Literatura: “Foi um péssimo dia”, de Natalia Borges Polesso, tem som de Bon Jovi num discman e gosto de bala Soft

texto por Gabriel Pinheiro

“Eu acho que lembrar da gente anos antes é um ótimo exercício para se compreender no agora. Não precisa fazer muito esforço, é só deixar a cabeça vagar nas memórias. Será que eu mudei muito?”. O início desta novela de Natalia Borges Polesso, “Foi um péssimo dia” (2023), dá um interessante sinal do mergulho que a escritora irá empreender nas próximas páginas. Entre a infância e a adolescência, entre meados dos anos 80 e meados dos anos 90, Natalia escritora (re)encontra uma Natalia personagem naquele processo de construção de si que tão marcadamente constitui essa estranha e, por vezes, traumática fase da vida.

A relação entre irmãos, as ranhuras do casamento dos pais, a mudança repentina e não desejada de uma casa para outra, de uma cidade para outra, a busca por novas amizades, as dificuldades na manutenção das antigas, a linha frágil entre a brincadeira e o bullying na escola, o(s) primeiro(s) beijo(s), a estranha sensação de lidar com um sentimento que ainda não sabemos dar nome. São muitos os pontos que se destacam nas duas narrativas que compõem este novo livro de Natalia Borges Polesso.

A autora escreve sobre descobertas, sobre primeiras experiências. Há o primeiro beijo. Na verdade, dois primeiros beijos. Um que poderia ser esquecido. Outro que, mesmo inesperado, pareceu um beijo de verdade. “Fui aproximando meu rosto e dei um beijo na boca dela. Eu mesma estava experimentando aquilo, não sabia direito, a gente nunca sabe como beijar alguém pela primeira vez (…)”. A descoberta do amor, algo novo e tão imprecisamente definido – e por isso mesmo tão verdadeiro – pelo conselho delicado do pai: “O amor é meio confuso mesmo. Agora, deixa eu te dizer uma coisa. Nunca se prive ou se blinde do amor. – Era super estranho ouvir meu pai dizer aquelas coisas que faziam muito sentido sobre sentimentos. – No fim, é o amor que alivia, que evita que a gente tenha somente dias péssimos”.

“Foi um péssimo dia” tem som e tem gosto. Tem som de um CD do Bon Jovi tocado (e, inevitavelmente, arranhado) num discman, tem gosto de bala Soft (tão gostosa, tão perigosa). O livro é um delicioso mergulho nos anos 80 e 90. Natália vai pincelando aqui e ali detalhes que alimentam a narrativa, tornando ainda mais reconhecíveis tanto os seus cenários externos, quanto o cenário interno de sua protagonista.

Quem somos e quem queremos ser. Essas são duas questões difíceis – para não dizer impossíveis – de responder naquele momento em que deixamos de ser crianças para adentrarmos um novo mundo chamado adolescência. Não que com o tempo – a vida adulta, o amadurecimento – fique mais fácil nos definir. Mas há uma espécie de desencontro – com nós mesmos e com o mundo que nos rodeia – que faz da adolescência esse período de definição tão borrada, tão frágil. Uma corda bamba de sentimentos, de experiências, de ganhos e perdas, de risos e choros. Crescer é doloroso, não são poucos os péssimos dias. Num primoroso mergulho na autoficção, Natalia Borges Polesso constrói, tanto pela ficção quanto pela abertura ao íntimo, uma possibilidade genuína de identificação pelo leitor. Especialmente aqueles que, em alguma medida, compartilharam um tempo político-social-cultural com a Natalia protagonista desta pequena grande pérola.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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