maravilhosa temporada de homenagens a Alaíde Costa.

Seus filhos (Marina e Guilherme Wisnik) também contribuíram musicalmente no novo disco. Não é de hoje que eles, assim como você, jogam, usando um jargão do futebol, “nas 11” atuando em várias frentes artísticas. Então como pai que sou (de duas crianças) e que gosta de abordar o universo da paternidade pergunto: como se deu a sua influência para que eles seguissem esse caminho? Foi algo natural ou foi necessário algum tipo de “intervenção” (risos)?
Foi totalmente natural. Faço parte de uma geração em que, especialmente entre músicos, a colaboração com os filhos é muito grande. A canção popular brasileira foi a base da criação deles, em casa. Além do Teatro Oficina. Marina tem duas parcerias comigo, no disco, “Roma” e “Avesso Vão”, que ela mesma canta, além de participar cantando em outras faixas. Guilherme é parceiro em “Estranha Religião”, com uma letra na qual está encapsulada muita conversa entre nós.

Seu primeiro disco comemora 30 anos agora em 2022. De lá pra cá sua discografia perpassou por trilhas e álbuns solos. Olhando em retrospecto, você já imaginava o momento em que você está agora na sua carreira?
Não, não me imaginava por antecipação. Minha vida foi sempre a de ir tocando: tocando piano e tocando projetos.

Por fim, sua nova turnê começa agora em agosto. Como serão essas apresentações? Quais são os planos futuros?
Até aqui a prioridade era lançar o álbum e fazer o show de lançamento, com o privilégio ainda de ter o clipe para “O Jequitibá”, todo com fotos especialmente feitas por Bob Wolfenson e montadas e dirigidas pelo coletivo Bijari (convido todo mundo para assistir logo abaixo). Agora estamos no vão do mundo, menos com planos futuros prontos do que prontos para o presente, como diz a última música do show: “eu quero simplesmente / te dar um presente”.

–  Bruno Lisboa  escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Bob Wolfenson.

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