Caetano Veloso em detalhes: “Lado C”, de Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes, é um livro excepcional

texto de Davi Caro

Em 1983, o então colunista da Folha de São Paulo (há muito atuando como correspondente em Nova York) Paulo Francis apelidou Caetano Veloso como “pajé sujo, doce e maltrapilho”, num artigo em que discorria sobre uma entrevista realizada na cidade americana com Mick Jagger pouco antes, e que contou com a participação do jornalista Roberto D’Ávila. Francis cutuca, especialmente, a maneira com a qual o cantor, de forma aparentemente espontânea e deslumbrada, se dispunha a aturar um certo cinismo e condescendência do ídolo britânico. A regra, segundo o escritor, era de que Caetano seria capaz de fazer de tudo para se tornar relevante num momento em que o Olimpo reservado aos maiores da MPB parecia intransponível. O baiano, de uma forma que viria a ser repetida a exaustão nos anos seguintes, respondeu à altura, de modo incisivo: “As pessoas me debatem e me perguntam coisas porque sou polêmico mesmo. E daí?”.

E a verdade é que existem poucos artistas na linha evolutiva da música popular brasileira – como dizia Raul Seixas – que demandem e mereçam tanta análise quanto Caetano Veloso. E é muito bom que seja assim: “Lado C: A Trajetória Musical de Caetano Veloso Até a Reinvenção com a Banda Cê” (2022), a mais nova obra dos jornalistas Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes, lançada pela editora Máquina de Livros, se propõe a discorrer com esperteza e graça sobre um dos aspectos mais notáveis da carreira de Caetano: o musical.

Carneiro e Guedes, vale citar, foram os responsáveis pelo quadro A Caravana do Delírio, apresentado por ambos como uma peça mais do que bem-vinda ao universo expandido do canal Alta Fidelidade, mantido pelo primeiro há mais de dez anos com a premissa de discutir música pop de maneira ao mesmo tempo coesa, inclusiva e muito, muito divertida. A bordo d’A Caravana, a dupla se debruçou sobre algumas das mais intrigantes e imersivas discografias da história do pop nacional. E isso inclui, naturalmente, a Caetano Veloso.

Como o próprio título já faz questão de mostrar, o livro é uma iniciativa didática e meticulosa de traçar um panorama da carreira de Veloso tomando como ponto inicial – e final – o fim de suas atividades ao lado dos músicos cariocas Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (contrabaixo e piano elétrico) e Marcelo Callado (bateria), coletivamente conhecidos como Banda Cê. Durante dez anos, entre 2005 e 2015, a aliança entre os jovens instrumentistas e o compositor santamarense rendeu três discos de estúdio, três registros ao vivo, e diversas turnês pelo Brasil e pelo exterior. É certeiro, da parte dos biógrafos, começar traçando um paralelo sobre a carreira de Caetano que nos leva ao início dos anos 70, com o personagem central exilado e isolado em Londres. Ao lado de Jards Macalé, Áureo de Souza, Moacyr Alburquerque e Tutty Moreno, Caetano produziria um dos mais celebrados discos de música popular da história do Brasil, “Transa” (1972) – 8º melhor disco brasileiro de todos os tempos segundo votação do podcast Discoteca Básica -, que recentemente foi recriado ao vivo.

De volta do exílio, após briga com Macalé e participações pontuais de alguns dos músicos já citados em “Araçá Azul” (1972) e decisivas nos álbuns gêmeos “Qualquer Coisa” e “Jóia” (1975), ele embarca em uma polêmica temporada ao lado da Banda Black Rio para divulgar “Bicho” (1977). No entanto, Veloso continuava brincando com a ideia de ter uma banda para si. E a oportunidade veio com a formação d’A Outra Banda da Terra, que acompanhou o artista entre 1978 e 1983 – e gravou cinco discos com o baiano – e também junto da Banda Nova, que se metamorfoseou conforme Caetano avançou ao longo dos anos 1980 após as gravações daquele que se anunciava como seu disco mais “rock”, “Velô” (1984).

Foi no início da década seguinte, no entanto, em que explorou territórios que fariam toda a diferença no ponto futuro sobre o qual Guedes e Carneiro focam suas lentes. Após duas colaborações com o produtor e músico anglo-brasileiro Arto Lindsay (“Estrangeiro”, de 1989, e “Circuladô”, de 1991), Caetano descobriu, ao longo da turnê deste último, um aliado valioso na forma do diretor musical do espetáculo, Jacques Morelembaum. Levando em consideração os vários discos que fez ao longo dos cerca de 15 anos, produzindo tanto resultados multi-aclamados pela crítica e pelo público (como “Fina Estampa”, de 1994, ou “Prenda Minha”, gravado ao vivo em 1997 e lançado no ano seguinte) quanto álbuns que acenavam ou somente para as audiências (como “A Foreign Sound”, 2004) e para a mídia especializada (como “Eu Não Peço Desculpa”, de 2001), um período muito bem aproveitado não deixa de trazer certo desgaste, que também se anunciava na vida pessoal do protagonista – Caetano se divorciara de sua esposa, a empresária Paula Lavigne. Era compreensível que o compositor precisasse de renovação.

E foi o que ele conseguiu, por meio da associação com a banda com quem divide o título do livro; cooptando o guitarrista Pedro Sá da cena de rock alternativo carioca dos anos 1990 (por meio de uma amizade deste com o filho primogênito, Moreno, que também virou um fiel colaborador), e, por associação, a cozinha rítmica de Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria), Caetano conseguiu o que queria: uma banda enxuta, jovem, com peso de grupo de rock (é sabido que o artista foi inspirado ao formato através de sua exposição, por meio de Pedro, aos Pixies), e que o ajudaria a transpor suas ideias para uma linguagem que dialogasse com um público mais jovem, que a princípio associaria sua imagem ao sucesso da regravação de “Sozinho”, de Peninha. O que se iniciou com “Cê” (2006) é um processo de troca de pele antropofágico por meio de Veloso. Entre versos pungentes supostamente direcionados, ou influenciados, pela separação matrimonial (“[…] Tu é gênia, gata, etecetera/Mas ‘cê foi mesmo rata demais […]” de “Rocks”, ou o refrão de “Odeio”, recheado de ironia – “Odeio você/Odeio você”) e pela liberdade decorrente disso – tal como na abertura, em “Outro”, que inicia os trabalhos com “Você nem vai me reconhecer/quando eu passar por você” -, Caetano parece ter mais fôlego em aceitar seu papel como um estranho em uma terra estranha. Isso é perceptível nos outros grandes momentos do álbum, como em “Não Me Arrependo”, “Musa Híbrida” e “Um Sonho”, além da eulogia de “Waly Salomão”.

Uma longa turnê ao lado do trio de músicos, grande aclamação da maior parte dos jovens em suas audiências, e uma surpreendente boa vontade por parte da crítica especializada separam “Cê” de “Zii e Zie” (2009), que chegou ao público intrigando e atraindo ao mesmo tempo. Com o misterioso subtítulo “Transambas”, este encontrou menos boa vontade do que o outro, e, no entanto, não deixou de ser visto como algo além de um bom trabalho. Embora truncado em muitas de suas rimas (“Brilhou, piscou […] Ardeu, resplandeceu/A nave da cidade”, em “Perdeu”) e talvez claro demais em outras (“O fato dos Americanos/Desrespeitarem/Os direitos humanos/Em solo cubano/É por demais forte/Simbolicamente/Para eu não me abalar”, de “A Base de Guantánamo”), “Zii e Zie” é, conforme o texto de Guedes e Carneiro, um disco chuvoso, numa atmosfera que é carregada desde a capa. Talvez o fato de ter tido boa parte de suas músicas demonstradas primeiro no projeto multimídia “Obra em Progresso” tenha amolecido o coração dos aficionados por Caetano antes do lançamento. Somente assim canções não tão inspiradas tal como as outras – como a confusa “Lobão Tem Razão”, a quase intransponível “Incompatibilidade de Gênios” e a arrastada “Ingenuidade” – poderiam figurar tão facilmente em meio a diversas outras boas adições ao repertório de Caetano. Não que ele se importasse tanto com isso: em meio a novos relacionamentos e disposto a fazer mais uma turnê internacional, quaisquer críticas não muito favoráveis não impactaram o cantor tanto quanto talvez tivessem nos anos 1970 ou 1980. Seria natural que o ritmo continuasse de forma estável. Não foi exatamente o caso.

Entre manchetes espertamente lembradas pelos escritores (o famoso episódio no qual Caetano virou notícia ao estacionar no Leblon) e novas empreitadas (a produção de “Recanto”, da amiga de longa data Gal Costa), levariam outros três anos até que Caetano e a banda Cê se reencontrassem. Aconteceu, e com “Abraçaço” (2012), os quatro músicos parecem ter alcançado uma espécie de ponto lógico de conclusão (ou, diriam os indispostos, esgotamento) do modelo adotado em 2006. Basta escutar a faixa de abertura, “A Bossa Nova é Foda”, com suas citações a lutadores de MMA, hashtags e reverências a (sim) João Gilberto, para se dar conta que a abordagem “atualizada” de Caetano começava a atingir estados de limitação. Na longa e progressiva “Um Comunista”, com seus arranjos rítmicos e guitarrísticos angulares e letra homenageando Carlos Marighella, bem como na propulsiva “O Império da Lei”, percebe-se uma modernização, e otimização, da abordagem de Macalé para “Transa”: a ideia de músicos que colaborassem com as criações de Caetano partindo do modo particular deste último tocar violão. “Estou Triste” deixa a peteca cair, embora “Funk Melódico” chute a mesma alto demais para saber com segurança onde ela vai cair (por sorte, ela cai no lugar certo). “Quando o Galo Cantou” e “Gayana”, momentos ótimos que passam em branco em meio ao repertório, são devidamente lembradas pelos autores, que também acertam ao enquadrar “Abraçaço” como um encontro entre a dissonância de “Cê” e o experimentalismo de “Zii e Zie”, com maturidade e solidez suficientes para assegurar o sucesso da associação entre compositor e banda.

O livro também acerta em começar pelo fim: a noite de 21 de junho de 2015, quando Caetano e os músicos da banda Cê se despediram pela última vez do público que, em frente à estação Júlio Prestes, no centro de São Paulo, testemunhou o fechamento da turnê de “Abraçaço”, que havia começado quase três anos antes. Tal acerto se evidencia pelo cuidado dos escritores ao detalhar as experiências das quatro turnês (contando os shows de “Obra em Progresso”) realizadas por Caetano, Ricardo, Marcelo e Pedro a partir de 2006. Seja em momentos redentores (a “pré-estreia” de “Cê” no Tim Festival, seguidas pelas apresentações do repertório no Circo Voador do Rio) ou tensos (como o show que originou o primeiro dos registros ao vivo do quarteto, “Multishow: Cê Ao Vivo”, apontado pelos músicos como aquém do atingido em outras apresentações), os shows protagonizados pelos quatro músicos são parte chave das transições entre um trabalho e outro. Caetano já se mostrava inquieto e disposto a partir para outros projetos – como a turnê que começaria em 2015 ao lado de Gilberto Gil, ou o mais recente disco de inéditas, “Meu Coco” (2021 – o primeiro desde “Abraçaço”). Da parte de Marcelo, Pedro e Ricardo, não permaneceram mágoas, conforme os três fazem questão de salientar em vários momentos.

Caetano também parece guardar muitas lembranças ótimas do período de 2005-2015. Por dez anos, ao lado de músicos de outra geração, com outra linguagem, foi capaz de ganhar um novo público sem deixar de ser tão caracteristicamente Caetano Veloso: idiossincrático, iconoclasta, irreverente, icônico. Todos estes adjetivos também são cabíveis ao trabalho de Carneiro e Guedes, que fazem um trabalho excepcional, atrativo ao fã de longa data assim como ao neófito em termos de MPB, ao documentar e analisar a trajetória de um dos mais relevantes e mitológicos personagens da história do cancioneiro popular com foco em um de seus períodos mais misteriosos, discutidos, e irresistíveis. É revelador que o próprio Caetano pareça ter se dado conta de uma outra dimensão do próprio legado, e, quem sabe sem querer, acabou retornando ao formato de banda tão bem evidenciado pelos dois autores: apresentando pela primeira vez, em 2023, um show baseado diretamente no repertório de “Transa”, no qual conta inclusive com a participação de Jards Macalé (em um espetáculo que debutou no festival Doce Maravilha, de Nelson Motta), Caetano abraçou sua obra de maneira respeitosa, e nunca olhando para trás em detrimento de trabalhos futuros. O outrora “pajé sujo e maltrapilho” parece ter aprendido a abraçar seu próprio legado – pelo qual os dois autores mostram profundo respeito e ao qual fazem mais do que justiça.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo

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