Crítica: “Bottoms – Clube da Luta para Meninas” explora sexo e violência com profundidade

texto de Lucas Reis

“Bottoms – Clube da Luta para Meninas” (2023), de Emma Seligman, é, aparentemente, um filme comum. Desses realizados a partir de uma fórmula pré-estabelecida que são produzidos aos baldes para encher os catálogos dos canais de streaming com obras supostamente novas. Nesse caso, o já manjado adolescente que gosta da menina popular do colégio, mas ela namora com o capitão do time de futebol americano e uma força-tarefa será necessária para que a possibilidade de beijar a garota dos sonhos se concretize.

No entanto, uma primeira distinção clara da fórmula pré-concebida é que as adolescentes apaixonadas são duas jovens homossexuais. As protagonistas PJ (Rachel Sennott) e Josie (Ayo Edebiri) querem encontrar uma forma de fazer com que as populares Isabel (Havana Rose Liu) e Brittany (Kaia Gerber) às notem. Para isso, elas criam um clube de defesa pessoal para mulheres que, na prática, funciona como um clube da luta. A empreitada funciona e as garotas passam a ser reconhecidas na escola, o que causa ciúmes nos jogadores do time de futebol que estão prestes a ter um jogo importante que irá envolver toda a comunidade escolar.

O que faz de “Clube da Luta para Meninas” uma obra incomum é subverter os clichês do gênero de filme adolescente para criar uma comédia explosiva de pura energia irônica em alta voltagem. A todo momento piadas se sucedem, uma mais agressiva do que a outra, fazendo o filme entrar em um espiral de absurdos sem que o espectador perceba. Quando se dá conta, já foi tragado para o caos criado por Seligman.

“Clube da Luta para Meninas” se coloca em um lugar muito específico junto de filmes como “Atração Mortal” (Michael Lehmann, 1988), “As Patricinhas de Beverly Hills” (Amy Heckerling, 1995), “Meninas Malvadas” (Mark Waters, 2004) e “A Mentira” (Will Gluck, 2010), criando uma espécie de subgênero de filmes adolescentes que debocham do próprio gênero e, claro, da época específica em que as obras são realizadas. Dessa maneira, “Clube da Luta para Meninas” faz uma radiografia muito perspicaz da sociedade e da própria produção fílmica mainstream.

O que parece interessar Seligman é se contrapor ao atual cinema hollywoodiano, sobretudo aos filmes de super-heróis. Se a violência em tais filmes ganham um caráter de fantasia, em “Clube da Luta para Meninas”, um soco é um soco. Dói, derruba e faz sangrar – e como tem sangue ao longo da obra. Por mais que, várias vezes, essa violência venha regada de deboche, ainda assim, ela existe. Quando Hazel (Ruby Cruz) é convidada a enfrentar o melhor lutador da escola – que vive enjaulado para conter sua fúria –, a sessão de espancamento é manifesta. Até o último golpe é possível sentir bestialidade dos socos e chutes. Inclusive, o clube da luta fica aparente nos corpos das garotas não por elas estarem aparentemente mais fortes ou definidas, mas porque todas estão com marcas de agressões em seus rostos.

Outra diferença evidente de “Clube da Luta para Meninas” em relação aos filmes de super-heróis é o tesão. Por mais que haja pessoas consideradas bonitas e com corpos hiper-definidos irrompendo nas telas, não há sexo nos filmes de super-heróis. Há uma frigidez conjunta nos personagens que não se permitem desejar outros. Por outro lado, tudo em “Clube da Luta para Meninas” permeia sexo. Toda a motivação inicial de PJ e Josie está ligada ao desejo que sentem por Isabel e Britanny – aliás é o que se espera de duas adolescentes.

Assim, tanto a violência como o sexo são explorados no filme com profundidade. O que faz uma terceira característica aparecer que contrapõe “Clube da Luta para Meninas” aos atuais filmes mainstream. A clareza de que há uma diretora com uma real proposta de encenação. Seligman tem uma direção criativa que difere de enorme parcela do cinema mainstream que parecem ter sido dirigidos por inteligência artificial. A diretora cria sequências de luta tão bem ensaiadas que não se imaginaria algo tão engenhoso para um filme de comédia. A sequência final de luta coletiva em um campo de futebol americano é melhor desenvolvida que centenas de lutas de filmes da Marvel.

No entanto, Seligman sabe que está dirigindo uma comédia e utiliza da montagem para gerar humor a todo o momento. Há cortes abruptos durante todo o filme que geram quebra de expectativa e levam ao riso. Como as piadas são incessantes, a montagem acelerada dá uma dinâmica frenética para o filme. Como no momento em que PJ explica que o clube de defesa pessoal foi pensado para que haja mais sororidade entre as meninas da escola, pois ouviu Hazel dizer algo parecido ou quando Josie dá um soco em PJ para demonstrar como é socar alguém. O humor vem da quebra de expectativa fundada na montagem veloz. No fim das contas, parece que a própria linguagem cinematográfica se traduz no filme com sua forma rápida e agressiva.

“Clube da Luta para Meninas” é uma das comédias mais interessantes e absurdas dos últimos tempos. E se coloca de forma tão cínica frente às discussões contemporâneas que, por muitas vezes, lembra os melhores momentos dos filmes de Adam Mckay (“Ricky Bobby: a toda velocidade”, “A grande aposta” ou “Vice”). Contudo, se McKay está mais interessado na política institucional dos Estados Unidos, Seligman mergulha em pautas como o feminismo e a política construída no dia a dia.

Embora o discurso feminista seja valorizado ao fim, os discursos rasteiros promovidos com a pauta são constantemente ridicularizados pelo filme sem qualquer pudor. Uma das piadas recorrentes é como PJ e Josie são constantemente referidas como “gays, feias e sem talento”. Inclusive, o diretor da escola as chama dessa maneira. Em contraponto ao “ideal de virilidade e masculinidade”, como ele denomina Jeff (Nicholas Galitzine), o tal capitão do time de futebol. São piadas que fogem do que seria politicamente correto e agridem espectatorialidades mais sensíveis. Entretanto, Seligman tem duas atrizes brilhantes que conseguem dar o tom do humor com muita facilidade.

Rachel Sennott assume o teor do filme e lança as piadas com velocidade como se não percebesse os absurdos que permeiam a obra. Por outro lado, Ayo Edebiri tem uma função mais difícil de fazer um contraponto às extravagâncias e, por muitas vezes, parece ser uma voz de sensatez ali. De qualquer maneira, as duas têm um ótimo entrosamento e conseguem valorizar o roteiro de Seligman e da própria Sennott.

Emma Seligman já havia se demonstrado uma diretora talentosa na comédia indie “Shiva Baby” (2020). Todavia, dá um passo maior na carreira ao conduzir uma produção de maior proporção de forma hábil e criativa resgatando características do screwball comedy típico dos Estados Unidos. Resta esperar pelo seu próximo trabalho, mas tendo em vista o que é “Clube da Luta para Meninas”, é possível dizer que não sobrará pedra sobre pedra. O cinema agradece.

“Bottoms – Clube da Luta para Meninas” está disponível na Amazon Prime Video

– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine

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