Literatura: Selton Mello faz balanço de seu passado de forma honesta, tocante e, sim, hilária em “Eu Me Lembro”

texto por Davi Caro

Selton Figueiredo Melo (sim, com um L só) já representou muitas coisas: malandro, burocrata, traficante, lhama, caixeiro viajante, empresário, detetive – a lista surpreende. Pouquíssimas vezes, no entanto, Selton Mello pôde se mostrar como si mesmo. Colecionou obras memoráveis e sempre dignas de nota ao longo de uma carreira onde procurou dizer apenas o necessário sobre si, ao menos na medida do possível para alguém que cresceu aos olhos do público e construiu, assim como o irmão, Danton, uma trajetória invejável.

Os cinquenta anos de idade, pareados com os quarenta de carreira, então, se mostram a perfeita oportunidade de passar a limpo as muitas experiências, positivas ou negativas, que pontuaram tanto tempo de bons serviços prestados à teledramaturgia, ao teatro e ao cinema brasileiro, fosse frente às câmeras ou atrás delas. “Eu Me Lembro” (2023),  livro de memórias lançado no fim do ano passado pela editora Jambô, é o acerto de contas de um dos mais talentosos atores e diretores de toda uma geração com seu passado, ao mesmo tempo que funciona como uma ponderação de seu presente e indica fascinantes rumos em direção ao futuro.

A expressão “livro de memórias”, aqui, funciona melhor do que o epíteto de “biografia”, porém também parece pouco para abarcar a abordagem utilizada pelo autor: talvez num reflexo de sua criativa verve diretorial, Mello passou longe de procurar construir uma narrativa previsível, linear, sobre sua vida e obra; numa decisão esperta e reveladora, o autor convocou um time de quarenta “colaboradores” ilustres para que, enviando perguntas ou reflexões sobre sua obra e experiências, tornassem possível a construção de uma história que muitos podem pensar conhecer a fundo, mas que guarda uma boa dose de surpresas e revelações (quase sempre) bem humoradas e (muitas vezes) tocantes. Entre os convidados, se encontram co-geracionais do ator (Wagner Moura, Lázaro Ramos, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro), inspirações e ídolos de décadas passadas (tais como Fernanda Montenegro, Zezé Motta, Moacyr Franco – incluindo depoimentos póstumos, como os de Rolando Boldrin e Aracy Balabanian), e personalidades que abrangem jornalistas, (Pedro Bial e Arthur Dapieve, por exemplo), escritores (Zuenir Ventura e Ana Paula Maia) e muitos outros, que acompanharam de perto, ou nem tanto, a jornada do menino nascido em Passos, MG, que superou percalços heróicos para se firmar como um dos maiores artistas que o Brasil viu surgir nas últimas décadas.

Do começo modesto, porém cheio de vida de sua cidade natal até o início da realização de um sonho como ator mirim, Selton guarda lembranças de aprendizado e deslumbramento ao se ver diante de grandes nomes da telecomunicação nacional. Suas respostas a perguntas feitas por atores e atrizes mais velhos vêm munida deste verniz de máximo respeito e admiração, e seu “diálogo” com o saudoso Paulo José (com quem Selton trabalhou no consagrado e belíssimo “O Palhaço”, de 2010) comove em sua simplicidade e no nível de sentimento destilado na escrita: direta, concisa e completamente fiel ao tipo de linguagem que Mello sempre utilizou de forma tão espontânea, sem firulas ou abusos de linguajar.

Esta espontaneidade fica ainda mais clara quando o ator responde a perguntas que mais se assemelham a reflexões: a contribuição de Matheus Nachtergaele (o eterno João Grilo, com o qual Selton contracenou no antológico “O Auto da Compadecida”, de 2000) é de uma sensibilidade poética desconcertante, e seu alinhamento com o entrevistado é um dos momentos chave do livro; igualmente ricas são as belas palavras oferecidas pela também atriz (e escritora) Fernanda Torres, cujo início precoce de carreira espelha aquele de Mello, e que ajuda a trazer mais luz para o período no qual, vendo as oportunidades como ator minguarem, o então adolescente passou a se dedicar a extensos trabalhos como dublador (incluindo, claro, seu marcante papel como Kuzco na animação “A Nova Onda do Imperador”, também de 2000). O retorno à frente das câmeras na pele do sensível Chicó, já no fim da década de 1990, também é bem abordado através da presença do diretor Guel Arraes, que ajuda a elucidar a transição gradual e bem sucedida de Selton da atuação para a direção.

Desde o título, o tema a permear todas as entrevistas registradas em “Eu Me Lembro” é o da memória: lembranças de períodos desafiadores e nunca antes abordados a fundo (como as experiências com inibidores de apetite, que o protagonista aponta terem sido fundamentais para sua desestabilização física e psicológica) se revezam com retrospectivas minuciosas de alguns de seus trabalhos mais consagrados – como o pungente “Meu Nome Não É Johnny” de 2008 – e alguns nem tanto – o subestimado “Feliz Natal”, estréia de Selton na direção, do mesmo ano. Mais do que um passeio por uma história acompanhada por muitos, o livro também ajuda a dissecar o processo criativo de uma mente hiperativa por natureza, e os trechos que abordam suas obras mais recentes (como a excelente série “Sessão de Terapia”, dirigida e, atualmente, também protagonizada por Mello) são demonstrações nítidas do esforço do autor em preservar suas lembranças e as reconhecer como peças fundamentais do caminho que trilhou, assim como dos êxitos que colecionou.

Esse subtexto também é fundamental para se entender um dos mais delicados momentos abordados aqui: o diagnóstico da mãe de Selton, Selva, como portadora do Alzheimer. De maneira tenra, ele aborda o tema em diferentes momentos, ressaltando a importância que o sacrifício dos pais em se mudarem para o Rio de Janeiro graças ao sonho de ator televisivo de um menino fascinado com as possibilidades que via de sua tela em casa. Ao relatar a progressão da doença de sua mãe, Mello se expõe com um nível de fragilidade poucas vezes visto em obras recentes do tipo, ainda mais em se tratando de uma personalidade tão aparentemente onipresente através de tantas obras, e ao mesmo tempo tão privada.

As reflexões sobre as coisas que viu, viveu e sentiu são postas em palavras carregadas ora de muito bom humor (como sua auto-proclamação de “maior chocólatra do Brasil”, conforme dito aqui à Débora Falabella – seu par romântico em “Lisbela e o Prisioneiro”, de 2003), ora de dicas valiosas entregues em forma de diálogo franco (especialmente em sua conversa com Larissa Manoela, que esteve em “O Palhaço”), e sempre de admiração genuína pela presença daqueles que o questionam em sua vida e sua história (como o ídolo tricolor Raí, uma das maiores lendas do time que Selton escolheu para si). A carinhosa troca de recordações com o irmão, na admiração mútua e respeito máximo demonstrados, é de levar às lágrimas.

Mas a ideia de Selton Mello é preservar suas recordações, e não viver delas, e os momentos nos quais fala de seus projetos futuros deixam claro seu entusiasmo em se desafiar, traçando um paralelo com o momento em que se colocou na posição de diretor pela primeira vez, vários anos atrás. Após um excelente trabalho como protagonista de um dos melhores podcasts de 2023 – “França e o Labirinto”, um audiodrama produzido em parceria entre Spotify e Jovem Nerd – o ator inicia 2024 com pelo menos dois grandes projetos no horizonte. O primeiro é uma adaptação de “Ainda Estou Aqui”, livro escrito por Marcelo Rubens Paiva, no qual Mello interpreta o pai do autor, Rubens Paiva, que “desapareceu” durante a Ditadura Militar após ser levado para prestar esclarecimentos pelas autoridades (no qual contracena com a já citada Fernanda Torres, sob a direção de Walter Salles). O segundo, claro é “O Auto da Compadecida 2”, no qual retorna ao memorável papel de Chicó ao lado não apenas de Matheus Nachtergaele, mas também dos diretores Guel Arraes e Flávia Lacerda.

Ao final, “Eu Me Lembro” é mais do que uma nostálgica volta ao passado: ao colocar sua história de vida em palavras (e em perspectiva), Selton se abre para um público que o viu crescer e amadurecer por trás de muitas facetas, ao mesmo tempo que se mostra entusiasmado com as muitas histórias que ainda tem para contar, e a história que escreve e continuará escrevendo – uma daquelas histórias que o Brasil tem mesmo é que admirar. Sim, ele se lembra, e todos vão continuar lembrando, por muitos outros anos.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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