Entrevista: Nobat fala sobre “MESTIÇO”, um disco para reconectar raízes

entrevista por Bruno Lisboa

Natural de Belo Horizonte, Nobat é um artista que completa em 2022 uma década de bons serviços prestados à música. Em constante evolução, o artista promove, dos primeiros EPs passando pelos álbuns “O Novato” e “Estação Cidade Baixa”, um exercício instigante de transformação sonora e poética.

Vivendo o que talvez seja a melhor fase de sua carreira, Nobat acaba de lançar o ambicioso “MESTIÇO” (Under Discos), um álbum que promove uma ode a esperança, característica necessária para os tempos tenebrosos como estamos vivendo, envolvida entre a ancestralidade de ritmos africanos que convivem em plena harmonia com a música latina e a brasileira.

Com produção de Barral Lima, o disco foi gravado no estúdio Ultra Music em BH e mixado / masterizado por Fernando Sanches, no lendário estúdio paulistano El Rocha. Conta, ainda, com a colaboração de 20 musicistas, e participações especiais de, entre outros, BNegão, Elza Soares (em uma das últimas gravações feitas por ela antes de falecer), Di Souza. Lulis e Mariana Cavanellas.

Em entrevista concedida por e-mail, Nobat fala sobre as intenções alimentadas com o novo disco, sua relação com a africanidade, participações especiais, a parceria com Di Souza (do bloco Então Brilha!), a importância de se manter a esperança de novos tempos viva, mercado independente, planos futuros e muito mais. Leia abaixo:

Num exercício inevitável de comparação, “MESTIÇO” mostra, a meu ver, um novo Nobat. O seu interesse e pesquisa com os ritmos de matriz africana seguem ali presentes, mas com uma roupagem ainda mais pop e ensolarada. Nesse sentido, quais são as suas intenções com o novo trabalho?
Compus esse disco num momento muito difícil pra mim e pra muitas pessoas que botam fé no Brasil, apesar da sua história fundada pela violência, pela violação, pela invasão. Era 2018 e o crescimento da onda conservadora se confirmava nas eleições daquele ano levando aos mais altos cargos do poder público os representantes mais legítimos do racismo, da LGBTQIA+fobia, da misoginia, do negacionismo e de tudo que desmente o Brasil no qual acredito, que é um Brasil que reconhece a complexidade da sua história, a necessidade das reparações sociais que nunca foram feitas da maneira justa e séria para que possamos tentar recuperar o mínimo de dignidade enquanto povo, enquanto possibilidade de nação. Acredito num Brasil que percebe em sua ancestralidade negra e indígena, que são a base estrutural da nossa riquíssima cultura, a chave para um nosso futuro. Um Brasil que celebra sua principal vocação: a diversidade. É uma coisa que podemos e devemos entregar como lição ao mundo. Compus músicas para celebrar esse Brasil que idealizei, que poderia ter sido e nunca foi, através de sua música que a gente sabe de onde vem. Foi uma forma de salvar pra mim esse Brasil possível, me reconectar às minhas raízes e também oferecer às pessoas que estavam por perto um pouco de coragem, de força, de descanso, de energia.

Ainda abordando a questão ligada a africanidade, como se deu a relação com esse universo? E como, a partir da africanidade, você encontrou seu fazer artístico?
Este é um álbum que celebra a nossa música e conta um pouco da minha história. A música brasileira, na tradição da MPB e dos ritmos populares, é essencialmente negra e indígena, com contribuições da música portuguesa, árabe e de outros lugares do mundo. Por essa razão, é nítida essa presença africana no álbum, como também é forte a presença latina e nordestina. Foi uma forma de celebrar minhas raízes e de estabelecer uma conexão mais profunda com meu próprio universo e minha identidade. Essa musicalidade percorre meu corpo com muita naturalidade, me senti muito à vontade para desenvolver minha autoralidade neste terreno, nada foi muito racional, a elaboração veio depois que fizemos tudo e revelou muita coisa, mas ao longo do processo, da composição das canções à construção dos arranjos, tudo se deu com muita fluidez.

O álbum reúne um time diversificado de feats que impressiona pela diversidade. Como se deu o convite para esse grande time e quais as contribuições foram trazidas desde o esboço inicial ao resultado final?
O álbum conta com a contribuição de mais de 20 músicos e musicistas das mais diversas gerações, sotaques, estilos e esse era um desejo essencial do projeto. Se eu vou me dedicar a celebrar a música brasileira e nossa cultura, impossível fazê-lo de outra forma. Nós somos um povo diverso e é por essa razão que nossa cultura é tão rica e tão potente. Algumas ideias de colaborações surgiram desde a composição nua e crua, como foi o caso da Elza em “Me Deixa Sambar”: quando terminei de escrever a canção, imediatamente pensei nela. Foi um longo trajeto até chegarmos ao “sim” que a rainha me deu, que foi uma benção cósmica, mas ela sempre esteve ali. Já a Mariana Cavanellas por exemplo, que participa na faixa “Aqueles Homens”, entrou aos 45 minutos do segundo tempo, depois que o disco já estava fechado, inclusive. Mari é uma pessoa e artista com quem me conectei fortemente por volta de 2018, ela foi uma das primeiras pessoas a ouvir a canção. Sempre tive imenso respeito por ela como artista e vê-la se emocionar por esta música me emocionou também, dali nasceu a vontade de convidá-la pra essa parceria, porém os caminhos da vida nos levaram à lugares diferentes, veio a pandemia, eu me mudei de cidade, ela se tornou mãe e nós nos afastamos. Nos reconectamos no seu aniversário em maio deste ano e o desejo de tê-la comigo nessa canção foi reacendido. Convidei ela em uma chamada de vídeo e em menos de uma semana estávamos em estúdio e em set, reabrindo a máster do disco para encaixar a voz dela e realizando uma viagem que só a arte é capaz de realizar. Lulis que é minha companheira participou de todos os meus trabalhos autorais, BNegão é um grande e querido parceiro com quem sempre quis me conectar, alguns músicos e musicistas que se somaram ao projeto como Marlon Sette foram fruto do que percebíamos de potência conforme os arranjos iam chegando. Foi tudo muito natural e diverso.

No disco anterior, “Estação Cidade Baixa”, você já tinha evidenciado como manifestações culturais de BH (como o carnaval local) o transformaram pessoalmente. Nesse sentido, acredito que a faixa “Fortaleza” (parceria com o bloco carnavalesco Então, Brilha!) soe como uma canção sobre autoafirmação e o amor, mas, também, seja uma forma de prestar homenagem a festa popular que cresceu de maneira exponencial nos últimos smod por aqui. Como foi o processo de composição dessa faixa?
Quando me perguntam sobre o que está acontecendo em Belo Horizonte eu sempre respondo: é resultado de uma nova cidade que ressurgiu a partir de movimentos como a Praia da Estação, o carnaval de rua e de luta de BH e o Duelo de MCs. Se a gente observar com carinho, tudo que está ultrapassando as fronteiras das montanhas de Minas são filhotinhos destes acontecimentos monumentais que tive a chance de presenciar, reverenciar e viver. O Então, Brilha! pra mim, que amo carnaval, é um acontecimento delirante, a alegoria utópica, a potência de acender as luzes das pessoas. De alguma forma, este disco bebe das mesmas fontes e se encontra com o bloco em lugares básicos e conceituais, do Maiakóvsky à Caetano. Curiosamente o último carnaval que participei, em 2020, foi o mais marcante e bonito de todos, em cima do trilho do Brilha, foi fascinante, trabalhei junto com eles em alguns carnavais. Quando compus essa faixa, escrevi a letra em homenagem a um querido amigo, Marcelo Diniz, poeta, parceiro de composição de “Cárcere”, que naquele momento estava se mudando para Fortaleza (CE). Fiz essa canção pra desejar força, coragem e pra que ele nunca se esquecesse da pessoa gigante que ele é. Pra que, naquele momento em que ele estaria longe dos amigos, dos amores, da família, não deixasse que ninguém reduzisse sua luz. Uma espécie de que nosso amor próprio é nossa grande fortaleza, mas ao mesmo tempo uma brincadeira com o fato de agora esse amor estaria na capital do Ceará. É uma música sobre acender a luz, sobre brilhar, naturalmente o Então, Brilha! veio à minha mente, assim como o Di Souza, um baita compositor que pra mim expressa a grandeza da arte nas mais amplas beiradas. É uma artista sensível e uma pessoa compromissada com questões muito caras pro nosso tempo, que incentiva reflexões fundamentais nas pessoas que estão por perto. Foi uma belíssima parceria.

Outra faixa que chama atenção é “Jovem” que funciona, de maneira pontual, como um guia de sobrevivência para a juventude contemporânea. Qual a importância de transmitir essa mensagem em tempos turbulentos como os nossos? E ainda: como o jovem Nobat de outrora vê o cenário de hoje?
Sempre digo nos shows que essa faixa é dedicada a jovens de todas as idades. Até porque, pra mim, a juventude é um estado de espírito acima de qualquer coisa. Ninguém neste país é mais jovem que Tom Zé. E a faixa é outra composição feita em homenagem a um amigo querido que estava passando por um momento muito difícil. Um cara da maior grandeza tendo sua cabeça abaixada à força pelas injustiças desse mundo que muitas vezes fazem a gente desacreditar de quem somos, da potência que carregamos e do mundo de coisas que podemos fazer. Acabou se tornando uma mensagem a todas as pessoas que estão passando por momentos difíceis, que perdem a crença de que é possível mudar a rota, mudar o rumo, fazer diferente. Temos tempo, temos força, amanhã é sempre um novo dia e as coisas podem melhorar. Isso deve ser lembrado, das mais diversas formas, nas mais diversas vozes, porque se a gente não botar fé, existe um lado sombrio da sociedade, que vive da exploração das luzes, da usurpação da força da vida, da força de trabalho, da terra, que vence. É necessário reafirmar a esperança como quem reabastece a importância da luta, mas como diz Sérgio Pererê: a gente luta é pra ter paz, ninguém quer viver lutando. O cenário hoje é difícil demais, principalmente pras pessoas jovens, sensíveis, novas ou velhas. Principalmente pras pessoas negras, trans, pras mulheres, mas citando Kastrup, estamos num ponto de mutação importante, é o fim de uma era, o declínio de um modelo e todo declínio é tenebroso, horripilante, pois é também um momento de reconstrução das referências, dos caminhos. Vivemos muitas consequências dessa reformulação social, inclusive existem já novas enfermidades sociais advindas da perda de referência, do colapso, da dificuldade do indivíduo se reconhecer no social pelo desmoronamento que estamos vivendo dos modelos antigos. Ao mesmo tempo, concomitantemente, novas ideias vão brotando e aos poucos se estabelecendo. Estamos vivendo o começo de um novo mundo. É por ele que devemos lutar. É por ele que vale a pena gastar a onde e botar fé. É pelo futuro. A juventude precisa morar em alguma ideia de futuro, em alguma utopia de um mundo melhor, em algum sonho.

“MESTIÇO” é um álbum que soa ainda mais amplo musicalmente graças a um grande time de músicos de apoio, que ajudaram a criar uma amálgama rítmica que se destaca. Para tanto, como foi o processo de composição do disco? Quais foram os desafios (e prazeres) reunir um grande elenco para registrar cada faixa?
O último compromisso que tive antes de entrar em isolamento social foi a gravação das guias (voz e violão) do álbum em meados de março de 2020. Tive que deixar ali todas as ideias, as expectativas e levar pra casa muito medo, angústia, frustração, mas como eu não gosto de passar muito tempo nesses sentimentos, resolvi ressignificar as coisas e propus ao produtor musical do álbum, Barral Lima, que na época estava isolado no Rio de Janeiro, que fizéssemos alguns estudos e experimentos à distância pra encontrar o caminho estético do disco e amadurecer nossa visão sobre o trabalho até que fosse possível voltar ao estúdio. Fizemos alguns arranjos eletronicamente e fomos lapidando elemento por elemento, usando o tempo a nosso favor. Conforme as músicas iam ganhando forma, pensávamos na banda: essa faixa é a cara deste baterista, isso aqui tem que ser feito por aquela percussionista, que tal convidar aquela pessoa pra esse piano. Dessa forma, a primeira metade do disco foi sendo construída e em agosto de 2020 conseguimos entrar ao estúdio pra gravar pista a pista as quatro primeiras faixas (“Mestiço”, “Menina Erê”, “Jovem” e “Me Deixa Sambar”). Naquela altura, já tínhamos um pouco mais de noção do que estava acontecendo, já sabíamos nos cuidar de certa maneira, mas ainda assim havia medo e fomos muito cuidadosos, o que trouxe certa estranheza no primeiro momento, mas foi rolando. Quando entrou setembro, a situação da pandemia já estava bem mais controlada se comparada aos estágios anteriores, daí foi possível dar um novo passo: fazer algumas faixas ao vivo pra esquentar e tornar mais orgânico o trabalho. Pra isso fizemos um primeiro teste em “Aqueles Homens” com Débora Costa na percussão, Richard Neves no piano, Barral Lima no synth bass e eu na voz e violão. Arranjamos e gravamos a música em uma tarde numa das sessões mais absurdas que já vivi na música. Foi simplesmente inacreditável. Dali pra frente, tínhamos certeza que o processo precisava seguir na potência dos encontros, do olho a olho, na quentura do ao vivo no estúdio e gravamos as demais faixas com a banda formada por Adriano Campagnani no baixo, Leo Pires na bateria, Débora Costa na percussão, Egler Bruno na guitarra, Barral Lima nos pianos elétricos e eu na voz e violão. Os sopros foram gravados no Rio de Janeiro pelo naipe comandado pelo lendário Marlon Sette e finalizamos o álbum em São Paulo, no Estúdio El Rocha, com o querido Fernando Sanches. Muita gente, muita história, muita música. E não foi a primeira vez, acho que n’”O Novato” teve tipo essa quantidade ou quase. Gosto de estar cercado de pessoas, especialmente essa galera deliciosa que a música faz a gente conhecer.

O novo disco é, na essência, uma ode à esperança. Quais são as suas motivações que o guiaram para trazer mensagens desta estirpe, mesmo que os tempos atuais sejam de grande dificuldade?
Acredito que é justamente pelo fato das coisas estarem difíceis que surge a importância de reafirmamos a esperança, a alegria como ferramenta política, o encanto, por que é nessas horas que corremos o maior risco de entrar em momentos ainda mais trágicos. Muito do que estamos vivendo é resultado da falta de crença na vida, no mundo, nos caminhos da humanidade que falhou brutalmente na condução de seus rumos, na tomada de decisões, na formatação da nossa malha social. Se o Brasil acreditasse em si, na força e na potência do povo que somos, na riqueza da nossa cultura, jamais teríamos elegido o atual presidente da república e outros canalhas que surfaram nessa onda conservadora extremista que assolou o mundo. É claramente um momento de crise, de várias crises, e agora é hora de tentar compreender possibilidades de novos caminhos. Como dizia o lendário Beto Sem Braço: “nós fazemos festa pra espantar a miséria”. O Brasil sempre teve problemas graves que nunca resolveu, nunca lidou, mas estamos com os movimentos cada vez mais organizados, mais atentos, elaborando, sofisticando e popularizando novos conceitos, colaborando na ampliação da consciência de seus pares. Acho que o próximo passo é implementar essa visão no campo das políticas públicas e talvez agora teremos chance de trazer o que de melhor foi construído em termos de visão nos últimos anos para o centro do debate e da prática, que é o mais importante. O futuro precisa ser feminino, precisar trazer novas corporalidades, precisa ter a grandeza filosófica dos povos originários, precisa do povo negro. Precisamos sair muito ainda das bolhas, mas vejo muita potência se acumulando e sendo construída, aos poucos sendo compartilhada. Não podemos esmaecer agora, de forma alguma, é um momento histórico e decisivo, mundialmente falando e acho que todo mundo que tem algo a oferecer e contribuir precisa se movimentar, seja um artista, um ativista, pensadores, espiritualistas, tudo. É hora de nos mantermos firmes.

Pude acompanhar, a distância, parte do processo de criação do disco e é interessante observar o quão complexo é para que um trabalho da magnitude de “MESTIÇO” nasça. É preciso uma autêntica força tarefa, de várias frentes, aconteça. Como artista independente que é, gostaria que você falasse sobre as dificuldades que envolvem o processo em si.
Os desafios de ser artista no Brasil sempre foram imensos e eles aumentam dependendo de quem você for. Aquela velha história: se você é rico, branco, homem cis, etc, vai haver muito mais acesso do que se você for uma pessoa negra não-binária da periferia. Eu ainda tenho inúmeros privilégios e não posso reclamar, mas não posso dizer de forma alguma que é fácil porque não é. Vários artistas como eu, tem ideias grandiosas e tudo que acontece é a gente precisar ir mutilando nosso projeto, apequenando-o pra caber nas condições que o mundo oferece. Neste momento então, a coisa tá completamente assombrosa. Sou mineiro e brasileiro fazendo disco num período é que o canalha do Romeu Zema e o genocida do Bolsonaro estão no poder, destruindo a cultura, a ciência e a educação desse país. Acho que a primeira coisa que Lula deveria fazer caso seja eleito, inclusive, seria declarar luto pelas mortes da Covid, pelas perdas inestimáveis de artistas como Milton Gonçalves, Aldir Blanc, João Gilberto, Beth Carvalho, Moraes Moreira e tantos outros que se foram e não tiveram sequer uma nota de luto. Isso é a cara do que esse país vira na mão de gente tão nefasta. Foi difícil, tive que abrir mão de muitas ideias, mas como também sou teimoso e consegui muito apoio da minha família, de vários amigos e parceiros do projeto, conseguimos fazer muito. Desejo dias melhores porque pode ser muito melhor!

E, por fim, quais são os planos futuros? O que você espera alcançar a partir do disco?
Agora a ideia é lançar o disco, circular bastante, é um projeto que nasceu da solidão e do desejo do reencontro, então quero muitos palcos pelo Brasil e pelo mundo. Quero muito viabilizar o vinil do álbum e lançar outros clipes, o disco foi concebido inicialmente como álbum visual, tenho tudo pronto: roteiro, parceiros e colaboradores de todas as cinco regiões do Brasil, com as vivências e olhares mais diversos, pra gente fazer um puta filme usando o disco como trilha sonora. Quero alcançar pessoas, é tudo que quero.

–  Bruno Lisboa  escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Felipe Palma

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