Festival Mucho! entrega sua melhor edição com grandes shows de Maglore e Kumbia Queers em São Paulo

texto de Leonardo Vinhas
fotos de Ricardo Carvalheiro 

No segundo final de semana de dezembro – e sem o calor que vem castigando a capital paulista –, o Festival Mucho! realizou sua sétima edição, que, em muitos aspectos, pode ser considerada a mais bem-sucedida de sua história. Foram três dias de integração latino-americana pela música, sim, mas também pela gastronomia e pelo espaço público. Um sucesso expresso em números – 5300 pessoas passaram pelo festival ao longo dos três dias, segundo estimativas da produção. Mas números estão longe de ser o único indicador que comprova os acertos do evento.

A primeira edição do Mucho! aconteceu em 2017, e foi a mais ambiciosa em termos de line-up, trazendo artistas mainstream do cenário latino-americano, como No Te Va Gustar, Kevin Johansen e Gaby Moreno. Na ocasião, o festival brigou com problemas de som, que prejudicaram bastante as apresentações de Johansen e dos colombianos Romperayo; teve pouco público e vários senões no que dizia respeito à alimentação e bebidas – o Scream & Yell esteve lá e contou como foi. A pandemia obrigou três edições a acontecerem em formato online (a quinta, em 2021, também contou com nomes de grande popularidade, como Alceu Valença e Jorge Drexler). Apenas em 2022 o festival retornou ao modelo 100% presencial.

Agora em 2023, a programação se estendeu por três dias, entre 8 e 10 de dezembro: na sexta, no Tendal da Lapa, o guianense Mad Professor se apresentou junto com as brasileiras do Feminine Hi-Fi, antecedidos pela colombiana Nídia Gongora, com 2 mil presentes. No sábado, na Casa de Cultura do Butantã, rolaram os shows de Milk Shake (Paraguai), Kumbia Queers (Argentina), Cuatro Pesos de Propina (Uruguai) e Maglore (Brasil), num público rotativo que somou 2 mil pessoas. O mesmo local ainda recebeu, no domingo, os brasileiros Brazuros e Brisa Flow, para cerca de 800 pessoas, também rotativas. Em todas as datas, DJs brasileiros fizeram seus sets entre as apresentações. O Scream & Yell compareceu no sábado, e aproveitou para conversar com as bandas e os organizadores do evento.

Apesar do nome, a Casa de Cultura do Butantã não fica nesse bairro, e sim no Jardim Peri Peri, na Zona Oeste de São Paulo. Durante a Virada Cultural de 2023, o local recebeu um palco latino, curado e organizado pelos mesmos responsáveis pelo Mucho!. Tanto nesse caso como no festival, a escolha de um espaço mais longe do Centro é intencional. “A ideia é descentralizar, pra levar a latinidade a todos os cantos da cidade. Até porque eu acredito que todo lugar tem uma latinidade, é só mexer que ela aparece”, disse um sorridente Hernán Halak, fundador da produtora Mundo Giras e responsável, junto com Felipe França, da Difusa Fronteira, pela criação e realização do festival.

Halak afirma que o festival tem essa vocação de se espalhar pela cidade, mas reconhece que o espaço da Zona Oeste tem sido bastante positivo para os eventos que ele e seus parceiros organizam. De fato, o aproveitamento da Casa é total: a área externa recebeu uma feira de artesanato e gastronomia, que funcionava mediante o uso de moeda social. Na parte interna, além do palco e da área dos DJs, havia um bar e uma loja de merchandising dos artistas. A circulação era facilitada, o acesso a banheiros era amplo, e a entrada, gratuita.

Entre os negócios presentes, vale destacar o Sol y Sombra, um bar fundado por uma família de imigrantes bolivianos que tem duas unidades em São Paulo. Em ambos, a maior parte da força de trabalho é de imigrantes sul e centro-americanos, e a programação cultural se baseia na mesma premissa da integração latino-americana, tendo a música como eixo principal. Nos dois quiosques que operou no evento, o Sol y Sombra ofereceu ótima comida a preços justos (entre R$ 18 e R$ 25), e uma boa oferta de cervejas artesanais que não ultrapassavam os R$ 16 para um copo de 350ml. Golaço da organização, em oferecer comida e bebida de qualidade em um evento que teve suas portas abertas às 11h e só as fechou às 22h.

Milk Shake

Quanto aos shows, às 13h30, já tinha rolado o bloco Te Pego no Cantinho, mas a reportagem só chegou no terço final da apresentação do Milk Shake. O duo de Assunção, formado pelas vocalistas María José Maciel e Sabrina Montes, veio acompanhado de um DJ e traz uma base de reggaeton à qual agregam elementos de hip hop e trap. Já ouviu isso antes? Pois é, o trabalho que a banda apresentou até o momento é tão competente quanto genérico, caindo nessa estética homogeneizada do que hoje chamam de “música urbana”. Ao vivo, a energia das duas moças compensa a falta de criatividade, e funcionou bem para esquentar os motores da latinidade de um público ainda modesto em números, mas bastante interessado.

Com um público consideravelmente maior, e grande presença de pessoas LGBTQUIA+ na plateia, foi a vez da Argentina entrar em cena. As Kumbia Queers vieram do punk e logo migraram para a cumbia, e no meio do caminho deram um jeito de juntar os dois gêneros em um “tropipunk” requebrante, pesado e extremamente divertido. Se em estúdio elas já soam bem, ao vivo elas botam uma energia roqueira em seu sacolejo – e olha que a guitarrista Pilar Arrese só foi ligar a distorção lá pro meio do show, a partir da notória versão cumbificada para “Misirlou” (sim, aquela).

Kumbia Queers

“Vocês sabem que dia é amanhã, né? Amanhã começam quatro anos de merda”, disse Pilar, em referência à posse do presidente Javier Milei. “Nós somos as contradições desse sistema social que o elegeu”, emendou. Foi a primeira de muitas provocações políticas. E, como convém à banda, nem tudo dizia respeito à política partidária. “Nem tudo é bebida, música e foda: tem também o beijo de língua”, mandou a vocalista Juana Chang, para alegria especialmente da porção feminina da plateia (que incluía quase todos os músicos e DJs do dia, vale dizer).

Cabe ressaltar que Juana é uma das frontwomen mais sexy da história do rock argentino, e isso com vários “signos” que o padrão social jamais aceitaria como sexy, como a barriguinha de chopp e os mullets. Pilar Arrese pula o tempo todo e divide com Juana o protagonismo cênico, entregando muito com poucos acordes, enquanto a baterista Inés Laurencena toca seu kit que mistura peças acústicas e eletrônicas com mais precisão que muita drum machine. A baixista Patrícia Pietrafasa vai muito além de sustentar os riffs: seu baixo conduz a banda e garante uma variedade rítmica que a diferencia de muitos cumbieros, modernos ou tradicionais. Mesmo desfalcadas da tecladista Flor Linyera e tendo que recorrer a trilhas pré-gravadas de teclados, a banda manteve sua espontaneidade e organicidade sonora. Grande banda, grande show.

Kumbia Queers

Os Cuatro Pesos de Propina vieram a seguir. Os únicos a atrasar sua entrada em cena, também foram os únicos em que o som deixou a desejar. Os graves saíam sem pressão, a bateria estava sem volume, as guitarras soavam distantes. Mas o que mais comprometeu o show foram algumas escolhas da banda, como o setlist esquizofrênico, que passava do hardcore ao folk e ao som de inspiração eletrônica sem que houvesse uma ligação entre esses elementos. Explico: os Cuatro pesos surgiram como uma banda meio riponga meio ska, e aos poucos foram somando outras estéticas ao seu som. Nunca, porém, foi um amálgama: seus discos sempre passeiam por diferentes gêneros. O álbum “La Llama” (2019) se destacou por trazer uma identidade sonora mais palpável em meio a tanta pluralidade, e de brinde trouxe algumas das melhores canções da banda – como “Buena Suerte”, “Nunca en Trégua” e “La Llama”.

Só que “Respirar Una Vez Más” (2021), o mais recente, não manteve o nível. Suas canções ficam meio soltas no set, e não conversam bem com o material mais antigo. Vi a banda ao vivo em quatro ocasiões – nunca com a mesma formação – e essa foi disparada a apresentação menos inspirada de todas. Nem o hit “Mi Revolución” provocou grande comoção, o que é surpreendente ao levarmos em conta que boa parte do público – a essa altura, bem numeroso – dava mostras de conhecer a banda e esperar por essa canção em especial.

Cuatro Pesos de Propina

O percussionista Gastón Pepe, que atuava como uma espécie de “segundo frontman”, está mais recolhido para dar espaço para Agustina García, uma fã que assumiu um papel de segunda vocalista. Porém, as vozes dela e de Gastón Puentes, vocalista principal, ainda não encontraram um equilíbrio para funcionar a contento. Ainda assim, o Cuatro Pesos é uma banda com substância, e o saldo final não foi exatamente uma catástrofe, daquelas que faz o salão esvaziar. Mas foi pouco pelo que a banda pode entregar, e só deixou felizes os apreciadores mais fanáticos.

Coube ao Maglore fechar a festa, e no caso deles, “entrosamento” é apenas um dos muitos atributos que garante um dos melhores shows brasileiros da atualidade. Teago Oliveira (voz e guitarra), Lucas Gonçalves (baixo), Lelo Brandão (guitarra e teclados) e Felipe Dieder (bateria) tocaram bastante ao longo desse ano, refinando as já belas canções do álbum “V”, e melhoraram o que já funcionava bem na turnê do álbum anterior, “Todas as Bandeiras”. Com essa bagagem, fizeram um belo set – ou algo parecido com isso, porque, passado pouco mais da metade do show, Teago disse que iam ignorar o setlist e convidou o público a “pedir o que quiserem”.

Maglore

Com isso, a banda recuperou a excelente “Demodê”, e continuou pinçando faixas menos conhecidas antes de fechar o show com o tradicional encerramento, emendando “Valeu, Valeu”, “Mantra” e “Espírito Selvagem”. Sem perder tempo com a encenação que envolve “a hora do bis”, as três faixas se seguiram, com a primeira e a última estendidas numa festa guitarreira em que Teago e Lelo comprovaram que, por mais que a banda tenha um flerte com a MPB, sua matriz é diretamente roqueira.

O show foi anunciado como “Maglore convida Luê”, mas a verdade é que a cantora paraense cantou apenas duas músicas, entre elas a recém-lançada versão para “Dona da Minha Cabeça”, de Geraldo Azevedo, gravada junto aos baianos. Sua participação, porém, foi morna, e teve recepção de acordo. A verdade é que os dois artistas parecem habitar mundos diferentes, e a colaboração soa desconjuntada – e até meio forçada. Mesmo a canção de Azevedo, uma belezinha pop e apaixonada, soa travada e sem tesão.

Maglore e Luê

Essa, porém, foi a única “integração” que não funcionou no festival. Como se disse, o Mucho! amadureceu muito ao longo da sua breve história. Não só sanou todos os problemas apresentados na primeira edição como apresentou alternativas ainda mais interessantes, consolidando sua proposta. Mais importante, firmou sua posição como um dos principais eventos da integração latino-americana pela música, assumindo um protagonismo que antes cabia ao saudoso El Mapa de Todos, com o adicional de ser um evento que assume a diversidade da forma mais ampla possível, acolhendo diferentes etnias, nacionalidades, classes sociais e gêneros (humanos e artísticos).

Hernán Halak disse ao Scream & Yell que a captação de recursos para viabilizar a edição de 2024 já está em andamento, e que as ambições da curadoria estão altas, mirando trazer alguns dos artistas que tocaram nas versões online, bem como nomes novos e de destaque no cenário. Para quem participou dessa bela festa latina, a expectativa já é alta. Em um tempo em que a América Latina se vê mergulhada em tantas crises políticas, econômicas e sociais, faz bem ao continente ter outras coisas pelas quais ficar ansioso.

Kumbia Queers

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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