João Gilberto e as ruínas de um país

texto por Ismael Machado

O atual presidente da república foi lacônico. “Lamento muito. Pessoa conhecida. Meus sentimentos à família, ok? ”. O raquitismo intelectual e a ode à ignorância (e a ausência costumeira de empatia) são significativos dos tempos atuais vividos pelo Brasil. Num dos principais portais de notícias do país, muitos comentários seguiam o tom “não conheço, nunca ouvi falar, portanto, não deve ser importante”. A régua e o compasso do analfabetismo cultural misturados à boçalidade dos dias presentes são opostos ao que João Gilberto representou ao Brasil. E é esse país onde, como diria Caetano Veloso, um dos mais fiéis seguidores de João, tudo parece em construção e já é ruína, que se encerra junto a morte do talvez maior nome da música brasileira..

O momento em que esse nordestino reconfigura a música brasileira é um instante onde o país tenta se enquadrar numa modernidade tardia, uma utopia de futuro menos arcaico e mais aberto ao mundo. A década de 1950 traz os arroubos desenvolvimentistas de JK, com seus discutíveis, mas ainda assim importantes planos de 50 anos em 5. Traz um sopro de novidades em todos os campos e quadrantes. Do futebol a arquitetura. Do cinema à literatura. Das artes plásticas à incipiente indústria nacional. O complexo de vira-latas do brasileiro, detectado por Nelson Rodrigues, parecia não ter mais razão de ser. A trilha sonora de tantas mudanças era a Bossa Nova. E seu mentor, ou guia maior, João Gilberto.

Nos Estados Unidos há uma lenda recorrente entre os bluesmen. Sempre que um guitarrista de blues desaparecia por uns tempos e retornava tocando infinitamente melhor, dizia-se que ele havia ido “até a encruzilhada”. Ou seja, teria ido fazer um pacto com o cramulhão. Essa lenda cerca o maior de todos bluesmen, Robert Johnson, por exemplo.

João Gilberto passou por uma experiência do tipo? Não se sabe. O que se conta é que, decepcionado com a pouca receptividade obtida como crooner no Rio de Janeiro, foi passar uma temporada com familiares no interior de Minas. Passava mais de 10 horas por dia, tocando violão e fumando maconha. Burilava ali, sob os olhares desconfiados das tradicionais famílias mineiras interioranas, uma revolução silenciosa.

Ao voltar ao Rio, é um outro João Gilberto que surge. Desconstrói as estantes musicais em voga até então, reinventando sonoridades baseadas numa tradição cancioneira popular. Dá nova vida ao samba e reconstrói a música brasileira. É a partir de João Gilberto que se começa a criar uma ideia de MPB, a sigla que aprisiona e liberta ao mesmo tempo.

João Gilberto mostra, com seu novo fraseado musical, com o jeito diferente de tocar e cantar, que o Brasil tinha algo original a oferecer ao mundo. E o mundo abraçou essa originalidade brasileira advinda de João. Simbolicamente, é como se aquele nordestino, de gestos suaves e fala mansa, trouxesse um arcabouço de possibilidades a um país em constante reconstrução.

O Brasil que viu João Gilberto florescer era um país otimista. A década seguinte trouxe de volta a realidade que sempre nos acompanha. Não somos modernos na plena acepção da palavra. O sorriso aberto de JK era retrato de um passado. A carranca fechada dos generais era o nosso retrato Dorian Gray.

Estimulados por esse Brasil ofertado por João, jovens de toda parte do país encontraram seu caminho. De Caetano a Geraldo Azevedo. De Paulinho da Viola a Gal Costa. De Chico Buarque a Roberto Carlos. De Joice a Gilberto Gil. Tudo tinha um filtro joãogilbertiano.

Que foi se misturar aos hippies dos Novos Baianos e mudou o jeito deles encararem a música. Que salvou Jards Macalé de uma ideia suicida apenas tocando para ele. Que reconciliou o jornalista e escritor Paulo César de Araújo com o próprio pai.

João Gilberto ajudou a disseminar uma ideia de país. Um projeto novo, condizente com o que o Brasil poderia representar para o mundo. Em síntese, um país aberto a tudo, mas devolvendo o que recebia com algo próprio, sem subalternidades, mas olhando para os outros países com sabedoria e sem preconceitos. No mundo de João Gilberto, o diálogo era feito entre iguais. Sem bater continência, sem entreguismo. O Brasil utópico que João criou em dissonâncias musicais se perdeu. A morte de um gigante com nome tão comum é também a morte de um sonho de país. Reencontrar esse país não vai ser tarefa fácil. As ruínas estão superando a construção. Que não sejam eternas.

– Ismael Machado é jornalista, escritor e roteirista. Lançou o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”.

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