Literatura: “Os Santos” é o raio-x de um Brasil moldado na truculência, no preconceito e na imobilidade social

texto por Gabriel Pinheiro

A história de Didi é um clássico brasileiro: a garota que, aos 10 anos, foi retirada de casa com a promessa de estudo na capital. Lá, encontrou apenas o trabalho infantil doméstico, adentrando uma engrenagem ininterrupta de trabalho e exploração. A trajetória de quatro das filhas de Didi parece repetir a história materna, ao se verem, adultas, trabalhando para diferentes núcleos da mesma família para a qual a mãe serviu até, enfim, se aposentar. Mas um acontecimento inesperado na vida de Edilsa, uma das filhas, poderá interromper, de maneira definitiva, esta perversa engrenagem social.

Se a história de Didi é um retrato de uma realidade bem brasileira, a de seus patrões também o é. A família de Camilo e Liege é uma representação típica de uma família de classe alta no país. Enquanto curtem a aposentadoria, os patriarcas vêem os filhos bem sucedidos em suas respectivas carreiras – caso haja um infortúnio, é sempre possível recomeçar uma carreira do zero, afinal, o dinheiro está aí para isso. Viagens ao exterior, de classe executiva, é óbvio. A criação dos filhos e netos com a onipresente figura da babá. Sob o aparente sucesso, se esconde uma fortuna construída a partir da corrupção. E é justo ela, esse vício irresistível por mais poder e mais dinheiro, que poderá pôr fim à trajetória ascendente dos Santos dentro da elite carioca.

“Os Santos”, recém publicado pela Todavia Livros, é um raio-x de um Brasil que permanece presente em suas estruturas rígidas desde a escravidão. Leandro Assis e Triscila Oliveira colocam um verdadeiro dedo na ferida em um jeito de ser brasileiro que atravessa séculos, onde o racismo, o machismo, o abuso, a exploração e a meritocracia ganham contornos ora nítidos, ora opacos, sustentados por uma frase típica que carrega um peso tremendo na trajetória de tantas pessoas, especialmente e sobretudo mulheres pretas: “você é da família”.

Se retrata essas estruturas que insistem em se manter ativas, o quadrinho também constrói de maneira cristalina uma série de transformações culturais e sociais que permitem uma muito bem vinda mudança. Das cotas nas universidades à representação de pessoas negras como formadoras de opinião, são muitos os aspectos que perpassam diferentes personagens do núcleo familiar de Didi, possibilitando um olhar além das estruturas de poder outrora impostas à matriarca.

O novo quadrinho da dupla amplia em livro o universo iniciado com “Confinada”. Obras irmãs, os dois quadrinhos são olhares agudos e urgentes para a realidade brasileira. Ora com leveza e bom humor, ora calcado em trágicas estatísticas dessa realidade, “Os Santos” coloca em disputa dois Brasis. De um lado, um país moldado na truculência, no preconceito e na imobilidade social; de outro, um país marcado pela resistência, pelo afeto e pela esperança.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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