O Dia da Coruja, Leonardo Sciascia

por Rodrigo Levino

A idéia geral da máfia italiana sedimentada no imaginário coletivo, muito pelo modo como foi retratada no cinema, tem mais a ver com mafiosos italianos agindo ou adaptados aos Estados Unidos do que a organização quase tribal que até hoje perdura, por exemplo, na Sicília, sul da Itália, desde o fim da idade média. Capos e consiglieres  fazendo fortuna – e matando por isso – com os lucros de negócios ligados ao lixo, a construção civil e mais recentemente ao comércio de drogas dizem pouco a respeito de costumes rudes dos padrinos antepassados

Aqui e ali, vide a temporada de Michael Corleone na terra natal do pai, Don Vito, recluso após vingar o atentado sofrido pelo chefe do clã retratado na saga “O Poderoso Chefão”, ou nas digressões do estupendo ‘Honrados mafiosos’, de Gay Talese, ouvem-se ecos de como viveram e a que tipo de regras e costumes estavam submetidos os, digamos, über mafiosos, numa Sicília agrária e semi-feudal. A atual geração, de fanfarrões, que não foi abatida pelas ações do juiz Giovanni Falcone na década de 90, está bem documentada em ‘Gomorra’, do jornalista Roberto Salviano.

É um extrato da realidade crua e roots que trata o escritor italiano Leonardo Sciascia no indispensável “O Dia da Coruja” (Alfaguara), relançado no Brasil, originalmente escrito no começo dos anos 60 e considerado um clássico contemporâneo da literatura italiana.

Sciascia, um prolífico intelectual, autor de dezenas de romances e ensaios, lançou mão de um romance policial com elementos de noir – não fosse a Sicília uma região irremediavelmente ensolarada! – para engendrar um enredo onde a máfia destila seus métodos cruéis e paradoxalmente cercado de princípios éticos indivisíveis.

Um código particular onde roubar é um crime mais grave do que matar. E sobre matar, a certa altura um dos personagens explana ao ser perguntado se ‘parece coisa de homem matar ou mandar matar outro homem?’: ‘Nunca fiz nada parecido. Mas já que está perguntando como passatempo, só para discutir coisas da vida, se é justo tirar a vida de um homem, eu digo: primeiro tem de ver se é um homem’. Leia-se homem, alguém que se encaixe dentro da estrutura daquela famiglia, cujo caráter de cada membro é moldado pela violência, pela lealdade e até pela religiosidade.

A trama tem como fio condutor a misteriosa morte de um pequeno empreiteiro (baseado no fato real do assassinato de um sindicalista, em 1947), descrita de uma maneira minimalista e ainda assim capaz de pôr o leitor diante de uma tela em que a expressão de cada uma das testemunhas diz mais a respeito do acontecido do que se fosse o caso de descrever os tiros em si. Sciascia é seco e eficaz como o estampido dos disparos.

Um assassino de cara limpa reconhecido por dezenas de passageiros que jamais falarão, regidos que estão pela lei do silêncio; um trabalhador braçal que na rua em frente à praça onde se dá o acontecido some sem deixar vestígios, trazendo angústia à sua esposa infiel; um ministro e um deputado discorrendo sobre corrupção em empreitadas públicas e códigos de honra, em Roma, distante centenas de quilômetros dali. Elementos aparentemente sem ligação entre si que aos poucos, com rara habilidade, Sciascia sob o mando do competente e honesto capitão Bellodi, designado para a elucidação do crime.

Com meticulosidade e frieza, Bellodi, um forasteiro destemido, enfrenta senhores aparentemente honrados e honestos, religiosos, vigorosos pais de família (‘Para o siciliano a família é o que mais lhe importa, o Estado representa o que há de pior: repressão, impostos, leis’), também maus, cínicos, dissimulados, achacadores e completamente alheios ao mundo tal qual o conhecemos com suas leis e limites.

Vê-se em cada emocionante duelo nos depoimentos que Bellodi arranca dos signores uma noção particular de como deve ser regido o mundo, pela força e pelo dinheiro, onde democracia (‘uma palavra cheia de vento’) e justiça variam conforme o sobrenome ou a falange a que pertença cada um deles, capazes inclusive de fazer o poder público desacreditar da existência da máfia como organização criminosa por décadas. ‘O que é essa tal de máfia? Ela existe?’, pergunta um deputado no decorrer dos fatos.

Em alguns instantes, Sciascia, através de Bellodi, intromete-se na obra deixando um pouco ao largo a trama para tecer esclarecedores comentários históricos sobre a máfia, a ofensiva a que resistiu do fascismo, o que alimentou um monstro ainda mais perigoso: reprimidos pelo movimento fascista no pré-guerra, os mafiosos recolheram-se por certo período (para atacar adiante) dando a impressão à plebe de que a ditadura traria enfim a liberdade, vejam só, sempre almejada diante da arbitrariedade com que era tratada pelas famiglias. Um contra-senso, assim como o desfecho melancólico mas único possível diante de uma realidade tão engessada, tratada nesta novela de maneira esmerada na linguagem e nas imagens, mesmo que em nenhum momento um mafioso irrompa a cena com uma espingarda de cano curto ao som de “Gimme Shelter”.

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Rodrigo Levino é jornalista, distribui sabedorias no twitter @rlevino e escreve na revista Poder além de colaborar com diversas publicações, entre elas, o jornal O Estado de São Paulo e a revista Piauí

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