Scream & Yell recomenda: Luiza Brina

por Rafael Donadio

A cantora, compositora e multi-instrumentista Luiza Brina inicia 2017 bem ao seu estilo mineirinha: “Tão Tá”, lançado no último dia 19, é o segundo disco da carreira solo dela que, aos 28 anos, vive, respira e transpira música desde os primeiros anos de vida, ao lado das avós pianistas e da mãe que inventava canções de ninar, comer, amanhecer… No passado, transpirou arte nas brincadeiras da infância, hoje transpira no trabalho escolhido “para sobreviver, sonhar e continuar”.

Seis anos após o lançamento do primeiro disco solo, “A Toada Vem é Pelo Vento” (2011), mais uma vez ela se junta às indispensáveis hélices trituradoras do Liquidificador para moldar e misturar influências que transbordam os copos do eletrodoméstico. Ao seu lado estão Analu Braga, Alcione de Oliveira e Di Souza nas percussões; Aline Gonçalves, João Paulo Prazeres, Maria Raquel Dias e Miguel no quarteto de sopros; e Vanilce Rezende no violoncelo.

“Tão Tá” foi bancado com ajuda de fãs, amigos e familiares graças a financiamento coletivo. Possui 13 faixas, sendo 12 delas compostas por Luiza entre 2010 e 2014. Apenas “Remanso”, de Gustavito (outro nome atuante na nova cena mineira), entrou como contribuição no trabalho. As temáticas do disco variam da espiritualidade às lutas políticas de esquerda passando por reflexões sobre a vida e a morte, seguranças e inseguranças que habitam os seres, relações pessoais e familiares, naves espaciais, viagens, saudades…

Além da carreira solo acompanhada do grupo O Liquidificador, Luiza atua também como integrante da elétrica/psicodélica banda Graveola e o Lixo Polifônico, do grupo de canção de câmara Boreal e do coletivo de mulheres compositoras Ana. “Tão Tá” foi produzido por Chico Neves (responsável por, entre outros, “Lado B Lado A”, do Rappa, e “Bloco do Eu Sozinho”, do Los Hermanos) entre 2014 e 2016 e contou com participações de Gustavito, Karina Neves, Yuri Vellasco, José Izquierdo e Pedro Carneiro, além dos oito músicos do grupo.

“Tão Tá” pode ser baixando gratuitamente no site oficial de Luiza: http://luizabrina.com. O show de lançamento acontece no próximo domingo, 29/01, no Teatro Bradesco, em Belo Horizonte (infos)

Como foi a criação e produção deste segundo álbum, “Tão Tá”?
“Tão Tá” foi um processo de dois anos e meio de imersão no Estudio304, do Chico Neves.
O Chico é um produtor muito querido, muito especial e muito cuidadoso e empolgado com as sonoridades que se pode extrair dos timbres dos instrumentos. O Liquidificador, por sua vez, tem uma formação bem inusitada: clarineta, flauta, trombone, saxofones, violoncelo, percussões – além de voz e violão. Acho que a sonoridade do disco é a união desse punhado de instrumentos com a criatividade e magia do Chico. O álbum tem ao todo 13 faixas, que fazem parte da minha história como cantautora, algumas canções mais antigas, que compus entre 2010 e 2013 e queria registrar, e outras mais recentes, que fazem parte do que acredito atualmente como cancionista. Estão presentes no disco as três primeiras canções da série de orações, que tratam sobre espiritualidade, reflexões sobre a vida e a morte, as seguranças e inseguranças que habitam os seres. Também estão presentes no disco temáticas sobre relações pessoais e familiares, naves espaciais, viagens, saudades, lutas políticas de esquerda. A única faixa que não é minha composição é a “Remanso” do Gustavito, uma mistura de Grande Sertão com o boi do maranhão.

Você se lembra de como foi o início da sua carreira musical?
Não consigo enxergar um início claro da minha carreira. Tenho duas avós pianistas, uma mãe que inventava canções para dormir, para acordar, para comer e eu acabei começando a inventar músicas para sobreviver, para sonhar, para continuar. Talvez um marco na minha carreira, uma espécie de pacto com o mundo tenha ocorrido quando lancei meu primeiro disco, “A Toada Vem é Pelo Vento”, em 2011.

Quais as suas principais influências dentro do mundo musical?
Já faz um tempo que o cantautor que mais me instiga e inspira é o Gilberto Gil. Pelas temáticas das suas canções, pela maneira que ele transforma suas inquietações em música e pela sua maneira de arranjar o violão. Esse dizer “cantautor”, emprestado do espanhol, diz muito para mim nesse sentido da figura do cancionista, da integração e entrega homem-instrumento-canção. Acho que o Gil cumpre muito bem com essa função. Outra grande influência na minha vida, como figura mulher compositora é a Rita Lee, que ouço desde criança, apaixonadamente. Me interesso muito também pelas culturas populares da américa latina, pelos ritmos complexos e potentes, pelas histórias, pelos rituais, onde a música é um agente da espiritualidade, um canal de manifestação.

O que inspira a artista/compositora Luiza Brina? E como é o processo de composição?
Os afetos, as histórias, o Gilberto Gil, a Rita Lee, o Hermeto Pascoal, o Bumba meu boi do Maranhão, a Santeria cubana, a música baiana, a poesia da Ana Martins Marques, as saudades, as viagens que faço, os filmes que me emocionam, as conversas com amigos, tudo isso me inspira e me traz vontade de fazer música. Normalmente faço mais música do que letra, embora de vez em quando faça algumas letras também. Esse disco tem diversas parcerias, com amigos queridos que embarcaram em viagens comigo: a Flávia Mafra, o Pedro Carneiro, a Júlia Branco, o Gabo Gabo, o César Lacerda e o LG Lopes. O meu processo de composição não tem muita regra, cada hora é de um jeito, depende da ocasião, da sensação, do que estou vivendo…

Vamos falar sobre as festas do boi do São João do Maranhão então. Como a influência de uma festa maranhense enraizou na mineira Luiza?
Em 2006 fiz parte de um grupo em BH que estudava e reproduzia brincadeiras populares, o “Encaixa Couro”. Lá conheci o boi e de lá surgiu a vontade de ir conhecer pessoalmente o boi do Maranhão. Comecei então a ir todo ano para as festas do São João do Maranhão e fiquei muito instigada e tocada com a força dessa manifestação, as cores, as roupas, os personagens do boi, a quantidade de grupos, tipos e sotaques que existem ali. Comecei a acompanhar todo o ano o Boi de Maracanã, que tinha como cantador e compositor de toadas o Seu Humberto, mestre de voz arrepiante, letrista e melodista incrível. Fiz várias músicas em homenagem ao Boi de Maracanã, uma é parceria com o César Lacerda e dá nome ao meu primeiro álbum “A Toada vem é Pelo Vento”, outra está nesse segundo disco, “Tão Tá” e se chama “Da Janela”.

Como o seu trabalho solo difere do trabalho da Graveola?
Participo do Graveola cantando, tocando percussão (congas e efeitos) e como compositora. O Graveola é uma banda com sonoridade mais elétrica, pop, bailante. O meu trabalho com o Liquidificador tem uma formação talvez mais camerística, onde eu atuo, além de compositora e instrumentista, como arranjadora dessa formação – quarteto de sopros, violoncelo, trio de percussão.

No ano passado você lançou o single e o clipe de “Oração 3”. Por que a escolha de “Oração 3” como música de trabalho?
A faixa single é a terceira da série “Orações”, resultado criativo de um intenso período em que sofri com crises de pânico. A “Oração 3” é uma parceria com o Pedro Carneiro. Ele fez a letra da música depois de uma conversa que tivemos em 2012 sobre o fenômeno do fim do mundo. Ficamos imaginando um apocalipse solitário, o fim do mundo reverberando em forma de solidão, angústia e esperança em um personagem. A faixa é bem diferente do restante do disco, pois não foi gravada com o Liquidificador, ela não teve um arranjo escrito, o arranjo foi sendo criado em estúdio. Eu, o Pedro e o Chico (Neves – produtor musical do disco) passamos uma tarde inteira no estúdio gravando o que viesse na nossa cabeça ali naquele momento. O resultado desse processo ficou bem especial, bem sincero. Talvez seja por isso a escolha dessa faixa para ser lançada como single.

Há uma história por trás desse clipe?
O single vem acompanhado de um vídeo feito durante uma expedição pelas montanhas do bairro São Geraldo, em Belo Horizonte, realizada pelo grupo O Liquidificador. A produção desse material ficou a cargo de Sara Lana, responsável também pela concepção de arte do disco e do show “Tão Tá”, ao lado de Flávia Mafra, Clarice G Lacerda e Nina Aragón. Geórgia Brant assina o figurino. É um trecho de um conjunto de imagens criadas para acompanhar as canções do disco, que estamos apelidando de “discometragem”. Essa série será lançada em março – logo após o primeiro show de lançamento. A discometragem dialoga com a temática das imagens do “Tão Tá” – essas pessoas de branco são, na verdade, astronautas – e conta a história de um percurso aonde realizamos sessões de fotos para o encarte do disco.

Por que astronautas? Quem são os astronautas na história do disco?
Não existe uma conexão muito grande entre os astronautas e as canções, tampouco existe uma conexão entre o nome do disco e os astronautas e as músicas… mas é uma brincadeira non-sense, gosto disso, nesse mundo onde as conexões e explicações são tantas, porque não brincar com isso? De todo modo, acho que um possível aclaramento desses personagens vem de uma vontade de construir uma nave agroecológica e sair correndo desse mundo maluco que estamos vivendo… Temer presidente do Brasil?!? socorro! brincadeira… na verdade acho que não é hora de fugir…

Quais são as “lutas políticas de esquerda” que você citou anteriormente? Lutas que você trava como artista?
O pensamento de esquerda esteve sempre presente na minha vida, na minha família, no meu jeito de compreender as relações, o mundo, a natureza, no jeito de me vestir, no jeito de me posicionar. E isso tudo obviamente reflete nas minhas canções e na maneira de produzir. Mas quando eu disse sobre as canções desse disco que falam sobre lutas políticas de esquerda estava me referindo especificamente à música chamada “Costi”, que compus depois de conhecer uma prima-avó guerrilheira espanhola: Em 2014, depois de fazer uma turnê com o Graveola pela Europa resolvi ir conhecer a família do meu avô na Espanha. Peguei então um trem em Madri e cheguei até Brazatortas, cidade do interior. Ao descer do trem perguntei pelas ruas se conheciam a família e um senhor me convidou para entrar no seu carro, ele me levaria até alguém, afinal, de acordo com ele, para chegar lá eu teria que pegar uma carreteira. Eu não sabia o que era carreteira, mas quando ele pegou uma estrada eu rezei muito para que este fosse o significado. E era. Cheguei então numa chacarazinha, e uma senhora de 90 anos, cabelo branco, me recebeu. Eu me apresentei a ela, que, com um abraço me colocou num outro carro, e saiu pela carreteira a 250 Km/H até uma outra cidade, Puertollano. Bebemos um bocado, ela, de 90 anos, bem mais do que eu. E enquanto isso ela me contava sobre suas militâncias: foi do movimento anarquista quando jovem, viajou pela Espanha envolvida com a luta feminista, e num determinado momento da vida entrou para o partido socialista e virou prefeita da cidade. Ela era muito viva, me contava as coisas com muita gana, sempre me dizendo: “Você tem que lutar! Seja uma mulher forte, vá atrás dos seus desejos, lute!” Peguei o trem de volta escrevendo a letra da canção, que musiquei assim que cheguei ao Brasil.

Qual sua opinião sobre a situação da cultura e da política no Brasil atualmente? Como tem visto o cenário político atual, com esse conservadorismo e tradicionalismo cada vez mais presente?
Trabalhar com cultura de maneira independente sempre foi uma tarefa muito difícil. Mas o atual momento político está nos mostrando que tudo pode ainda piorar. Não só em relação à cultura, mas também no que diz respeito aos direitos fundamentais como saúde e educação. Neste governo ilegítimo do Temer, estamos observando medidas que vão totalmente contra o bem estar da população, das relações sociais, das populações indígenas e das minorias, enquanto as grandes empresas, bancos e corporações são privilegiados. Neste quadro, então, o que devemos esperar dos investimentos em cultura? De todo modo, já faz tempo que quem dita os rumos da cultura no Brasil é a iniciativa privada, que reverte verba de imposto para patrocínios e escolhe arbitrariamente o perfil artístico que vai melhor representar a sua marca para o público. Acredito que seja necessária a luta pela criação de políticas públicas mais democráticas e plurais, que possibilitem à qualquer cidadão o acesso à cultura e ao fazer cultura, afinal a arte pode ser transformadora dos pensamentos, das crenças, da força enquanto ser humano.

– Rafael Donadio (Facebook: rafael.p.donadio) é jornalista do Diário do Norte do Paraná. A foto que abre o texto é de Sara Braga.

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