Os 30 Anos de “Amor Amarillo”: O brilhantismo de Gustavo Cerati em seu primeiro (e intimista) trabalho solo

texto de Davi Caro

Dois caminhos diferentes levam a “Amor Amarillo”, primeiro disco solo do guitarrista, vocalista e compositor Gustavo Cerati, lançado em novembro de 1993. Um deles parte do Soda Stereo, banda que apresentou o músico ao mundo, conquistando audiências ao longo da América Latina e lançando clássicos atrás de clássicos desde seu primeiro disco, em 1984. No entanto, a recepção morna do disco “Dynamo” (1992), sexto disco do Soda, fez surgir questões delicadas no cerne do trio – que, além de Cerati, ainda contava com Zeta Bosio e Charly Alberti –, muitas delas relacionadas ao controle criativo de Cerati na banda. Da parte do frontman, o que não faltava era criatividade: seis meses antes de “Dynamo”, Gustavo havia lançado o psicodélico e turvo “Colores Santos” (1992) com o parceiro Daniel Melero, dando a entender que concebia canções demais para caberem nos limites que o Soda lhe impunha. Tensões escalonaram e a turnê do álbum foi cancelada a pedido do cantor, que partiu para Santiago, no Chile.

O outro caminho vai ao encontro de Cecilia Amenábar. A modelo chilena, que Gustavo havia conhecido durante a turnê de “Doble Vida”, em 1988, vinha nutrindo uma relação à distância com o guitarrista que desabrochava conforme o tempo passava. Os indícios do romance, que inicialmente se basearam em visitas pontuais, já apareciam na pérola “No Necesito Verte (Para Saberlo)”, presente no EP “Rex Mix”, lançado pelo Soda em 1991. Após assumirem um compromisso mais formal, em 1993 o casal firmou matrimônio, enamorados com as possibilidades da vida em família. Quando Cerati abandonou a turnê de “Dynamo”, Cecilia já se encontrava grávida do primeiro filho do casal, Benito. O menino veio ao mundo em novembro daquele mesmo ano – no início do mesmo mês, seu pai havia dado o primeiro passo rumo a uma bem-sucedida carreira solo, que eclipsaria sua lendária banda.

Matrimônio, paternidade, o intimismo da vida doméstica e o impulso de tomar voos, senão mais altos, ao menos diferentes: “Amor Amarillo” é uma combinação de todos estes fatores, se convertendo em um dos registros mais puramente pessoais e, porque não, felizes da discografia de Cerati. Composto e pré-produzido na casa que habitou com Amenábar na capital chilena, o álbum não se distanciaria tanto daquilo que Gustavo tinha como lugar comum. Apesar dos esforços (sub-)conscientes de construir um espaço para si próprio, ao menos um rosto familiar marcou presença: o de Zeta Bosio, que co-produziu o disco junto com seu amigo de longa data, além de contribuir com as linhas de baixo na faixa-título – uma exceção, assim como “A Merced”, onde o instrumento foi gravado pela própria Cecília, em uma de suas duas participações musicais aqui; toda instrumentação restante foi manejada pelo próprio Gustavo, num processo bem mais insular em comparação com seus trabalhos futuros.

É possível traçar uma linha que divide o repertório de “Amor Amarillo” em duas categorias: a primeira diz respeito às composições que remetem de forma mais direta ao trabalho que Cerati já vinha defendendo junto ao Soda Stereo. Tal lógica é reveladora principalmente ao se considerar o primeiro single do disco, “Te Llevo Para que Me Lleves”, que se converteu no corte mais conhecido do tracklist. Juntando violões palhetados conduzindo melodias daquelas que poderiam estar em “Canción Animal” (1990), “Te Llevo Para que Me Lleves” é um dos momentos mais indeléveis da carreira do músico, que não abandonaria suas vocações pop através de suas muitas experimentações sonoras nos tempos vindouros. Também merece destaque pela participação de Cecilia, musa inspiradora, nos vocais, adornando os refrões com beleza ímpar.

A mais cadenciada, quase blues faixa-título (que também abre o álbum) tem um riff memorável como espinha dorsal, construindo assim o universo criativo explorado no disco ao mesmo tempo que mostra o cantor explorando falsetes – algo pouco visto antes ou depois. “Pulsar” e “Cabeza de Medusa” se valem, respectivamente, de ritmos que exploram samples de maneira orgânica, quase hipnótica, e ritmos bem marcados nas seis cordas (além de uma impressionante linha de contrabaixo); efeitos de sintetizador que aproximam a canção das melodias compostas ao lado de Daniel Melero pouco tempo antes também se fazem presentes, ainda que de modo mais discreto na segunda do que na primeira.

“Av. Alcorta” talvez seja o melhor dos “deep cuts” no álbum, explorando dissonâncias guitarrísticas que casam muito bem com os sutis efeitos aplicados à voz de Gustavo, conforme ele entoa belos versos que refletem sobre a distância entre o país em que se encontrava radicado e sua terra natal – o título, inclusive, faz referência à Avenida Figeroa Alcorta, ao passo que a letra também cita a região de Providencia, em Santiago, onde então vivia com Amenábar. Menos cinemática e mais direta é “Ahora Es Nunca”, onde os teclados saltam à frente junto a simples, porém bem pronunciadas, linhas de baixo. O instrumento, aliás, ganha sua chance de brilhar mais intensamente na última canção, a dançante e quase toda instrumental “Torteval” (que não apareceu em todas as edições do disco).

A segunda categoria é composta de canções mais intimistas e menos ligadas diretamente às sonoridades pelas quais seu autor era mais reconhecido até então. “Lisa” é conduzida pela guitarra, e não conta com qualquer acompanhamento rítmico (excetuando algumas discretas contribuições percussivas de Cerati, todas as baterias no álbum são programadas). Curiosamente, a música divide seu nome com a filha que o vocalista teria em 1996, com “Amor Amarillo” já sendo um disco mais do que bem reconhecido entre seus fãs e admiradores. “Rombos (Un Quarto Lleno de Rombos)” é mais psicodélica e menos direta, com a voz de Gustavo alterada na mixagem contrastando com os rompantes distorcidos que tomam conta da segunda metade da faixa. E a já citada “A Merced” pode surpreender os ouvintes de primeira viagem graças ao fade out no meio da música, sucedido por uma etérea e delicada segunda parte.

Também há espaço para uma versão pseudo-shoegaze de “Bajan”, clássico de Luis Alberto Spinetta lançado no imortal “Artaud” (1973). A homenagem, elogiada pelo compositor original, ajudou a solidificar a suposta conexão conceitual entre os dois discos – afinal, como Cerati, “El Flaco” também passava por momentos de mudanças decisivas tanto artística quanto pessoalmente, com o fim de sua banda e o nascimento de seu primeiro filho. Tais circunstâncias acabaram, sob esta lógica, por produzir trabalhos herméticos, porém não isolados, retratos singulares da domesticidade com a qual os dois músicos ainda aprendiam a lidar.

Lançado sob boatos (prontamente desmentidos) de um suposto fim do Soda Stereo, “Amor Amarillo” foi, à princípio, recebido com doses generosas de estranhamento. Muito disto, claro, se devia ao contraste entre as composições exploradas aqui em relação às ensurdecedoras microfonias de “Dynamo”. A temática, mais pessoal e delicada, foi um choque mesmo em meio aos mais devotos, que ainda assim não levaram tanto tempo para reconhecerem o álbum como um documento isolado, algo como uma espécie de refluxo de seu compositor em resposta às muitas reviravoltas em sua vida íntima. A forma com a qual o novo material foi trabalhado contribuiu em muito para este lento, porém intenso processo de aceitação: à exceção de um show semi-acústico, realizado já em 1994 para a estação de rádio FM 100 (acompanhado de Zeta Bosio e do colaborador Flavio Etcheto no baixo e guitarras adicionais, respectivamente), Gustavo não fez esforços para divulgar o disco em larga escala, preferindo deixar as novas canções falarem por si próprias. Mesmo assim, as novas músicas teriam presença cativa em suas futuras digressões: “Te Llevo Para Que Me Lleves” e “Pulsar”, inclusive, fizeram parte do setlist apresentado em sua derradeira turnê, em 2010.

Após “Amor Amarillo”, o Soda Stereo continuaria em hiato por mais um ano, após um acidente automobilístico que vitimaria o filho mais novo de Zeta Bosio. A carreira solo de Cerati se tornaria o centro das atenções do público após o fim da banda, em 1997. Seu próximo álbum individual, “Bocanada” (1999), angariaria ainda mais estranhamento por parte de sua base de fãs, intoxicada de saudosismo por seu antigo grupo, e marcaria uma aproximação mais intensa com a música eletrônica (o disco seria, eventualmente, alçado à segunda posição na recente lista dos 50 Melhores Discos de Rock Latino da Rolling Stone USA). Seu relacionamento com Cecilia Amenábar, então, já mostrava sinais de deterioração, num processo que informaria as canções tanto de “Bocanada” quanto de “Siempre Es Hoy” (2003). O AVC que o cantor sofreu em 2010 e que o colocaria em coma por quatro anos até seu falecimento causou comoção ao longo da América Latina e acabou abreviando uma carreira mais do que bem sucedida, onde mesmo os trabalhos mais distintos e atípicos poderiam, em seu devido tempo, alcançar aclamação e reconhecimento por parte daqueles com a mente aberta, a exemplo de seu compositor. “Amor Amarillo” é o primeiro passo em uma trajetória solo cheia de momentos memoráveis, e seu intimismo, contrastante com os estelares êxitos passados e futuros de seu autor, permanece um dos mais desafiadores, oscilantes e cativantes feitos em uma das mais incríveis jornadas da história da música pop moderna.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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