Allman Brothers no Beacon Theatre

texto e fotos por Itamar Montalvão, especial para o Scream & Yell

Março parece ser o mês do ‘Hajj’ para os fãs de uma banda de southern rock criada em Macon, Georgia. Tal como mulçumanos peregrinando a Meca, pessoas de todas as partes do mundo convergem este mês para Nova York a fim de testemunhar um evento tão enraizado na cultura da cidade quanto a Thanksgiving Parade ou a inauguração da árvore de Natal do Rockefeller Center: a série de concertos de primavera da Allman Brothers Band no majestoso Beacon Theatre, no coração do Upper West Side

Pisar no teatro de 1929 já é o primeiro soco na cara. Projetado pelo arquiteto norte-americano Walter Ahlschlager em estilo art déco, o Beacon é uma das mais belas construções que seus olhos serão capazes de captar. Tudo, absolutamente tudo, é concebido com um senso estético e acústico raro. O palco é visto sem obstáculos de qualquer ponto do teatro, que é menor do que parece ser em gravações (como a do “Shine a Light”, documentário show dos Stones gravado por Scorsese na casa em 2007) e a acústica foi tratada à perfeição. O tom da luz, a temperatura, o público, tudo gera o ‘ambience’ que faz o espectador realmente acreditar estar fazendo parte de um acontecimento único.

“No place like home”. A Allman Brothers Band tem uma longa relação de amor com Nova York. Tudo começou com os shows no lendário Fillmore East, em 1971, registrados ao vivo em um dos melhores discos da história do rock. Em 1989, ainda com Dickey Betts, os Allman Brothers estabeleceram um novo marco no calendário cultural de Manhattan ao darem início a uma tradicional turnê anual, carinhosamente conhecida como ‘Beacon Run’. A tradição tornou-se tão forte que em duas décadas apenas em 2010 os shows deixaram de acontecer.

Um pré-agendamento do teatro para “Banana Shpeel”, um espetáculo do Cirque du Soleil, fez com que a banda subisse uns 100 quarteirões até o United Palace Theater, em Washington Heights. Um desastre total. O espetáculo do Cirque foi um fracasso, a vibe do United afastou o público e Jay Marciano, presidente da MSG Entertainment, empresa que administra o Beacon, precisou pedir desculpas públicas a Gregg Allman, Butch Trucks e Jaimoe durante uma entrevista coletiva em novembro do ano passado, quando anunciou que a banda estava voltando a seu devido lugar. Como na canção, ‘the Gypsy flies from coast to coast, but back home he’ll always run…’

Com 41 anos de formação e 25 álbuns lançados, os Brothers têm um repertório suficiente para não repetir uma canção sequer durante uma série de shows. Mas muito mais importante do que a banda toca é como ela toca. Isso é o que torna os Allman Brothers essa massa de som tão especial para uma legião de fãs que parece pedir para ser atropelada por ela. Com uma seção rítmica composta por duas baterias (Butch Trucks e Jaimoe), percussão (Marc Quinones) e um dos mais versáteis baixistas da atualidade (Oteil Burbridge), a cama está feita para que Gregg Allman (piano e Hammond B-3), Derek Trucks e Warren Haynes (guitarras) deitem e rolem em intermináveis viagens sonoras que parecem puxar a plateia para outra dimensão. A música, que já tinha passado no teste do tempo, mostrou ser capaz também de desafiar o espaço.

Na primeira noite, o show começou pesado com “Trouble No More” e “Midnight Rider”. Com Bruce Hampton e Duane Trucks como convidados, seguiram com “Turn On Your Lovelight” e a partir daí o que se viu foram jams intermináveis, com Warren Haynes especialmente inspirado em “Leave My Blues At Home”. Após um intervalo de 20 minutos, onde lendas do blues eram projetadas no telão, a banda voltou com “Dreams”, para êxtase dos presentes.

Nesta última, a inspiração parece ter caminhado uns quatro passos para a direita e tomou Derek Trucks de assalto, que parecia possuído num dos melhores solos de guitarra já feitos ao vivo. Mais uma convidada da noite, Susan Tedeschi (mulher de Derek Trucks), juntou-se à banda para uma versão de “Any Day”, clássico de Eric Clapton gravado na fase Derek & The Dominos. O set fechou com uma versão de “In Memory Of Elizabeth Reed”, que faz o público acreditar que Derek Trucks e Warren Haynes são compostos por cabeças, troncos, membros e guitarras. Para o bis, sem nenhuma piedade, “Into The Distance”, de Van Morrison.

A segunda noite marcava o fim da temporada e o show número 200 da banda no Beacon. Um marco. A performance havia de ser à altura deste evento histórico. O set fpi aberto com duas pedradas, “Ain’t Wasting Time No More” e “Every Hungry Woman”, com Gregg Allman cantando como se fosse a última apresentação de sua vida. Depois de uma pitada de jazz em “Kind Of Bird”, convidaram ao palco o lendário bluesman Hubert Sumlin, com quem tocaram “Smokestack Lightning” e “Key to The Highway” para delírio geral.

A festa continuou com outro titã do blues, Dr. John, que trouxe na bolsa as especiarias de New Orleans para esquentar uma noite gelada de Manhattan numa versão altamente vudu de “I Walked In Gilded Splinters”. Depois, Dr. John deixou o piano e foi para a guitarra, colocando o Beacon abaixo com “Let The Good Times Roll”. Por fim, voltou ao piano para o tiro de misericórdia, “Right Place, Wrong Time”, com Susan Tedeschi como backing vocal.

Com um primeiro set eletrizante assim, a banda aumentou a responsabilidade para o segundo. Para deixar as coisas onde estavam, começaram novamente com “Dreams”, só que desta vez com Warren Haynes no solo principal. Seguiram com a vigorosa (e favorita) “Black Hearted Woman” e voltaram numa sequência de blues com “Who’s Been Talking”, “It Takes A Lot to Laugh”, “It Takes a Train to Cry” e “One Way Out”. A noite já estava ganha quando Bruce Katz subiu ao palco para, ao piano, tocar com os Brothers uma versão épica de “Jessica”, encerrando o show. No bis, após brincar com o tema de “Little Martha”, a banda seguiu todo o peso do baixo de Oteil Burbridge para um final demolidor com “Whipping Post”, encerrando uma noite inesquecível, um show especial que tem o poder de acompanhar você pela eternidade.

Não sei se há reencarnação, mas se houver, foram os melhores shows de qualquer vida que venha a ter. Coloque na agenda: março de 2012, Allman Brothers Band no Beacon Theatre, em Nova York. A peregrinação vale a pena.

8 thoughts on “Allman Brothers no Beacon Theatre

  1. É bom ver um show onde os músicos tocam bem, o cantor canta bem e a banda vai além da pose, do hype e do estilo fashion. Será que os fãs do Strokes um dia vão entender isso?

  2. Eu adoro Strokes e adoro Allman Brothers. Assim como adoro Gov’t Mule e Arcade Fire.Tem gente reclamando do hype mas aposto que nunca ouviu um disco inteiro do Allman Brothers.

  3. Uau!!! Allman Brothers no S&Y!!! Nem acreditei quando vi. Os Brothers são minha banda favorita desde 1994, quando ouvi os caras pela primeira vez no Woodstock 94, num flash da Bandeirantes. Comecei a procurar os discos (pré-internet, lembram?) como um louco. Estava no 1º Colegial, sem emprego e porra nenhuma. Ou seja, bem complicado. Mesmo assim, fui comprando aos poucos. Primeiro o At Fillmore East, versão untradisk maravilhosa. Depois veio Eat a Peach, Idlewild South e o primeirão, homônimo. Li a biografia, Midnight Riders e encomendei tudo que os caras lançaram. Parabéns, Itamar! E que puta inveja. Espero que você escreva mais, sobre bandas que estão além dos hypes.

  4. Certamente a melhor banda de todos os tempos. Sobreviveu a tragédias, e mesmo com saída de Dickey Betts (um monstro), deu a volta por cima com Warren Haynes e com o gênio Derek Trucks.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.