Ao vivo: Fellini emociona plateia de grisalhos em mais um belo adeus

Texto por Marcelo Costa
Fotos por Fernando Yokota

Uma das mais famosas não famosas bandas indies paulistanas dos anos 80, o Fellini segue uma trajetória deliciosamente errática desde que Thomas Pappon convidou Cadão Volpato para formarem uma banda. Era 1984 e Thomas se dividia entre o Voluntários da Patria e o Smack, mas encontrou tempo para incentivar o amigo, que tinha pretensões literárias, a escrever letras e assumir o vocal, e lá se vão oito discos, um séquito de fãs ilustres, alguns semi-hits e 36 anos de muitos, mas muitos shows de despedida, que sempre dão uma aura de último concerto à última reunião do grupo.

Desta vez, o agora quinteto formado por Cadão Volpato (voz), Thomas Pappon (guitarra), Jair Marcos (guitarra), Ricardo Salvagni (baixo) e Lauro Lellis (bateria) se despediu no Sesc Pompeia na primeira sexta-feira de março diante de uma imensa plateia apaixonada de grisalhos, quatro anos após seu último adeus. A data celebratória festejava o lançamento do luxuoso box “A Melhor Coisa Que Eu Fiz” (2020), trabalho hercúleo do selo Nada Nada Discos que pescou canções inéditas de fitas demo e um rico material que cobre a trajetória do Fellini nos anos 80, contada em fotos, fac-símiles, filipetas, artigos, fita k7, vinil e ilustrações diversas.

A festa de squizo samba começou com uma versão pungente da godardiana “Cultura”, do primeiro disco da banda, “O Adeus de Fellini” (1985), cuja letra transforma em música uma das passagens marcantes de “O Desprezo”, filme de Godard de 1963: “Quando ouço a palavra cultura, puxo o meu talão de cheques; Anos atrás, quando os hitleristas ouviam a palavra cultura, puxavam o revolver”. Na sequencia, novas velhas canções do álbum “A Melhor Coisa Que Eu Fiz” ecoaram no ambiente, com Cadão lendo as letras e a banda tentando dar uma cara de arranjo para aquelas músicas inacabadas num visível ensaio de luxo.

Nunca tocadas antes ao vivo pela banda, faixas como “É Chato” (“Essa a gente só tocou quando gravou”, confidenciou Cadão em certo momento), “O Destino” (“Essa saiu na fita K7 do álbum ‘Amor Louco’” – e posteriormente no CD), “A Melhor Coisa Que Eu Fiz” (“Gravamos eu e o Thomas na sala de estar da casa dele… foi na sala de estar mesmo, Thomas?”, sarreou Cadão para diversão do amigo guitarrista) e “Por Toda Parte” (que seria regravada por Thomas em seu projeto The Gilbertos) soaram, tal qual demos que são, curiosidades que iluminam ainda mais os clássicos da banda.

De fato, o show começou quando Cadão antecipou que iriam tocar um clássico do Fellini, “Envelheço na Cidade” (uma piada repetida algumas vezes na noite). Na verdade, a canção dedicada a Marcelo D2, que estava na plateia e disse que iria entrar na igreja para seu próximo casamento com essa música no som, era “Teu Inglês”, hino do terceiro disco do grupo, “Três Lugares Diferentes” (1987), um álbum que carrega uma história bastante peculiar, pois foi eleito Melhor Disco Nacional de 1987 numa votação da revista Bizz que foi mexida, e não para favorecer o Fellini, mas sim para colocar “Jesus Não Tem Dentes”, do Titãs, empatado.

Outros hinos foram surgindo como ”Chico Buarque Song” (regravada pela cantora Céu no álbum “Tropix”) e “Clepsidra”, as duas do disco “Amor Louco” (“O melhor disco feito no Brasil nos anos 80”, segundo Thomas em entrevista ao Scream & Yell), “Ambos Mundos” (outra de “Três Lugares Diferentes”, e nessa Cadão “convidou” Miles Davis para o palco) e um poderoso trio do álbum de estreia, “Nada”, “Rock Europeu” e “Funziona Senza Vapore”, essa já no bis, antes do encerramento com “Samba das Luzes” e seu refrão perfeito para os dias de hoje: “Deixa o país inteiro apagar”. Foi um show curto, pouco mais de uma hora de apresentação, mas era possível visualizar a felicidade no rosto de cada um dos presentes.

Faltou muita coisa (como “Zum Zum Zum Zazoeira”, “LSD” e “Città Piu Bella”), inclusive Chico Buarque na plateia, mas ficou a sensação de que nesse “último adeus” do Fellini, o quinteto honrou sua vibe lo-fi no wave sem abdicar do desejo de entortar o samba e transforma-lo em algo ainda mais… poético. Pode parecer pouco, pode soar exagerado e, sobretudo, pode soar saudoso, mas esse é daqueles “últimos” shows que poderiam acontecer anualmente, como uma reunião de velhos amigos que cantam suas antigas canções enquanto o barco naufraga rumo ao fundo do oceano. Até o ano que vem, quem sabe.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

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