Entrevista: Lúcio Maia em carreira solo

entrevista por Leonardo Vinhas 

No universo do rock brasileiro, a figura do guitar hero praticamente inexiste. Apesar de o gênero ser centrado na guitarra e de termos ótimos instrumentistas, muitos dos quais responsáveis por criar estilo e linguagem próprios, a guitarra por aqui parece não encontrar espaço para unanimidades ou vacas sagradas. Claro, uma conversa entusiasmada pode trazer nomes de diferentes épocas, de Lanny Gordin a Edgard Scandurra, de Pepeu Gomes a Andreas Kisser. Mas a lista não vai levantar nomes a ponto de preencher os 10 dedos das mãos de maneira plenamente indiscutível.

Ainda que restrita, tal listagem jamais poderia prescindir de Lúcio Maia, um dos fundadores da Nação Zumbi que ainda permanece na banda. Em uma formação com quatro percussionistas, Maia conseguiu trazer destaque para seu instrumento graças a seu estilo muito particular, que traz influências de funk, rock, música oriental, ritmos africanos e outros elementos.

Um desses elementos é a música latina, tanto do norte da América do Sul quanto do Caribe. Quase imperceptível na receita da Nação Zumbi ou nos outros projetos de qual Maia tomou parte, ela é a tônica do primeiro trabalho a ser assinado com seu nome. “Lúcio Maia” batiza seu (novo) projeto solo e seu novo disco, deixando de lado a alcunha de Maquinado, que ele usou para lançar dois álbuns (“Homem Binário”, de 2007, e “Mundialmente Anônimo: O Magnético Sangramento da Existência”, de 2010).

Não é a única coisa que fica para trás: o groove pesado e a eletrônica cedem espaço para uma sonoridade mais orgânica, conduzida (obviamente) pela guitarra, mas com percussão fluida e baixo e teclado sem muitas firulas. É um disco dançante, psicodélico, que traz duas versões (“Fried Neckbones and Some Home Fries”, de Willie Bobo, e “Lithium”, do Nirvana). A releitura da canção de Kurt Cobain vem sendo destacada, mas na verdade ela é apenas uma curiosidade entre um mostruário bem mais interessante de composições autorais, todas instrumentais, executadas junto a ótimos músicos, que incluem tecladista Mauricio Fleury (Bixiga 70), o percussionista Felipe Roseno (Ney Matogrosso, Maria Gadú) e o baixista Dengue, também da Nação Zumbi, entre outros.

Maia já integrou Soulfly, Seu Jorge e Almaz, e a banda de Marisa Monte, além de ter participado de várias trilhas sonoras. Seu álbum solo homônimo revela uma estética pouco mostrada nesses trabalhos, mas ao mesmo tempo ajuda a olhar para eles em retrospecto e perceber que, muito discretamente, as sementes já estavam insinuadas por ali. Nesta entrevista para o Scream & Yell, ele explica melhor essa relação com a latinidade, conta sobre a opção de assinar seu próprio nome e a opção por fazer um disco totalmente instrumental. Confira o papo!

Você já tinha o Maquinado, mas optou por assinar esse álbum com seu nome. É para marcar a diferença musical entre os dois projetos, ou há outras razões envolvidas?
Teve várias razões. Eu tinha batizado o projeto de Los 5 no começo, depois descobri que tinham vários homônimos. Então, de certa forma, sim, coloquei meu nome para diferenciar, para dar outra forma de diretriz artística. E eu não queria colocar Maquinado porque essa é uma outra relação artística com a música, diferente desse disco. Recebi também conselhos do pessoal da gravadora e de amigos, dizendo para assinar como Lúcio Maia. Eu sempre relutei em colocar meu nome, por medo de parecer aquela coisa egocêntrica, mas tive esse incentivo por conta do problema com os homônimos. Então de certa forma fui compelido a colocar meu nome (risos). Mas acho que já era mais do que o momento de eu me expressar desse jeito, assumindo meu próprio nome.

A latinidade nunca foi um elemento presente nas composições da Nação Zumbi ou de seus outros projetos. Qual o gatilho que a fez orientar seu trabalho agora?
Discordo completamente dessa informação, dizendo que a gente nunca teve essa expressão latina. A gente sempre foi uma banda com muita influência de música latina, desde o primeiro disco. Lógico que existe uma questão que ficou meio canonizada, do maracatu com o rock. Mas já no “Afrociberdelia” (1996), músicas como “Criança de Domingo” e “Amor de Muito”, elas têm muita influência da afro-Cuba, do merengue. Não é uma coisa direta, obviamente, mas está sempre presente na nossa carreira, na vida inteira. Isso não é novidade pra mim. Não comecei a ouvir Tito Puentes agora (ri), já ouço há muito tempo. Foi mais uma questão de dar uma diretriz artística pra uma ideia nova. Maquinado, Nação Zumbi, Los Sebozos, todos os projetos que já participei, têm uma cara. Então, se eu ia assinar um projeto novo, precisava dar essa diretriz. Mas tudo tá dentro do que já fiz. Tenho uma relação com a música latina, mas essa música latina é igual ao samba: todo mundo acha que o samba é só o Rio de Janeiro, e o samba é do Brasil, e o Brasil está inserido na América Latina. O Brasil se afastou disso porque quis se afastar, mas eu não sou obrigado a assumir isso. Por isso a gente toca samba, toca maracatu – porque tudo isso é nosso, tudo isso é latinidade.

No release do álbum, você declara sempre ter gostado de salsa, mas o disco traz outras referências, muitas delas mais contemporâneas. Você costuma escutar bandas do cenário latino que fazem um som instrumental fortemente amparado nas guitarras, como Bareto, a chicha peruana, Los Mutantes del Paraná e afins?
Eu acho que… (hesita) Se eu disser que curto salsa e que no meu disco tem salsa, eu jamais vou fazer igual ao Chicha Libre ou outras bandas. Inclusive nem eles fazem: eles modernizaram essa cultura, empurraram isso pra frente. Essas bandas todas que você mencionou e muitas outras empurraram a música latina pra frente. Então, assim, quando falo que ouço salsa e ela está no meu disco, ela está sim. Não sei te dizer em qual porcentagem, nem mensurar o quanto dela entra e o quanto sai, assim como o maracatu também tá inserido na nossa vida, mas se você for procurar o mestre lá de Pernambuco, ele vai dizer que o que a gente faz não é maracatu. Então acho que é uma visão atualizada da música brasileira, e da latina principalmente, inserida em drágeas, em pitadas. Porque não quero fazer uma coisa óbvia, não quero contratar uma orquestra para tocar salsa. Isso não é necessário, você pode deixar suas influências aflorarem de uma forma bem pessoal, que é o que sempre fiz na minha vida. Eu não vou fazer um disco de salsa com timbales e todo o setup que é canonizado. Não é assim que eu vejo. Tudo é uma questão do que você consome, digere, e coloca pra fora do seu jeito, com a sua digital. Pra mim, esse é o único jeito que o artista tem pra se destacar no meio dessa maré, desse oceano de informações a que a gente tem acesso.

Falando no instrumental: por que optar pela ausência da voz?
A gente chegou a gravar duas músicas, que não entraram no disco, que tinham backing vocals, um coral. Mas não foi uma coisa que eu pensei em fazer. Eu não sou cantor – começa por aí. Aqui no Brasil, a gente tem uma fartura de cantoras. Todo dia aparecem umas dez, muitas delas incríveis, e não existem muitos cantores homens. Eu achei que era meio redundante, meio óbvio demais, fazer um disco com essas influências e colocar convidados cantando, com canções novas, ia dar mais trabalho ainda. Porque pra mim existe uma barreira que é a letra. Muitas pessoas usam a letra como um escapismo, um “coloca qualquer coisa aí”. Eu não acho que é isso, acho que a letra, se malfeita, pode destruir a canção. Como não sou letrista e não sou cantor, procurei colocar meu universo de influências sem prensar na voz. Não foi uma recusa – “ah, vou fazer instrumental”. Só aconteceu. Não encontrei um parceiro ou parceira que fizesse parte desse projeto comigo para isso. Eu consegui compor todas essas canções em uns 10 dias. Eu levei mais tempo para juntar a banda, ensaiar, gravar, do que para compor. E eu conheço grandes discos de música latina, de grandes artistas, e todos instrumentais. Então isso não foi um critério sobre o qual eu fiquei muito tempo pensando.

Durante a audição do disco, foi possível identificar seu estilo – não só pelos timbres e arranjos, mas pelas composições. Passados mais de 25 anos de carreira, você acredita que criou uma linguagem própria, que deixou sua marca na guitarra do pop brasileiro?
Olha, se eu não tivesse conquistado isso, a minha marca, a minha digital, teria desistido com certeza, cara. Porque esse é o grande lance do artista. Pra mim, não convém técnicas e firulas, a questão circense do instrumento. Isso nunca fez parte do meu universo. Tento, sempre que faço uma canção ou um disco, me colocar ali artisticamente vivo, artisticamente renovado, para que as pessoas me vejam sem precisar… por exemplo, o cara escuta a música e pensa: “puxa, isso parece com o Lúcio Maia”, e quando vai ver, sou eu mesmo. Isso é uma coisa que leva muitos anos para conquistar, e quando conquista é um prêmio. É uma maneira de você se diferenciar do resto, de todos os outros artistas, músicos, instrumentistas… A digital, para mim, está acima da técnica, e acho que criei uma marquinha, sem dúvida.

Muitas bandas da Argentina e do Uruguai têm na música da Nação Zumbi uma referência forte do Brasil. O Buenos Muchachos chegou a gravar uma versão de “Inferno”, presente no disco “Brasil También Es Latino”. Você está a par dessa influência?
A gente já foi pra Colômbia, Chile, pra Argentina. Em todos esses shows a gente trocou ideia com bandas locais. Eu já tinha visto essa versão (do Buenos Muchachos) há um tempo, e acho que é isso: a quebra da barreira que o próprio Brasil criou. Porque entre esses países não têm isso: eles têm esse intercâmbio cultural, musical, artístico. Lógico que a barreira da língua bate no público, mas acho que isso não é o suficiente para não existir o intercâmbio, porque a música norte-americana entrou em todos os países, até onde não se fala inglês. É mais uma questão cultural, mesmo, de não aceitar. Eu fico não só feliz de saber que a gente faz parte desse universo, como eles fazem também parte da nossa pesquisa artística.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

 

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