Esse você precisa ver: “Autoluminescent: Rowland S. Howard”

texto por Luciano Ferreira

Rowland S. Howard escreveu “Shivers”, considerada por muitos sua grande e insuperável composição, quando tinha 16 anos. A faixa fazia parte do repertório de uma de suas primeiras bandas, o Young Charlatans, que ele formou com o também guitarrista e vocalista Ian ‘Ollie’ Olsen. A canção viria a ser o único single do álbum “Door, Door” (1979), primeiro disco do The Boys Next Door, que no ano seguinte mudaria seu nome para The Birthday Party. Rowland entrou para a banda de Nick Cave e Mick Harvey em 1978 tocando guitarra e fazendo vocais – ele ficaria até o final do grupo, em 1983.

Nick Cave só tem elogios para “Shivers” e Rowland, e assume certo arrependimento ao falar sobre ambos: “Essa canção é realmente extraordinária”, diria Nick anos depois. “Não fui capaz de fazer justiça a essa música, especialmente ali (no The Boys Next Door)”, assume. “Rowland deve ter se contorcido um pouco toda vez que eu cantava. Na verdade, eu deveria ter deixado ele cantar…”, completa Cave. “Shivers” viria a ganhar diversas versões, incluindo uma da também australiana Courtney Barnett, em 2015 (Cave colocou a canção na repertório da turnê de 2023).

Figura importante da cena punk/pós-punk de Melbourne, Na Austrália, no final da década de 70, Howard logo chamou a atenção por suas declarações pretensiosas, personalidade forte e sua maneira totalmente original de tocar guitarra. Seus riffs secos e uso de dissonâncias e feedback viriam a se tornar sua marca registrada, eternizado especialmente nos trabalhos com o The Birthday Party, mas também presente em parcerias (como com Lydia Lunch e Niki Sudden), projetos subsequentes (Crime and the City Solution, These Immortal Souls) e em seus dois álbuns solo (“Teenage Snuff Film”, de 1999, e “Pop Crimes”, de 2009).

Lançado em 2011, o documentário “Autoluminescent: Rowland S. Howard” (2011), de Lynn-Maree Milburn e Richard Lowenstein (responsável pelo documentário “We’re Living’ on Dog Food”, sobre a cena alternativa australiana no final dos anos 70), é perfeito em sua narrativa cronológica, trazendo até o Howard produtor do disco da banda HTRK, ainda que falhe em esclarecer pontos importantes do Howard músico e ofereça pouco em relação a pessoa de Howard. O formato de entrevistas entrecortadas por imagens cambaleia, mas não cai, e seria exagerado querer comparar, por exemplo, com o documentário “20.000 Dias Sobre a Terra” (2014), sobre Nick Cave, pois são personagens bem diferentes em contextos totalmente diferentes. “Autoluminescent” segue mais pelo caminho da homenagem.

Se estilisticamente o documentário pouco tem a oferecer, seu “personagem” e objetivo é de extrema riqueza, e acerta em cheio ao resgatar sua influência pouco comentada, mas facilmente percebida em muitas bandas. É que o formato totalmente convencional não se coaduna com a trajetória de Howard, músico e homem de passos erráticos e sensibilidade extremada. E mais que a música que embala o filme do início ao final, o próprio artista “oferece” todo o lado poético que envolve parte da narrativa, com trechos de seu romance não publicado, “ETCETERACIDE”, esse sim um dos grandes acertos e escolhas do filme, que é envolto em certa melancolia, sentimento bastante presente nas próprias canções de Howard.

Os momentos mais clareadores são trazidos por Nick Cave, que conta como a entrada de Howard no The Boys Next Door mudou completamente a sonoridade da banda. O que Nick e nem o documentário esclarece com precisão são os motivos do fim The Birthday Party, algo que nem Cave demonstra entender com precisão. No fim, o que houve foi uma briga entre os egos de Nick Cave e de Howard, o que tornou a situação insustentável dentro da banda. Fato é que Mick Harvey funcionou como mediador: seguiu com Cave no Bad Seeds e se ofereceu para tocar bateria no reformado Crime and The City Solution, do qual Howard passou a fazer parte.

A tecladista, produtora e compositora Genevieve McGuckin, que conviveu por bastante tempo com o músico (e, consequentemente, com o Birthday Party: ela assina duas músicas com Howard em “Prayers on Fire”, debute do Birthday Party em 1981), é das que conseguem trazer uma panorama amplo e detalhado sobre a personalidade de Rowland, inclusive sobre seu envolvimento com drogas e a tentativa de abandonar o vício, bem como os irmãos Harry e Angela, que comentam sobre a relação difícil com o pai, especificamente no retorno para a Australia após os anos difíceis da Inglaterra após o fim do The Birthday Party.

Os registros de apresentações e as declarações do próprio músico em entrevistas feitas em épocas diversas de sua carreia são também muito preciosas não só por apresentar os acontecimentos a partir de sua perspectiva, mas também por deixar transparecer em seu semblante parte de seu estado físico e psicológico. Em determinado momento, ele comenta quase às lágrimas sobre a versão de “You Are My Sunshine” feita por Brian Ferry e o quanto ela lhe soa dolorosa; ou as dificuldades e decepções quando o The Birthday Party mudou para Londres, a frustrante turnê americana de três shows e 25 minutos somados de apresentação.

Porém, o mais curioso é a acolhida calorosa que os músicos australianos receberam em Berlim, tornando-se influentes na cena local, o que rendeu até participação no filme “Asas do Desejo” (1987), de Win Wenders (outro dos entrevistados), que reúne em cena tanto a Crime & the City Solution (tocando “Six Bells Chime”, música de Rowland S. Howard e letra de Bronwyn Adams e Simon Bonney – assista acima) como também Nick Cave and The Bad Seeds (“From Her to Eternity”, “The Carny”).

Com sua aparência frágil, cabelo desgrenhado/espetado, presença quase teatral no palco, com jeito trôpego de se movimentar, como que possuído ao empunhar sua guitarra (geralmente uma Jaguar), cigarro na boca e olhar entre o absorto e o espanto no expressivo azul dos olhos seguem imortalizados, quase como uma figura romântica.

Falecido em 2009 aos 50 anos, Rowland S. Howard tem em “Autoluminescent” um documentário altamente recomendado e extremamente necessário na tentativa de fazer jus a sua carreira, influente, mas pouco reconhecida ou comentada. Basta analisar a longa lista de artistas que lhes prestam homenagens: Bobby Gillespie, Henry Rollins, Thurston Moore, Kevin Shields, Barry Adamson e tantos outros, sinalizam sua contribuição para a música alternativa, muitos “tocados” pelo seu trabalho único nas seis cordas.

“Autoluminescent: Rowland S. Howard” pode ser alugado ou comprado no Vimeo (primeiro vídeo)

– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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