Música: Em “mãeana2”, feminilidade, maternidade, família, misticismo e amor se misturam em canções pop

por Renan Guerra

A religião, a religiosidade e todas as crenças místicas podem ser lidas de diferentes formas e sabemos bem que muitas pessoas usam essas questões como subterfúgio para transmitir ódio, violência e reiterar preconceitos. Ana Cláudia Lomelino faz o contrário sob a persona de Mãeana. Suas diferentes crenças, seu olhar para o mistério e o místico são o ponto de partida para a troca, a comunhão, o cuidado, e isso tudo, mais uma vez, se transforma em canções com a chegada de seu segundo disco chamado “mãeana2”.

Ana Cláudia começou sua carreira na banda Tono, grupo formado ao lado de Rafael Rocha, Bruno Di Lullo e Bem Gil – com quem Ana é casada. Foram três discos da banda Tono e mais a produção e os arranjos do último disco de Jorge Mautner, “Não Há Abismo Em Que o Brasil Caiba” (2019). Em 2015, Ana virou Mãeana e lançou seu primeiro disco solo, “mãeana”, pelo selo Joia Moderna. Entre o tropicalismo e a ufologia, o primeiro disco gerou um lindo DVD ao vivo no MAM, no Rio de Janeiro.

Entre o primeiro e o segundo álbum, Mãeana participou do disco colaborativo “Ascensão” (2016), de Serena Assumpção, se apresentou ao lado de Letrux e ainda fez um improvável show baseado no repertório mais lado B da Xuxa. “mãeana2” é como que um passo seguinte do que Ana já vinha apresentando ao vivo, em suas experimentações estéticas e em seus textos – sempre tão pessoais – no Instagram.

O novo trabalho tem participações de Letrux, Mateus Aleluia Filho, da Banda Tono e dos filhos de Ana e Bem: Dom e Sereno Lomelino Gil. Na banda temos Domenico Lancellotti na bateria e percussão, Bruno Di Lullo no baixo, Bem Gil no violão e guitarra, Diogo Gomes no trompete e flugelhorn, e Thiago Queiroz no sax e flauta. Eles formam a base instrumental da maioria das faixas. Além disso, temos as participações de Thomas Harres, Daniel Conceição e Pedro Fonte (bateria e percussão), Arthur Braganti (sintetizador) e do acordeonista Mestrinho.

O universo de Mãeana fica completo com a colaboração de diferentes compositores, como Letrux, Bruno Capinam, Amora Pêra, Luana Carvalho e Ruben Jacobina, entre outros. Essas diferentes composições conseguem de algum modo definir de forma muito sólida a linha temática de “mãeana2”: feminilidade, maternidade, família, misticismo e amor se misturam em canções pop, de refrões saborosos, daquele tipo que grudam na cabeça e dão vontade de cantar junto – ouça “Tudo Dom” e comprove o que estamos dizendo.

Faixas como “Menina Neon”, “Pra Mainha” e “Canção de Ontem” são interessantes exemplos desse universo poético e sonoro do disco, pois trazem uma curiosa mescla de ritmos brasileiros, algo que é construído de forma delicada pelos grandes músicos envolvidos no projeto. É interessante pensar que Mãeana passa por diferentes sonoridades, mas é complexo encaixá-la numa tag: MPB pode ser um possível arco, já que é esse espaço meio indefinido de tudo que temos, porém MPB também não dá conta dessa espécie de magia que envolve o que ela faz. É mais complexo, mais onírico do que as tags fazem caber.

De todo modo, você até pode se perguntar: qual o sentido de tanto onirismo em tempos tão bicudos? Pode parecer deslocado do nosso mundo um disco sobre serenatas & amores & abduções, porém a realidade é que precisamos desse onirismo para não sermos soterrados pela realidade, não podemos deixar que a violência e a dor do real nos deixem frívolos ou inertes. Em “Se Tudo é Relativo” (Ana Lomelino e Ruben Jacobina) ela canta “quanta violência / quando foi que permitimos / tanta indiferença / entre nossos filhos”.

Na sequência de “Se Tudo é Relativo” entra “Abseduzida” (Letrux), faixa que é espécie de resumo simbólico do disco, com suas lisergias e esperanças: “Por que que a gente tem medo de embarcar no devaneio?”, ela pergunta, para em seguida dizer “Vem / Pode sentir / Sentir ainda é nosso / Traz todo saber / Saber ainda é bom”. Segundo Mãeana, a arte como salvação é o sentido principal de sua obra. E em momentos que parecemos tão dispersos e sós, a música e seus sentidos podem ser fundamentais para lembrarmos aquilo que somos e devemos ser de melhor. Ouça “mãeana2” e se deixe levar pelo devaneio.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

3 thoughts on “Música: Em “mãeana2”, feminilidade, maternidade, família, misticismo e amor se misturam em canções pop

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.