Entrevista: Os Lacraus

por Pedro Salgado, de Lisboa

A génese d´Os Lacraus começou em Queluz (próximo a Lisboa) em 1993, numa época em que Tiago Cavaco (vocalista e guitarrista) tocava com Ricardo (baixista) e Guel (guitarrista). Na época, as bandas sucediam-se e mudavam de nome constantemente. Mas, com o advento do selo Flor Caveira, em 1999, Tiago Guillul (aka Tiago Cavaco), gravou um seminal disco solo: “O Leproso Que Agradece”. Nele, o pastor batista aplicou Ramones como efeito sonoro e voltou a juntar as pessoas da igreja para um novo projeto.

Inicialmente, chamaram-se Borboletas Borbulhas, em homenagem a outro álbum barulhento de Cavaco, passando a designar-se por Gratos e Leprosos. O nome de guerra oficial, Os Lacraus, só veio em 2006. Pela audição de diferentes coletâneas da Flor Caveira sucediam-se exemplos de punk celebratório e sem rodeios do grupo: “Querem-me Mal As Filhas De Belial / Querem-me Mal As Filhas De Jerusalém” e “Dentro De Cada Libertino Há Um Rato De Sacristia” ou a festividade açucarada de “Cada Prancha, Um Tubarão”.

Durante a leitura de “Mistery and Manner”, de Flannery O´Connor, o vocalista d´Os Lacraus inspirou-se nos ensaios sobre a obra da escritora e assinou o tema “Canção Para Flannery O´Connor”. Paralelamente, o pastor adquiriu os sete primeiros discos de Bruce Springsteen, e o DVD do Hyde Park, e sentiu que era chegada a hora de afirmar uma indomável vontade de fazer rock sem amarras. O contexto implicava trabalhar com Os Lacraus e o desafio foi aceito, com a produção a cargo de Armando Teixeira.

Colmatando um pequeno hiato, o grupo apresentou recentemente o álbum “Os Lacraus Encaram O Lobo”, na Musicbox, em Lisboa, de uma forma explosiva e salutarmente celebratória. Os doze temas primam pela profundidade, começando no soberbo exercício de rock de arena “Um Peito Em Forma De Bala”, passando pela rugosidade coberta a refrão suave de “Quando A Música Acabar Em Portugal” sem esquecer o mantra pauleira de “Condenados A Cumprir O Céu”, onde há uma citação de uma canção de Tom Zé: “Complexo De Épico”.

Pela tríade “magreza, suor e surdez” faz-se sentir a força d´Os Lacraus. Os alicerces começam na bateria de Ben e traduzem-se numa maior amplitude sonora, inspirando o público de diferentes formas dimensionais. Em http://www.myspace.com/lacraus são disponibilizadas algumas canções que ajudam a entender o processo criativo do conjunto. De Lisboa para o Brasil, o vocalista e letrista Tiago Cavaco conversou com o Scream & Yell. Confira:

O nome do conjunto pode funcionar como um manual de intenções para despertar as consciências ?
É uma questão interessante. Por um lado, a minha reação normal é fugir de coisas que signifiquem programas ou manifestos. Por outro lado, também é verdade, e não seria honesto da minha parte, não perceber, pela música feita, que os resultados podem ser vistos como provocatórios ou ironicos. No entanto, quando o disco d´Os Lacraus é editado, ele origina respostas e não fugimos dessas reações. Mas, se é que se pode falar em defesa, o álbum é de rock n´roll e tem potencial para ser intencional. “It´s Only Rock N´Roll (But I Like It)”, como diriam os Rolling Stones.

No disco, existem diversos conceitos entre os quais fé e morte. Qual é a mensagem que pretendem transmitir ?
Sem dúvida que a fé está sempre presente, já nem me preocupo em afastá-la ou trazê-la mais, ela é o aspecto mais importante da minha identidade. A morte aparece também em “Um Peito Em Forma De Bala”, e não é uma reflexão sobre essa condição porque o rock não se propõe a fazer cogitações sobre esse assunto, mas é sobre isso que estamos cantando. Porque não uma música de rock abordar a questão da esperança, de quem está cantando, e olhar para a morte como algo que não é necessariamente mau? Não nos juntamos para fazer um plano missionário para este trabalho, mas esse pensamento acaba por passar porque somos as pessoas que somos. Tudo acontece naturalmente, uma vez que ponderamos estas coisas e elas passam para a música. Há uma mensagem de esperança, não genérica, mas ligada ao cristianismo e à nossa fé. Isso é evidente no disco, embora não seja uma preocupação formal.

Portugal também está presente em suas canções. O que une “Quando A Música Acabar Em Portugal” a “Isto Não É Lisboa, É Pompeia” ?
É uma boa pergunta até porque os temas vêm seguidos (risos). A primeira música acusa mais sensibilidade ao contexto português de agora e, ao mesmo tempo, reflete a ideia d´Os Lacraus sobre o apocalipse. O refrão evidencia a convicção de que quando tudo terminar a música continua. De qualquer modo, não quero matar as ideias que as pessoas possam ter sobre isso com as minhas explicações. Mas, acredito que para as coisas durarem é preciso abandonar essa preocupação, por paradoxal que isso pareça. Para nós, que fazemos música em Portugal, há que procurar uma certa perspectiva na ordem das coisas e aquilo que ficará não vai gerar preocupação com a longevidade. As canções vão sobreviver aos momentos sociológicos. Quando eu lia “Viagem dos Inocentes”, de Mark Twain, existe uma parte do livro em que ele vai a Pompeia e vê os destroços (uma passagem bonita e comovente). É algo que não associamos à escrita dele. Aquilo sensibilizou-me e pensei na ligação que poderia ter com a minha cidade. De certo modo, trata-se de uma canção anti-Lisboa. E mesmo com os seus defeitos, é uma forma de eu mostrar o meu amor pela capital portuguesa e não para a condenar.

Da atual cena musical brasileira, quais são os músicos ou bandas com quem mais se identifica?
O Brasil é tão grande e há tanta coisa acontecendo por lá… No entanto, pela tradição que manteve com a língua, permitiu que surgisse muita música interessante. A escolha é difícil de fazer porque existem demasiados exemplos de qualidade. Há uns anos havia uma cena pop psicodélica que eu apreciava bastante. Recordo-me com agrado do Supercordas. Pela minha própria pequenez, uma das coisas que tenho escutado são artistas, num contexto muito apertado, evangélico. Temos um amigo, Eduardo Mano, que faz música religiosa interessante mas, ao mesmo tempo, junta-lhe um lado folk. No Brasil, estou constantemente a descobrir coisas que não conhecia. Quando escutei Jorge Ben Jor senti que estava muito ligado ao meu gosto e ao que tento fazer. Em 2008, na época da descoberta do selo Flor Caveira, houve uma certa associação ao que o tropicalismo tinha feito e a partir daí descobri gente como os Novos Baianos. Eu sei que isso era mais do que conhecido no Brasil mas, para mim, era algo de novo. Se um português conseguisse cativar os ouvintes brasileiros, que nunca abandonaram a sua língua, isso seria um grande mérito. Mas, falamos de ordens de grandeza diferentes.

Sente que alcançaram o tal som grandioso, do Bruce Springsteen de “Born To Run”, com “Os Lacraus Encaram o Lobo” ?
Conseguimos à nossa maneira (risos). Quando o disco nasceu, a única exceção ao alinhamento do álbum foi “Canção Para A Flannery O´Connor”, a primeira música a ser feita, e os outros temas seguem uma ordem cronológica. Fiz essa música há cerca de um ano e pensei em gravá-la a la Springsteen. Por um lado, na época, tinha comprado os primeiros discos dele, numa edição economica. Por outro lado, encontrava-me muito com o Armando Teixeira (produtor de “Os Lacraus Encaram O Lobo”), ele gostava muito de “The River” e falamos nessa possibilidade. Essa disposição traduziu-se na vontade de fazer mais canções que evoluíram para o rock. Para conferir algum sentido, achei que seria melhor Os Lacraus assinarem o trabalho. Como o Armando se ofereceu para gravar eu não quis desperdiçar a oportunidade. Partimos para o álbum com uma ideia de Wall of Sound do Phil Spector, mas integrando uma forte componente de Springsteen. A banda não é virtuosa nem somos grandes intérpretes. O som ficou grande, mas é uma elevação que transporta as nossas limitações. Instrumentalmente, a bateria é o que leva, tem um som grande de sala, com a lógica do take direto mas gravada em takes separados. E a sonoridade motivou-nos tanto que o espectro acrescentado podia ser menor porque a bateria era a locomotiva. Quem escutar o disco pode denotar alguma pretensão, mas a nossa entrega é bastante imediata e isso satisfaz-me.

Suas performances transmitem várias sensações mas, acima de tudo, uma marca vincada de rock total. A chama d´Os Lacraus está para durar ?
Julgo que sim. Até porque é impossível não colocar em perspectiva os últimos anos de shows. Fazemos uma atuação rock e muito abrasiva. As pessoas achavam que os meus discos solo eram pop mas, ao vivo, eram muito mais intensos. No caso d´Os Lacraus é uma marca de água e não dá para fugir uma vez que as canções obedecem a isso. Anima-nos pensar numa certa imediatez para os concertos vindouros e, de certa forma, foi o que aconteceu no último show da Musicbox, em Lisboa, com todos os excessos roqueiros que o envolveram.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui

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