Os 10 Anos de “Morning Phase”, o acerto de contas de Beck com seus demônios

texto de Davi Caro

O lançamento de “Sea Change”, oitavo disco de estúdio de Beck Hansen, foi recebido com alvoroço pela imprensa especializada em setembro de 2002, fascinada (ainda que um pouco incomodada, conforme visto em textos da época) com a brutal honestidade com a qual o compositor americano expunha sua dor e seus sentimentos depressivos em um repertório no qual lidava abertamente com seu então recente processo de separação amorosa. Considerado em retrospecto um dos melhores e mais notáveis discos do cantor, o trabalho explorava canções bastante baseadas no violão, e se distanciava das texturas dançantes e psicodélicas exibidas no anterior “Midnite Vultures” (1999), ainda que uma faixa chamasse a atenção por seu delirante arranjo, misturando orquestrações e solos abstratos de guitarra: além de se concretizar como um dos melhores cortes do álbum, “Paper Tiger” também finalizava, de modo enigmático, com os versos “Existe uma estrada para a manhã / Existe uma estrada para a verdade / Existe uma estrada de volta à civilização / Mas não existe estrada de volta para você”.

Levariam doze anos, mas Beck encontraria, eventualmente, uma estrada de volta para si mesmo. Ou, pelo menos, para sua versão mais visceral e torturada, ainda que de modo mais reflexivo e menos amargo. Quatro outros discos separam “Sea Change” de seu sucessor espiritual, e “Morning Phase” (2014), lançado há dez anos (contando deste último fevereiro) trouxe a reunião de Hansen com boa parte dos colaboradores com os quais havia realizado uma de suas mais celebradas obras, bem como a reconciliação – ou, pelo menos, uma espécie de reavaliação – de sua faceta menos irreverente e mais pessoal. Além de ser um dos mais interessantes discos realizados pelo artista na última década, também calhou de se tornar um dos mais discutidos, senão o mais discutido, como será abordado mais à frente.

O primeiro processo de ruptura, e quiçá o mais surpreendente, seria percebido na produção: ao invés de retornar à colaboração com Danger Mouse (que originou o bom “Modern Guilt”, de 2008) ou trazer de volta o gênio maluco e “sexto Radiohead” Nigel Godrich (que produziu o álbum de 2002), Beck cuidaria do processo por si só. Tendo finalizado seu contrato com a gravadora Interscope, ele também havia assinado uma nova parceria com a poderosa Capitol Records, que o concedeu carta branca. Com as sessões – notadamente tranquilas – de gravação tomando forma nos estúdios Ocean Way, em Los Angeles, ao longo do biênio 2012/2013, os registros se deram simultaneamente ao retorno às performances ao vivo do compositor (incluindo seu retorno ao Brasil, na última edição do extinto festival Planeta Terra), à medida que os músicos escolhidos para acompanhá-lo já lhe eram mais do que familares: figurinhas carimbadas de uma década antes, como o guitarrista Smokey Hormel, o tecladista Roger Jospeph Manning, Jr e o baterista Joey Waronker marcaram presença no estúdio, bem como David Campbell, pai de Beck e responsável pelas conduções orquestrais presentes no tracklist.

É quase impossível dissociar “Morning Phase” de seu antecessor temático, mesmo porque o novo disco foi descrito no próprio press-release como uma obra complementar a “Sea Change”. E isso é uma realidade perceptível desde a primeira faixa: ainda que se diferencie deste último por conter uma vinheta introdutória, a atmosfera de “Cycle” é perceptivelmente parecida com a encontrada em “The Golden Age”, ao passo do andamento da primeira faixa propriamente dita, “Morning”, ser igualmente lento e cadenciado, mesmo que menos desesperançoso: “Mas podemos começar tudo de novo / Esta manhã / Eu perdi minhas defesas”. A desesperança, aliás, é substituída pela busca por auto-compreensão na canção seguinte, o single “Heart Is A Drum” (acompanhado por um ótimo vídeo cheio de referências ao clipe da imortal “Loser”, de 1993 – com direito a Beck “interagindo” com seu eu mais novo). Menos arrastada, porém não menos reflexiva, a faixa é como um respiro de agitação antes que os violões quase-country de “Say Goodbye” tomem conta do ouvinte.

Uma das faixas mais interessantes do trabalho, “Blue Moon” tem sua arma secreta nas delicadas linhas de bandolim e em sua percussão mais cadenciada, e os backing vocals mais etéreos também não fazem feio. “Etérea”, aliás, é uma palavra que cai como uma luva em relação à performance do cantor no groove narcótico de “Unforgiven”, com seus pianos cheios de efeitos, antecipando as cordas cinematográficas que abrem “Wave” (que, no entanto, não salvam a faixa de ser a menos memorável no repertório). Difícil julgar alguém que pularia, após audições repetidas, diretamente para os dedilhados e harmonias lindas de “Don’t Let It Go”. O violão, mais uma vez protagonista, divide protagonismo com intervenções de guitarras elétricas em “Blackbird Chain”, apenas para dar lugar mais uma vez aos violinos da vinheta “Phase”, que precede as últimas três canções – onde, aliás, Hansen soa mais energizado: “Turn Away” traz alguns dos mais intrigantes versos encontrados aqui, com linhas como “Dê as costas/Do peso de seu próprio passado/É magia para o demônio”. Parece um diálogo do narrador consigo mesmo, que se reconcilia com memórias de locais idílicos na nostálgica “Country Town” e finalmente exorciza seus tormentos na delicada “Waking Light”, uma escolha certeira, e redentora, para encerrar o disco.

“Morning Phase” pode ter até parecido uma decepção frente ao júbilo encontrado pelo trabalho com o qual é mais relacionado, mas chamar o disco de “injustiçado” seria forçar a barra. Boas críticas ajudaram a construir hype, e um bom terceiro lugar na parada de álbuns da Billboard evidenciou bastante isso. Mesmo os mais céticos (ou com menos boa vontade) relutariam em chamar o novo lançamento de indigno de atenção e respeito, fosse como um trabalho isolado de um dos mais iconoclastas artistas de sua geração, fosse como uma sequência a um outro disco marcante. Em suma, “Morning Phase” foi tão bem recebido quanto todos poderiam esperar, dadas as devidas proporções e expectativas trazidas por uma fanbase que, apesar de não tão numerosa, sempre acompanhou de perto, e com entusiasmo, a carreira de Hansen. E, ainda assim, mesmo tudo isso não poderia explicar o que aconteceria cerca de um ano depois de seu lançamento.

Ninguém esperaria muito de um álbum de Beck junto a uma premiação como o Grammy. Um prêmio de Melhor Álbum Alternativo ou de Rock não desagradaria tantas pessoas, claro – mas a mídia mainstream com certeza foi pega de calças curtas quando o disco recebeu, na 57ª edição da cerimônia de maior prestígio do mundo da música pop, a honraria de álbum do ano. E ninguém parece ter ficado tão surpreso quanto o próprio Beck, que pareceu muito mais a vontade interpretando “Heart Is A Drum” em um dueto com Chris Martin, do Coldplay, na mesma noite. Provocando apenas um dos vários surtos públicos de Kanye West (com os quais o mundo aprenderia a se familiarizar), a vitória do álbum, apesar de celebrada, viria a eclipsar sua reputação como uma boa seleção de canções, realizadas por um compositor comprovadamente repleto delas.

Seja como for, é inegável o impacto que “Morning Phase” teria na carreira de Beck desde então. Ao passo que “Colors” (2017) tenha trazido de volta as tendências dançantes, seu último disco, “Hyperspace” (2019) trouxe Hansen lidando com uma nova separação, ainda que, dessa vez, deixando a melancolia de lado em favor de aproximações com o hyperpop e a new wave. Hoje em dia, “Morning Phase” parece bastante distante do momento presente, onde Beck se mostra mais confortável com seu status enquanto lenda da música alternativa (como comprovado em sua recente e ótima apresentação no Primavera Sound de 2023 – onde nenhuma das canções do trabalho em questão marcou presença, aliás). Uma década depois de um de seus momentos mais reflexivos, Beck parece feliz em ter encontrado a estrada para a manhã. Resta saber qual o caminho a ser seguido no futuro; a estrada para a verdade, afinal, continua sendo trilhada tanto por ele, quanto por seus seguidores, sem que ninguém saiba, de fato, qual seja esta verdade.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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