“As mulheres da Brewster Place”, de Gloria Naylor, é um daqueles livros inesquecíveis

textos de Gabriel Pinheiro

Numa rua cabe um universo. Por trás de cada porta, através dos vidros de cada janela, um mundo particular se esconde e, ocasionalmente, se abre ao exterior. O particular e o público dialogam e se relacionam neste universo de experiências múltiplas existentes dentro de uma vizinhança. Um conjunto habitacional foi um dia erguido na Brewster Place, rua norte-americana que poderia ser apenas mais uma dentre tantas outras, não fosse pelo olhar de Gloria Naylor, dedicado a mergulhar nas existências, nas dores e nas delícias das mulheres que ali residem serem quem são, apesar de tudo e de todos. Ganhador do National Book Award, “As mulheres da Brewster Place” foi publicado originalmente em 1982. Lançado no Brasil pela Carambaia, o primeiro romance de Gloria Naylor conta com tradução de Camila Von Holdefer.

Erigido para atender a interesses políticos e não as necessidades daqueles que ali morariam, o conjunto habitacional da Brewster Place foi historicamente habitado por gerações de imigrantes. Aquelas residências eram temporárias até que oportunidades melhores surgissem. Pouco a pouco, o local passou a ser habitado majoritariamente por moradores negros. Em sua grande maioria, esses novos moradores não encontravam perspectiva de mudança, permanecendo ali irremediavelmente. Brewster Place é uma rua fechada por um muro. Uma barreira física aliada a tantas outras barreiras simbólicas e sociais que historicamente buscam separar, confinar sujeitos como os que ali residem.

São muitas as mulheres da Brewster Place. No olhar dedicado a sete destas mulheres, Gloria Naylor cria um retrato vívido e diverso das experiências particulares que constroem essa convivência comum. Como contos que se relacionam, há um capítulo dedicado a cada uma das personagens, que, inevitavelmente, transitam pelas narrativas umas das outras. Assim, um mosaico textual e simbólico é construído por Naylor, partindo de diferentes temporalidades ao longo da história daquela rua. Aliás, o tempo é um elemento trabalhado com maestria na prosa da escritora norte-americana, numa poesia e numa fluidez que impressionam. Como numa transição fílmica, basta uma linha, uma lembrança ou até mesmo uma única palavra para nos transportar para outro tempo, um passado guardado fundo na memória de quem o viveu.

De uma jovem que se vê grávida de um homem que não ama e parte, sozinha, para a reescrita da própria história ao lado do filho à uma mulher que, inebriada pelo som do jazz de Billie Holiday, desafia os papéis socialmente impostos ao feminino; de uma jovem ativista dos direitos civis que descobre ter muito mais em comum com a mãe do que, até então, gostaria de acreditar a um casal homoafetivo que encontra uma resistência brutal ao simples ato de existir. Falar sobre cada uma dessas mulheres de Brewster Place parece não dar conta da grandeza de suas trajetórias tão bem desenhadas pelo texto de Gloria Naylor: Mattie, Etta, Kiswana, Lucielia, Cora Lee, Lorraine e Theresa. Cada uma tem um nome próprio e uma história própria.

“As mulheres da Brewster Place” é um romance singular e esta edição da Carambaia corrige um atraso histórico: Gloria Naylor permaneceu inédita no Brasil até então. Na particularidade de cada mulher aqui retratada, Naylor constrói uma obra que tem como marca a possibilidade do reconhecimento, com personagens que rompem as barreiras da ficção e do tempo. As lágrimas que pavimentam a narrativa aqui são tanto de dor, quanto de alegria, tanto de perdas quanto de conquistas. Na prosa de Naylor, há tanto o lirismo do sonho quanto a brutalidade do real que se impõe, ainda que tentemos afastá-lo. Um daqueles livros inesquecíveis.

“The Women of Brewster Place” ganhou uma versão de minisérie em sete capitulos para televisão em 1989 com Donna Deitch e Spike Lee na direção e um elenco encabeçado por Oprah Winfrey.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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