Entrevista: “Não me contento com o nicho”, diz Papisa, que está lançando o álbum solar “Amor Delírio”

entrevista por Leonardo Vinhas

Quando foi fazer seu projeto musical solo, Rita Oliva escolheu apresentar-se sob a alcunha de Papisa. Apesar de a palavra ter múltiplos significados, Rita inspirou-se principalmente na mitologia do Tarot, como ela explica nessa entrevista. O curioso é que a papisa tarótica é representada por uma mulher que se reveste de um manto que a protege da curiosidade profana. Se em “Fenda” (2019), seu álbum de estreia,A essa imagem descrevia perfeitamente sua música algo críptica e sombria, em “Amor Delírio” (2024), o novo lançamento, ela deixa o manto cair, não para desnudar-se, mas para deixar as pessoas se atraírem pela curiosidade.

Como o próprio título sugere, “Amor Delírio” é um disco afetuoso e solar. Não tão delirante no sentido literal da palavra, visto que não há picos emocionais nem uma lisergia pesada. Mas certamente diferente do que a musicista e compositora vinha apresentando até então, trazendo intenções mais pop e letras mais diretas. Essa sonoridade nasce da intenção confessa de Rita parar de “falar só com a bolha”, mas também de uma vontade enorme de voltar a sentir a vida pulsar depois do duro período de reclusão pandêmica que todos vivemos. Nasce, ainda, da parceria com o músico e produtor Felipe Puperi, que está à frente do Tagua Tagua.

Para o bem e para o mal, “Amor Delírio” tem semelhanças com o trabalho de Puperi. Digamos que quem não gosta da sonoridade de psicodelia pop à brasileira pode ter dificuldades em deixar “Amor Delírio” repousar nos ouvidos. Mas Papisa tem a sua magia de deixar boa parte da sua identidade e de suas referências intactas, conferindo mais personalidade ao álbum.

Esses dois lados podem ser experimentados em dois dos três singles que precederam o álbum. A faixa-título, de ótima letra, tem todas as características que já soam algo viciadas nessa estética contemporânea: o beat à Tame Impala no refrão, o feat obrigatório (no caso, com Luiza Lian), os efeitos e distorções nas vozes. Já “Melhor Assim” é uma preciosidade, onde as referências pop são filtradas por influências do indie contemporâneo, e valorizadas pelo talento de Puperi na produção. Cabe ainda destacar a masterização de Brian Lucey, responsável pelos trabalhos de Black Keys (entre eles os megassucessos “Brothers” e “El Camino”), Lizzo e Cage The Elephant.

Ao longo do álbum, esses dois lados de Rita supracitados vão surgindo e coexistindo, com maior protagonismo ora para um, ora para outro. Ao final de algumas audições, é perceptível que Papisa mudou e está em busca de mais luz, seja para iluminar a própria vida, seja para trazer mais atenção ao seu trabalho. Vale acompanha-la nessa busca, e é por isso que o Scream & Yell abriu a câmera para falar com ela numa das tardes quentes de abril.

De alguma forma, a psicodelia sempre esteve presente no seu trabalho. O “Fenda” não é um disco diretamente psicodélico, mas tinha sua própria viagem, ainda que sombria. Esse disco é muito mais solar e traz um lado lisérgico mais consoante com isso, as melodias têm mais espaços entre si. Foi um movimento natural, embalado pela produção do Felipe [Puperi], ou foi algo mais inconsciente?
Esse é um disco muito mais solar, sim. Eu estava até organizando alguns materiais que falavam justamente sobre tudo no disco ter um fundinho de sol, mesmo quando tem melancolia. E foi uma decisão consciente, desde a composição. “Fenda” foi um disco muito denso. E logo depois que lancei, fechou tudo por causa da pandemia, e acho que todos nós caímos naquela densidade. Fiquei em um momento de luto pela pandemia – pelo mundo inteiro, pela música que tinha parado. Depois disso, percebi que eu queria realmente a música como um recurso para trazer encantamento para a vida, trazer sol, e foi essa a minha busca. Começou com uma intenção antes das composições, e isso acabou refletindo desde os acordes maiores até a escolha por canções em vez de músicas mais mântricas. O “Fenda” foi mais tensão do que composição, e foi feito em um processo muito solitário. Pro “Amor Delírio”, a produção conta muito para dar essa leveza, porque já foi um processo muito leve e gostoso. A gente alugou uma casa em São Francisco Xavier, teve um trabalho prévio de seleção das músicas que envolveu o Felipe também, então ele tem parte grande nisso. Fomos eu, a Alê [Alejandra Luciani], que já trabalhava comigo, o Felipe, o Jojô e o Leo [Mattos], que são do Tagua Tagua também. O processo de gravação em si foi muito mais de banda, com todo mundo junto. Teve muita alegria durante esses dias na casa que a gente alugou, e acho que essa leveza, essa fluidez, vão acabar chegando no palco.

Outra mudança grande é como a sua voz entra nessas canções. Está um canto mais caloroso, mais aberto. O “Fenda” era mais sussurrado, mais grave – mais mântrico, como você disse.
Você tem razão quando você diz que o “Fenda” era em tons mais graves, porque eu quis conscientemente colocar isso no disco, até por ele estar num lugar um pouco mais aterrado e menos expansivo para mim. Era mais introspectivo. Mas não pensei nessa questão no “Amor Delírio”, concentrei mais nas canções mesmo. Mas sinto também essa abertura da voz, e consigo entender o que você tá falando. Isso se deve, eu acho, às próprias composições, e também a eu priorizar as composições [do ponto vista musical] acima da mensagem. Eu estava muito interessada na música, na melodia, nas harmonias. Mas o lugar da voz mudou, sim, e preciso reconhecer o trabalho do Felipe nisso também, porque ele me instigou muito a levar a voz para um lugar diferente, foi algo que ele trabalhou bastante na produção, e isso para mim foi interessante, porque eu estava acostumada a me gravar sozinha, decidir tudo sozinha, então meio que ficava só a minha visão de dentro, né? Acho que, talvez por eu ter usado justamente uma referência de fora, falando para ir por um lado ou outro, isso me permitiu levar a voz para outro lugar.

A turnê do “Fenda” foi abortada pela pandemia. Esse disco já foi feito em clima de banda, a formação está consolidada. Como vai ser a transposição dele para os palcos?
Já está sendo (risos). Acabei de voltar de uma turnê pelos Estados Unidos, a gente fez sete shows com a formação que gravou o disco. Minha intenção é continuar com todo mundo, porque são os músicos que estiveram muito dentro da gravação do “Amor Delírio”, tem o sotaque deles nos instrumentos, e a gente está integrado. Talvez tenha que ter um ajuste ou outro dependendo da data, porque eles também tocam bastante por aí como Tagua Tagua. É um grande desafio hoje para qualquer artista independente conseguir manter a formação, porque as pessoas acabam tocando com muita gente, mas a minha ideia é manter.

Você tocou no South by Southwest. Todos os artistas do Brasil e da América Latina que tocaram por lá com quem conversei disseram que a experiência do SxSw é ao mesmo tempo enriquecedora e frustrante, porque é um evento enorme, e acontece uma diluição gigantesca dos palcos pela quantidade de atrações. Alguns deles relataram ter um sentimento de auto engano por estarem tocando num espaço diminuto para pouca gente. Por outro lado, tem o imaginário que envolve o evento e tem um espaço muito grande para conviver com outros artistas, o que acaba criando não só networking mas vivências pessoais muito marcantes. Foi parecido para você?
Olha, entendo bastante o lado da frustração. É a minha segunda vez no SxSw: fui em 2018 solo e agora com a banda. Existe sim, essa diluição. É uma grande loucura em que tem muita gente e muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Dessa vez foi mais intenso ainda, porque a gente era duas bandas que compartilhavam os integrantes [Papisa e Tagua Tagua], foram muitos showcases, mas eu vejo o South by Southwest como uma grande porta para outras coisas, como a troca com outros artistas e com as pessoas da indústria. Ir com a cabeça de que seu show vai ser muito legal pode trazer frustração. Dessa vez, foi mais interessante para mim do que na primeira: consegui tocar mais, fiz shows mais relevantes, fiz o show case do El Sonido, da KEXP, que foi transmitido no site oficial do festival, então tive muito mais destaque do que da primeira vez. Mas não foi nada planejado: duas semanas antes recebi o convite, e só isso já fez valer a pena. Mas não dá para saber antecipadamente como vai ser, principalmente em termos de público.

Na indústria musical de hoje, podemos dizer que até o mainstream é um nicho. Mesmo quem é estourado parece conversar apenas com um determinado público, e fica difícil para um artista pequeno ou de médio porte sair da bolha: ele acaba tocando para os mesmos tipos de pessoas, nos mesmos tipos de evento, circulando as mesmas ideias. Você tem a preocupação de romper essa bolha que, querendo ou não, é aquela na qual você está inserida?
Nossa, isso seria um sonho! Eu não me contento com o nicho, com essa bolha que se retroalimenta, eu tenho pavor disso! A música é meu trabalho, ela está aqui para ser ouvida. Eu não quero ficar alimentando um grupo seleto de pessoas. Acho que isso é uma romantização errada desse universo que vem do underground, essa mentalidade de “ai, eu gosto da artista pequenininha”. Isso é uma grande besteira, porque os músicos estão trabalhando com isso, e eu pelo menos quero mais é que o meu trabalho se expanda. Ao mesmo tempo, também é um grande desafio sair disso, é muito difícil conseguir espaços maiores. A minha ideia de ir para fora passa por isso, inclusive, por essa intenção de querer expandir e chegar em mais gente. Sei que é uma movimentação nichada também, mas existe gente atenta ao que está acontecendo lá fora. Então essa é uma das estratégias que eu uso. Meu primeiro disco foi muito experimental e era realmente nichado, mas dessa vez juntei força com mais cabeças pensando justamente no que fazer para que a música fosse mais acessível. O começo está aí: tornar a música um pouco mais acessível, obviamente não saindo do que eu gosto, do que eu amo. Só que eu também gosto de música pop, coisas que são fora da minha bolha. Reconheço que minha música não é tão pop, eu estou num caminho intermediário, mas acho extremamente importante o pensamento de expansão. Ele faz parte da minha estratégia também.

Eu particularmente achei bastante pop, pelo menos nos sentido mais cancioneiro. Claro, pop dentro da sua identidade, mas a impressão que a audição do disco dá é que você quis mesmo descomplicar.
Teve uma questão para mim de estudar as técnicas de composição. Eu tava meio perdida antes de fazer esse disco. Eu sabia que eu queria voltar com o trabalho, porque a trilha do “Fenda” foi interrompida no meio e aquilo foi um baque. Mas a partir do momento que eu percebi que eu queria voltar a trabalhar, sabia que para isso eu precisaria de um outro disco, e fui estudar composição, analisar a estrutura das músicas numa tentativa de melhorar o que componho. O que mais me instiga na criação é poder sempre aprimorar e ir para um outro lugar e me desenvolver. Eu fiz planilha – eu sou bem detalhista quando eu vou atrás das coisas (risos) –fiz planilha com as minhas músicas antigas e classifiquei-as em critérios: tem contraste aqui, não tem contraste ali… Assim eu fui entendendo o meu processo, e a partir disso, naturalmente fui entrando nas minhas composições novas. Inclusive algumas canções foram feitas como um exercício de composição, frutos de um esforço consciente de fazer músicas fortes. Eu queria músicas que realmente se conectassem com as pessoas, ou que as pessoas se conectassem com elas.

Falando nisso, você sente que tem afinidade estética com alguns de seus contemporâneos? Artistas com quem você dialoga em termos musicais?
Vejo mais fora do Brasil do que dentro, embora aqui eu tenha várias referências, só que elas não estão necessariamente fora da bolha. Acho que dialogo com essa estética dream pop e indie rock. Eu poderia citar essas mais novas, como o TOPS, o Crumb… Não acho que minha música está musicalmente aparentada com a dessas bandas, mas sim que é um universo criado com o qual eu me identifico. Tenho grandes referências em Joni Mitchell, Carole King, que são minhas grandes inspirações e que têm esse lado mais cancioneiro. Esteticamente, me baseio bastante nessas décadas – 1960, 1970 – mas tem coisas dos anos 1990 das quais pego um pouco emprestado, tipo Stereolab, e também essa onda dream pop que veio com o Cocteau Twins nos anos 1980. E não sou só eu, tem bastante artista bebendo disso, então a gente acaba entrando nesse conjunto de referências.

Para a gente encerrar, queria falar sobre o nome que você escolheu para o projeto. “Papisa” é uma palavra que traz múltiplos significados, traz provocações também. Considerando essa mudança de sonoridade e de postura, o nome acaba ganhando novos sentidos?
Vejo sim, porque ele realmente estava muito conectado com o meu primeiro processo. O primeiro disco era muito místico, e o nome simboliza um arcano do Tarot. Esse disco é bem mais mundano, e eu gosto muito da ideia mundana (ri) da Papisa também, que é uma imagem de uma mulher forte, que se basta em si. Não que eu me coloque nessa imagem, mas ela me inspira, e a gente acaba criando a partir disso. Na parte visual do trabalho, a gente trouxe também uma figura mais arquetípica para criar todos os elementos, fomos buscar na dama de copas essa coisa que aparece no “Alice no País das Maravilhas” como uma mulher mais maluca e que na mitologia do Tarot tem outra ideia, uma coisa mais de Helena de Troia, no sentido de uma mulher que segue o sentimento. O nome vai se transformado, mas sempre carrega uma força feminina muito grande, e isso me inspira.

 

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. As fotos são de Julia Mataruna / Divulgação

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