Conexão Latina: La Hermana Menor

por Leonardo Vinhas

Conheci a banda uruguaia La Hermana Menor por uma maneira que é cada vez mais rara: ouvindo-a pela primeira vez numa loja de discos. Era novembro de 2010, estava num estabelecimento do tipo em Montevidéu e uma turista alemã pedia aos balconistas que lhe mostrassem “bandas independentes uruguaias”. A já tradicional simpatia charrua fica ainda mais simpática quando solicitada por uma bela jovem de olhos azuis, então muitos discos se sucediam. Lá pelas tantas, soa uma melodia tão melancólica quanto envolvente, abrindo caminho para outras, todas mantendo a equação entre lassidão emocional e beleza, mesmo que com variações de andamento. Afeita ao punk, a garota dispensou o disco na quarta faixa, justamente a canção-título. Pedi licença e comprei a bolachinha (e fiz uma nova amiga). Era “Canarios”, terceiro álbum do La Hermana Menor.

Incontáveis audições depois, já de volta ao Brasil, tive inesperada dificuldade de encontrar informações confiáveis sobre a banda. Um ano depois, eu daria início à coluna Conexão Latina, aqui no Scream & Yell, e vários músicos e jornalistas uruguaios com quem conversava mencionariam a banda entre suas preferidas, e até a apontariam como “fundamental” no rock uruguaio. Mas havia poucas reportagens a respeito, a maior parte delas na imprensa argentina, o site da banda estava permanentemente “em construção” (agora está ok: www.lahermanamenor.com), e mesmo encontrar seus discos para download, legal ou ilegal, não era fácil.

Corta para 2014: consigo o contato da banda com o empresário da banda La Vela Puerca. Chego enfim a Tussi Dematteis, vocalista, compositor e único integrante original. Ele me conta que a banda tinha lançado um disco em 2013, “Todas las Películas Son de Terror.” Pergunto onde comprar ou ouvir o disco online e ele me sugere baixa-lo na web ilegalmente, já que não haveria onde ouvi-lo em streaming… Decididamente, não há muitas bandas que se comportam como La Hermana Menor.

Na verdade, são muitas as particularidades desse hoje sexteto, a quem poderia se definir como indie, porque independentes e porque assumidamente influenciados por Yo La Tengo, Jesus & Mary Chain e Pavement. Procurando um pouquinho mais, notam-se influências folk, pós-punk e shoegazer. Só que tanta informação conhecida e imediatamente reconhecível vira algo novo. Explicar como isso acontece não é tarefa simples.

Contribui muito para tanto a voz de Tussi, cheia de modulações apesar de grave, tratada na composição como outro instrumento, e não só como meio para fazer soarem as (excelentes) letras. Mas os arranjos e as harmonias ultrapassam a simplicidade das melodias, com timbres bem cuidados até quando o objetivo é a estridência (como “Tesla” ou “Inútil”), criando paisagens visuais que singularizam cada composição.

No livro “Barulho”, de André Barcinski, Jello Biafra definia o som dos Dead Kennedys como “visual”, de modo que era impossível pegar a letra de uma canção e adequá-la à música de outra, já que cada uma tinha seu clima próprio. Ainda que em nada se pareçam com os DKs, o mesmo pode ser dito desses uruguaios, que conseguem evocar até a arquitetura montevideana nos climas de “Parque Rodó”, sublinhar um estado anímico de ironia e deboche em “Doc”, trazer tempestades elétricas em “Tesla”, disparar o andamento de um country resignado como “Carlos María Isabel”, quebrar o sacolejo indie com “Momo contra Satán”… A variedade impressiona, principalmente por manter-se… coesa.

Apesar de estar na ativa desde fins de 1997 (se descontar um período inconstante entre 1991 e 1993), a banda tem apenas quatro discos de estúdio: “Ex” (2003), “Todos Estos Cables Rojos” (2007), “Canarios” (2010) e “Todas las Películas Son de Terror” (2013). Da formação atual, ninguém é músico em período integral e quase todos tocam em outras bandas – algo bastante comum ao cenário musical uruguaio (mesmo Jorge Drexler, possivelmente o nome mais conhecido do país no exterior, demorou anos para abandonar a medicina e se dedicar integralmente à música). Tussi Dematteis, inclusive, é o pseudônimo de Gonzalo Curbelo, editor de cultura do jornal La Diaria.

Na entrevista a seguir, essa condição de “música como não-profissão” é debatida, bem como os álbuns recentes, a presença digital de La Hermana Menor, o valor da música e a garotice de Thurston Moore. Com lucidez e sinceridade cada vez mais raras no rock, Dematteis dá mais algumas provas, além das já registradas em disco, de porque há poucas bandas como La Hermana Menor.

No final de 2014, La Hermana Menor fez muitos shows. Foi um período de intensa atividade, não muito comum à banda. É um indício do que vai ser 2015?
Sinceramente, espero que não; quer dizer, espero que estejamos ativos, mas não tanto em relação aos shows. Temos andado muito quietos no aspecto compositivo, que é pessoalmente o que mais me interessa na banda, e isso tem sido em parte por uma sucessão muito intensa de shows que não nos deixou tempo para nada. Creio que isso nos caiu bem porque conseguimos um nível de resolução no palco que não tínhamos há mais de cinco anos, mas acabou sendo uma experiência um pouco extenuante. Há bandas que tocam muito mais seguidamente, mas suponho que eles não têm que ir trabalhar no outro dia de manhã.

Um desses shows foi abrindo para o Thurston Moore. Como foi a experiência? Imagino que ele tenha sido em algum ponto um referente importante para a banda.
Houve um tempo em que pelo menos eu estava fascinado pelo Sonic Youth, mas acho que fomos só eu e o José [Nozar], o baterista, quem éramos de fato seguidores da banda, embora todos evidentemente a conhecessem. Foi um bom show, tanto por parte dele como nossa. Ele é tipo um menino altíssimo de cinquenta e tantos anos, terminamos de tocar e ele veio correndo nos dar parabéns por termos tocado “Guts”, do John Cale.

Você já disse em entrevistas que a banda não é prioridade para nenhum dos integrantes, nem mesmo para você. Só que já são quase 18 anos na ativa. Qual papel ela tem em suas vidas para que vocês continuem existindo e produzindo coisas novas há tanto tempo?
Realmente não tenho uma resposta única para essa pergunta, até porque suponho que cada integrante tenha sua resposta pessoal. No que me diz respeito, acho que os motivos vão mudando como tempo. Neste momento, creio que o principal atrativo é simplesmente o quanto é interessante para mim a conexão musical que temos nos ensaios e as possibilidades de aproveitar isso compositivamente. Nós tocamos para nós mesmos, como sempre. Porém, neste momento existe uma conexão simultaneamente musical e humana muito forte. Há bandas que se movem a partir de uma espécie de missão, de projeto de sucesso e projeção. Nós, mesmo que isso soe pretensioso e esnobe, somos um projeto artístico. Não é uma missão, é uma comunhão.

“Canarios” tinha um aspecto cotidiano muito forte nas letras, algo de parar e observara o dia, as pessoas, os detalhes das ruas. “Todas las Películas Son de Terror” parece refletir um outro momento: tem mais personagens, menos coisas em primeira pessoa. O que pesou para essa mudança?
É, é um pouco por aí: “Canarios” é, no que me diz respeito, o mais pessoal dos discos de La Hermana Menor. Havia um conceito claro e uma necessidade minha de trabalhar com minha memória e meus afetos. “Todas las Películas…” teve uma gênese mais dispersa, menos focalizada. Foi composto por restolhos de uma banda que estava se despedaçando e o disco é o fio que a manteve unida.

Me parece, em certa medida, um disco cínico, ainda que com humor. É uma reação a coisas que não te caem bem ou apenas uma outra maneira de escrever?
Não gosto da palavra “cínico” porque acredito que implica em um distanciamento amoral de algo; parece-me mais correto dizer que o humor de “Todas las Películas…” é exasperado, um recurso para que não caia tudo em algum lugar muito sombrio. Foi um período estranho na banda, já que a maior parte dela estava vivendo uma experiência tão nova quanto fascinante de serem pais pela primeira vez, e eu estava vivendo uma experiência ruim de abuso de tóxicos e desorientação vital. Não é de se estranhar certa esquizofrenia no disco (nota: e de fato, há desde uma balada tristíssima como “El Bar frente a la Clínica de Abortos” como a mordacidade pesada de “Doc” e o humor “boa vibe” de “Carlos María Isabel”, para ficar em alguns exemplos “esquizofrênicos”).

Outra mudança evidente é que volta um pouco aquele clima de ensaio, de jam, dos primeiros discos, com uma preocupação maior com as ambiências. “Canarios” foi o mais ”planejado” da discografia de vocês?
“Canarios” foi um disco que já estava pronto, salvo por alguns espaços livres como “El Muelle”. Quer dizer, tudo estava composto e arranjado muito antes de entrarmos para gravar. Quando fizemos o “Todas las Películas…” tínhamos algumas canções e uma porção de borrões e coisas feitas pela metade. Originalmente, era um disco mais roqueiro e caótico, mas na seleção de ideias que fizeram os produtores (o tecladista Ezequil Rivero mais Pau O’ Bianchi, ex-integrante da banda cult uruguaia 3Pecados, e Juan Branaa), muito disso ficou de fora. Mas é certo que não tínhamos um plano nem nada, por isso recorremos a produtores em quem confiávamos para que se encarregassem de selecionar e organizar. Finalmente acabou saindo um disco relativamente convencional.

Acho engraçadíssimo um verso de “Doc” que diz “quando você já não é mais o que era e nem o Cuarteto é El Cuarteto de Nos”. El Cuarteto está assim tão ruim na sua opinião? (risos)
Não, na verdade não. Olha só, o Cuarteto de Nos cresceu muito em termos de público nos últimos anos e mudou muito sua sonoridade e o espírito de suas canções, e muitos dos fãs antigos da banda os rechaçaram por isso. Não é o meu caso, eu creio que eles têm feito coisas muito boas. Mas a mudança foi tão notável que eles não parecem mais a mesma banda. É como comparar o Fleetwood Mac do Peter Green e o do Lindsay Buckingha: os dois são bons, mas não são a mesma banda, ainda que tenham o mesmo nome. Foi isso que quis dizer.

Já que falamos nisso, o que você tem a dizer sobre os artistas mais mainstream do Uruguai? Sei que o mercado daí é pequeno e que o termo “mainstream” representa um universo menor, mas ainda assim, há bandas que hoje gozam de muita projeção no país e também em mercados vizinhos.
Não sei, não quero generalizar. A música uruguaia era bastante estranha, tradicionalmente, e nos últimos tempos vem se tornando bastante indistinta à de outros lugares. Mas tem de tudo: há bandas que tem seus rasgos pessoais e outras que não. O que me assusta – e não é um problema só do Uruguai, mas do mundo inteiro – é que o núcleo das bandas de sucesso seja todo de pessoas com quarenta anos ou mais. Se for levado em conta que a maioria do público musical é muito mais jovem, significa que o elemento de identificação com o novo se deteriorou muito, e que os jovens veem parques temáticos de emoções de outras gerações. Para mim, a música é outra coisa, só que não sei se [isso que está aí] é culpa dos músicos ou do público.

Na parte musical, cada disco do La Hermana Menor tem uma identidade muito particular, nenhum deles soa como o outro. Daria para supor que é pela constante mudança de formação, algo que é sempre mencionado sobre a banda, mas você, Marcelo [Alfaro, teclados e guitarra], Ivan [Krisman, baixo e bandolim] e Juan [Sacco, guitarra] estão juntos há mais de oito anos (Nota: completam a banda o baterista José Nozar e o tecladista Ezequiel Rivero), então acho que as razões são outras.
Já é absurdo falar das “constantes mudanças de formação de La Hermana Menor”, já são quase dez anos que o núcleo da banda é o mesmo. O período instável foi apenas no começo, durante dois ou três anos. As mudanças musicais de disco a disco são produtos das decisões de todos, e do fato de sermos pessoas que se chateiam muito fazendo o mesmo. Nem mesmo tocamos ao vivo muitas das nossas canções mais conhecidas porque já as tocamos muitas vezes.

Quando falamos pela primeira vez e te disse que eu estava à procura do disco para escutá-lo, você me respondeu o seguinte: “apesar de não ter uma versão para baixar na rede, não acho que será difícil de encontrar no Soulseek e afins”. E a verdade é que foi bem difícil! (risos). Imagino que não te incomode que as pessoas baixem os discos de vocês. E o que acontece que imprensa e músicos falam tanto de La Hermana Menor, mas é difícil vê-los ao vivo ou encontrar seus álbuns?
Não sei por que foi difícil assim nos encontrar na rede. Vai ver os piratas se encheram de nós, porque era muito fácil achar os anteriores. Os discos não estarem no Bandcamp ou sites do tipo é por estarmos em um selo (Bizarro Records) e essa é uma das condições do nosso acerto com eles. Pra mim, isso não faz muita diferença, mas sou desses que creem que deve se pagar pela música ainda que seja uma quantia mínima, porque custa muito gerá-la e gravá-la, porque é um bem supérfluo que ninguém está obrigado a consumir e porque sou marxista e acredito na mais-valia. Mas a verdade é que não tô nem aí. O mundo é assim hoje. Porém, sei que no capitalismo as coisas sem valor material perdem valor simbólico, e esse é um dos motivos pelo qual as pessoas hoje em dia consideram a música uma espécie de decoração sonora, e não como algo que mereça um esforço para se acessar e prestar atenção.

Isso me faz te perguntar sobre algo que sempre penso: hoje se escuta música por toda parte. Apesar disso, ela parece ter se transformado em um acessório – uma “peça de decoração sonora”, como você disse. Quem se detém e presta atenção a ela é percebido às vezes como obsessivo, como um “geek da música”. Estamos com muito ruído e pouca apreciação musical?
Tem isso que te respondi antes. Mas de qualquer fora, acredito nessa de “you can’t fake real”. Em algum momento, se você não é um energúmeno, se dará conta da diferença entre algo que tem espírito e algo que se fez para parecer inteligente em alguma pequena comunidade hipster de merda.

Bem, para terminar, acho que é justo perguntar a uma banda que faz tão poucos shows: o que é preciso fazer – além de pagá-los, é claro – para termos La Hermana Menor no Brasil?
Pagar já está ótimo, e nem precisa muito: cobrindo os custos de viagem e estadia, e sobrando para comprar um par de caipirinhas, já ficamos felizes. Faz quinze anos que não vou ao Brasil e tenho saudade.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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