Teatro: “Máquina”, do Teatro da Pombagira, cria experimentos perante a necropolítica do país e merece atenção

texto por Renan Guerra
fotos de Chico Castro

O Teatro da Pombagira, apesar do nome, não está ligado à Umbanda ou a qualquer religião de matriz africana. Segundo própria definição do grupo, eles emprestam da “Umbanda o nome e principalmente a força da Pombagira como forma de expressão da potência, malícia, fisicalidade e sexualidade características de uma performatividade tipicamente brasileira”. É sobre o corpo e suas potências que se centram suas peças cheias de perfomance e experimentação. Espetáculos como “Anatomia do Fauno” e “Demônios” já exploravam questões centrais da obra do grupo: o sexo, a violência e as nossas existências no hoje.

Esse olhar complexo e performático do grupo chamou a atenção de diferentes artistas, tanto que o Teatro da Pombagira já produziu clipes com nomes como Adriana Calcanhotto e Clarice Falcão. Durante o início da pandemia, Marcelo Denny, diretor fundador do Teatro da Pombagira, e Marcelo D’Avilla, diretor e performer, desenvolveram o argumento poético “Desmortificar”, que é o ponto de partida para o espetáculo “Máquina”. Porém, na metade de 2020, Denny faleceu, aos 51 anos, vítima de um infarto.

Como uma espécie de ode ao seu criador, o grupo levou a fundo os processos de desenvolvimento da peça “Máquina”, buscando cultuar a obra de Denny, seu legado e, por conseguinte, cultuar a vida em si. Segundo eles, “’Máquina’ é um ritual de desmortificação contra a ordem estabelecida / ‘Máquina’ é uma crítica ao poder e ao sistema necropolítico maquiavélico”. E todo esse processo de desmortificação encontra espaço no Teatro Mars, na Bela Vista, em São Paulo. Espaço surgido nos anos 80 como pólo criativo de um teatro experimental e moderno, o local não recebia montagens teatrais há mais de 20 anos – sobrevivendo de shows, festas e outros eventos.

“Máquina” é um espetáculo site-specific, isto é, pensado essencialmente para a formatação do Teatro Mars. Ela é e existe dentro daquela estrutura arquitetônica, um espaço que diz tanto sobre São Paulo: moderno e experimental, o local ficou durante anos sem poder servir àquilo que sempre foi sua essência, isto é, a arte experimental e avant-garde. Hoje em dia o espaço ganha sobrevida com festas hedonistas de música eletrônica e sexo, como a Festa Dando, espaço onde muitos dos integrantes do Teatro da Pombagira trabalham. E esses profissionais também são uma representação da cultura em nosso tempo: “Máquina” foi criado sem verbas públicas, sem patrocínios ou editais, construído na marra, tendo o espaço do Teatro Mars como acolhimento e a confiança daqueles que acreditam no trabalho do grupo.

O espetáculo funciona de forma distinta: o público chega ao Teatro Mars e é orientado sobre a estrutura atípica da peça. De pé, assistimos o movimento dos artistas enquanto circulamos pelo ambiente, conforme as indicações do grupo. A platéia vai de um lado ao outro, sobe escadas, assiste do mezanino, desce novamente, em um fluxo que aproxima artistas e público. “Máquina” é construída em pequenos atos simbólicos, não há um texto claro e direto, são as performances e movimentos dos artistas que ditam o desenrolar da trama. A peça começa a partir da violência e da velocidade. Um carro aos pedaços traz para o palco o elenco que em seguida irá se espalhar pelo espaço a portar fuzis, facões e flechas.

A violência direta é seguida por uma violência mais velada, aquela da necropolítica de apresentação do espetáculo. Os corpos marginalizados tomam esse espaço: negros, gays, pessoas trans e pessoas vivendo com HIV, tudo isso se mistura em uma das sequências mais contundentes de “Máquina”. Se tudo isso tenta nos destruir, o espetáculo do Teatro da Pombagira caminha para outro lado: o da vida. Uma das atrizes da peça está grávida e é ela que conduz um dos momentos mais delicados do espetáculo. Com um aparelho de batimentos cardíacos ela ouve o pulsar do coração de algumas pessoas da plateia, e nas caixas com som alto, as batidas ganham a mesma pulsão da música eletrônica que acompanha toda a peça. Para além disso, o sexo, a paixão e a liberdade tomam conta dos atos finais.

Com referências diretas ao grupo teatral catalão La Fura dels Baus, “Máquina” é um espetáculo-performance, então as coisas pegam fogo, água cai do teto, papel picado explode pelo cenário, aromas se espalham pelo espaço e uma chuva de marmitas vazias cai sobre a plateia. Tudo isso nos coloca, enquanto público, de forma imersiva dentro da “Máquina” e nos move de diferentes maneiras: medo, espanto, encatamento e alegria, tudo se passa durante as duas horas e meia de peça. Ao final do espetáculo, há um DJ set com diferentes nomes da cena alternativa paulistana, encerrando a peça em uma espécie de festa celebrativa de nossas existências.

“Máquina” é uma experiência performativa e que pode tocar cada espectador de algum jeito (e talvez seja incomodo para os mais puritanos), mas o fato é que ninguém sai imune a esse furacão que vemos no palco, por isso vá e veja de peito aberto.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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