Mostra de São Paulo: Onde os Fracos Não Têm Vez

por Marcelo Costa

Os geniais irmãos Coen retornam ao universo da criminalidade (que rendeu a obra-prima “Fargo”, de 1996) neste que é o melhor filme da dupla desde “O Homem Que Não Estava Lá”, de 2001. Adaptado do livro “Onde os Velhos Não Tem Vez”, de Corman McCarthy, “Onde os Fracos Não Têm Vez” traz todos os elementos de um bom filme dos Coen: é denso, violento, mas com ótimas passagens de humor em meio a tempestade de drama. Se passa no oeste norte-americano, perto da fronteira com o México, mas não é um western. É mais um retrato desiludido da sociedade moderna travestido de filme de ação. Apesar do xerife, apesar da caçada de gato e rato, apesar das manchas de sangue no tapete.

Um ex-combatente do Vietnã encontra um cenário surpreendente no meio do deserto: várias camionetes paradas e chumbadas de balas de diversos calibres, corpos por todos os lados, e um carregamento de cocaína abandonado. Apenas uma pessoa viva (por poucas horas) que só sabe pedir água… em mexicano. Poucos metros dali, um morto com uma maleta com 2 milhões de dólares. Ele leva a maleta, mas sabe que o dono virá atrás. O dono não vem, mas manda alguém: Anton Chigurh (em uma atuação que tem que render uma indicação ao Oscar para Javier Bardem; nota atualizada do editor: rendeu a indicação e vai lhe render o Oscar) é um assassino psicótico sem senso de humor, sem piedade, sem o mínimo de dúvida sobre sua missão: matar. Quando surge em cena, Chigurh faz o espectador tremer.

Começa, então, uma perseguição que deixará um rastro de corpos para trás enquanto disserta sobre a loucura que virou a vida no mundo moderno. Um xerife, em certo momento, comenta com outro: “Eu nunca achei que fosse estar vivo para ver meninos com cabelos azuis e argolas no nariz”. O outro (interpretado por Tommy Lee Jones), mais experiente, apenas meneia a cabeça. Mais tarde irá comentar com seu ajudante enquanto lê o jornal de manhã: “Dois homens alugavam quartos para velhos. Eles matavam os velhinhos e enterravam no próprio quintal. Antes, torturavam. Os vizinhos só foram perceber algo diferente qual um velhinho conseguiu fugir com uma coleira de cachorro para a rua. Só por isso. Matar e enterrar no quintal não chamava a atenção”. O ajudante ri da história (e leva todo o cinema a fazer o mesmo), mas pede desculpas em seguida. O xerife completa: “Tudo bem, eu também dou as minhas risadas”. Que mundo é esse que vivemos mesmo, caro leitor?

Essa terra de ninguém filmada pelos irmãos Coen ganha proporções assustadoras em uma cena capital de “Onde os Fracos Não Têm Vez”: no balcão de um posto de gasolina, nosso matador frio, inconseqüente e sem o mínimo de pudores quanto a apertar o gatilho de uma espingarda calibre doze com silenciador (ou de sua “companheira” pouco usual) pergunta ao velho dono do estabelecimento qual o total de sua conta. O velho faz um gracejo, mas não se faz um gracejo com Chigurh. Porém, como ele iria saber?

Como podemos saber se a pessoa que se senta ao nosso lado no ônibus é um assassino, a nossa metade ou sei lá o que? Como podemos saber se o cara que nos ameaçou no trânsito após uma barbeiragem ou aquele que encanou que você cantou a namorada dele tem uma pistola 9 milímetros em seu porta-luvas? Como saber o limite da loucura humana quando jovens atacam em bando e matam uma pessoa por não terem conseguido um desconto de 20 centavos? Não temos como saber. E isso é tremendamente assustador, vamos combinar.

“Onde os Fracos Não Têm Vez” recoloca os irmãos Coen na linha após uma série de filmes medianos que estavam maculando uma carreira prodigiosa. De mensagem pessimista, este ensaio sobre a criminalidade, violência gratuita e a natureza humana ilumina – com uma lanterna – uma pequena centelha da vastidão do universo, e não podemos esperar mais do que isso de uma obra cinematográfica. Poucos conseguem fazer rir enquanto destroços do mundo caem sobre nossos ombros. Poucos conseguem contar uma história tão bem contada e tão cheia de detalhes. Os irmãos Coen jogam pás de cal sobre a fé do público no mundo moderno num filme em que o desamassar do papel laminado de um bombom causa calafrios. Sensacional.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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