Cinema: “Garra de Ferro” é um tratado sobre dedicação, destino e a luta por um legado (dentro e fora dos ringues)

texto de Davi Caro

Jack Barton Adkisson Jr. (1929-1997) com certeza deve ter se sentido bastante cheio de si ao adotar o pseudônimo Fritz Von Erich (derivado do nome da mãe) e, abandonando o futebol americano, decidir se dedicar à arte da luta livre. O ringue já era o habital natural do texano quando se tornou pai pela primeira vez, em 1952. Ainda que seu primeiro filho, Jack Barton Jr., tenha falecido ainda criança (impondo um trauma a muito custo ignorado tanto por ele quanto pela esposa, Doris), o lutador pôs de lado a ideia de que sua mudança de nome possa ter causado a morte de seu primogênito, e não deixou que o receio subconsciente se colocasse no caminho da criação rigorosa e intimidadora que ofereceria aos quatro filhos seguintes, Kevin, David, Kerry e Mike. Tampouco o desencorajou de incentivar os filhos a seguirem seus passos dentro do agressivo ramo dos confrontos de entretenimento, no que tornaria os consanguíneos verdadeiras lendas do esporte ao longo dos anos 70 e 80.

Ainda no primeiro terço de “Garra de Ferro” (“The Iron Claw”, 2024), o espectador é testemunha de uma conversa entre o mais velho dos filhos de Von Erich (vivido por Zac Efron) conforme este reflete sobre a expertise familiar em conversa com sua pretendente e futura parceira, Pam (Lily James). No diálogo, Efron refuta com convicção o rótulo de “falso” atribuído por tantos ao estilo que pratica em arenas, sem nunca renegar a função de “entretenimento” proporcionado por ele, e seguido pelo patriarca de sua família. Kevin, no entanto, é reticente ao falar sobre a suposta “maldição dos Von Erich”, que teria se abatido sobre o clã da mesma maneira que havia tomado forma na linhagem de sua avó, e que previa maus agouros para os irmãos. Conforme se passam os 132 minutos do novo longa, dirigido por Sean Durkin (da série Dead Ringers, da Amazon) e lançado pela A24, tal maldição se revela ao mesmo tempo muito mais humana e muito mais perturbadora do que se poderia supor no início.

Kevin, determinado e disciplinado, é o principal concorrente ao título mundial há anos almejado por Fritz (Holt McCallany), embora conte sempre com o apoio do também dedicado David (Harris Dickinson) e do musical Mike (Stanley Simons). Batalhando com certo senso de inadequação e insegurança, o rapaz vê o prestígio alcançado pelo pai se esvair quando perde a oportunidade de alcançar o cobiçado cinturão, e seu sucessor biológico passa a ser preferido enquanto o mais novo passa longe dos ringues. O frágil equilíbrio da rotina rigorosa de treinos que permeia as relações familiares mantidas sob a devoção religiosa da mãe (Maura Tierney) se depara com um nem tão novo elemento com o retorno de Kerry (Jeremy Allen White), que se manda de volta para casa após o boicote americano das Olimpíadas de Moscou, em 1980, o impedir de competir em arremesso de disco.

Prontamente empurrado para os tablados e para o preparo físico por Fritz, o irmão também acompanha não apenas a descoberta de uma voz própria por Mike, que se interessa cada vez mais por seguir carreira como músico, quanto a ascensão de David, que se torna a nova promessa da família rumo ao título supremo, a ser disputado no Japão. Com o casamento e paternidade de Kevin, tudo parece se encaminhar, ainda que de forma tensa, para uma realidade na qual os Van Erich reinam supremos. E é então que a sina da dinastia se impõe, e mostra sua cara mais cruel. O que se segue é uma narrativa do clã ao longo dos anos, encarando não apenas os adversários que se impõem aos olhos do ávido público, mas também por meio de tragédia, dor e uma sombra paternalista que, apesar de mais sentida pelo “primogênito secundário” (como Kevin se descreve em determinado momento), vitimiza todos os integrantes da mais famosa de todas as famílias da história da luta organizada.

O elenco de “Garra de Ferro” apresenta um desempenho daqueles que merecem aplausos, realmente. Efron assume o posto de protagonista do longa com desenvoltura, e seus momentos mais intensos contrastam com passagens mais serenas e vulneráveis, quando Kevin admite sua vontade de cuidar de sua família: muito mais do que uma fala ambiciosa, é algo que transparece em cada minuto de sua interpretação. As várias cenas divididas ao lado do inflexível Fritz trazido a tona por McCallany são um show a parte, amparado no espírito sonhador, embora desorientado do primeiro e na devoção cega, quase paranoica, do patriarca. Sua companheira, inclusive, tem participações pontuais, porém decisivas para o desenvolvimento de todos os personagens, e sua dedicação incondicional para com a família funciona como um contraponto fascinante à função que a esposa mais jovem vivida por Lily James (mais segura de seus objetivos e menos tolerante com o comportamento partiarcal típico dos homens que a cerca). Allen White encanta com seu atormentado Kerry, muitas vezes expressando sem palavras a dor que o consome conforme seu vício em drogas, aparentemente invisível diante de seus familiares, atinge proporções irreversíveis; o talento demonstrado pelo ator nas duas últimas temporadas da maravilhosa “The Bear” sem dúvida reverbera aqui. Dickinson e Simons representam, cada um a seu modo, dois lados da mesma moeda: a da devoção ao sucesso do nome que carregam como um objetivo de vida mesmo que suas vocações apontem para caminhos praticamente opostos.

Tecnicamente falando, o filme também combina elementos que, contra todas as espectativas, acabam resultando em uma produção que, de modo consciente, evita ambientações claustrofóbicas em favor de ângulos altos em paisagens mais abertas – quase evocando o tamanho aparentemente descomunal dos membros da família Von Erich frente ao mundo e a realidade na qual habitam. O primoroso trabalho de edição ajuda a explorar os momentos mais delicados da história com destreza igual à necessária para abordar as sequências de luta, que, afinal, não assumem tanto protagonismo assim. Em ambos casos, a trilha sonora, cortesia de Richard Reed Parry (dos canadenses do Arcade Fire) emprega níveis de austeridade e peso sempre mirando, claro, na espontaneidade. A produção já mereceria efusivos parabéns só pelo bem colocado uso da emblemática “Tom Sawyer”, lançada pelo Rush em 1981 – em outro primor de verossimilhança com os fatos reais nos quais a película, conforme mencionado antes que qualquer frame tome a tela, é baseada.

Um dos momentos chave para compreender o nível de sutileza em cena pode passar desapercebido de tão natural: ao nomear o primeiro filho, um Kevin cada vez mais afastado da tradição iniciada por seu pai faz questão de dar ao bebê o nome original da família, Adkisson. A trama deixa subentendido o esforço do lutador em manter o filho longe do destino cruel que teria se recaído sobre os herdeiros de Fritz. Ao decidir se tornar um pai diferente daquele que recebeu, o agora administrador da empresa de gerenciamento na qual cresceu como atleta parece finalmente perceber a real natureza da tal maldição. Ao assistir de camarote conforme destinos terríveis se abaterem sobre seus caçulas, Kevin interrompe o curso de mau-agouro não através de bruxaria, mas sim por meio da transformação humana e da formação de caráter passado, como não, de pai para filho. E aí está, escondido atrás de um filme sobre gladiadores musculosos, o segredo por trás da improvável sobrevivência dos Von Erich, e também do grande trunfo de “Garra de Ferro”: nada requer mais resiliência do que o desafio de ser um ser humano melhor, seja dentro ou fora de uma arena, e seja o oponente um estranho, um familiar, ou, como é comum, nós mesmos.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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