Com Caetano acompanhado de Duda Beat e Marina Sena, Festival Turá faz estreia bem-sucedida em Porto Alegre

texto de Ananda Zambi
fotos de Bah Creators

Porto Alegre é uma cidade que tem um potencial enorme para muitas coisas. No aspecto cultural mais ainda, já que o público gaúcho sabe apreciar e respeitar muito artistas que aqui pisam (ainda mais quando a cidade já foi bem mais movimentada nesse quesito em outros tempos, o que gera carência e nostalgia nas pessoas). O recente boom de festivais de música no Brasil também impactou a capital do Rio Grande do Sul, que sediou diversos e interessantes festivais ao longo do ano, como Rap In Cena, Meca (Caldeira) e Festival Avante, por exemplo. O Festival Turá, evento paulista criado em 2022 que busca celebrar a música brasileira, realizou sua primeira edição em Porto Alegre nos dias 18 e 19 de novembro e reinaugurou em grande estilo um dos espaços para shows mais legais do país: o Anfiteatro Pôr do Sol, na beira do rio Guaíba.

Produzido pela T4F e pela Maia Entretenimento, o festival fez uma boa curadoria de artistas, promovendo apresentações especiais de bandas gaúchas queridas pelo público, como Papas da Língua e Fresno (com participação luxuosa de Pitty), dando espaço a artistas promissores como Jup do Bairro, Francisco, el Hombre e Baco Exu do Blues, trazendo as atuais divas pop brasileiras Marina Sena e Duda Beat e reverenciando grandes nomes da música popular brasileira, como Alceu Valença, Emicida e Caetano Veloso. Além deles, atrações locais também agitaram o fim de semana, com os blocos de carnaval irreverentes Império da Lã e Bloco da Laje, que abriram cada um dos dias, e com DJs de festas conhecidas de Porto Alegre (com exceção de Carol Sanches & Raquel Pianta e Fredi Chernobyl, único com set autoral) que tocaram nos intervalos de cada show.

Sábado: Pelos raios desse sol lilás

Após uma madrugada de tempestade na capital gaúcha, o primeiro dia do evento iniciou às 13h50 sob a tensão da iminência de mais chuva. Talvez por isso, as pessoas demoraram a chegar no Anfiteatro, um espaço a céu aberto e coberto por grama. Ainda estava nublado e com algumas poças de lama, mas mesmo assim deu para sentir a boa ambientação do lugar com redes e muitos espaços para sentar. Também havia stands das marcas patrocinadoras oferecendo brindes e experiências.

Império da Lã

Nada mais porto-alegrense do que começar a edição gaúcha do Turá com o show do bloco Império da Lã. Criado nos anos 2000 e comandado por Carlinhos Carneiro (Bidê ou Balde), a banda interpreta clássicos do cancioneiro popular, como “Deusa do Amor” e “Como uma Deusa” – além do hino do bloco, “Banho de Cerveja” – através de uma mistureba de ritmos. Eles não têm integrantes fixos, e desta vez estavam no palco, além de Carlinhos, nomes como Adriana Deffenti, Guri Assis Brasil, Rodrigo Fischmann (Dingo) e o Cara da Sunga, personalidade da cidade. Esbanjando carisma como sempre, Carneiro simulou receber uma ligação de Eduardo Leite mandando trocar o hino oficial do Rio Grande do Sul por “Amigo Punk”, da Graforréia Xilarmônica. Nada mais justo.

Jup do Bairro

A seguir, foi a vez da rapper paulista Jup do Bairro. Sob a ótica de uma mulher trans, preta, gorda e periférica, a artista traz suas vivências em músicas como “Transgressão”, “Pelo Amor de Deize”, “Rock Triste pra Chorar” e “All You Need is Love”, o show inteiro com uma performance firme e interessante, além de também dar espaço para seus parceiros de palco Mulambo e DJ Evehive. Ao final, Jup cantou “Corre”, uma de suas músicas mais conhecidas, que narra de maneira um tanto bem-humorada sua infância e adolescência no contexto periférico. Nessa hora, ela jogou dinheiro de mentira na plateia, evidenciando sua consistente identidade visual. Jup tinha o seu público ali, mas ainda pequeno para o que merece.

Papas da Língua

O show de reunião do Papas da Língua marca a retomada da banda que estava em hiato desde 2019 e o primeiro momento nostálgico do festival. A quantidade de espectadores já era maior e cantou todas as canções do início ao fim. Com sólida presença em trilhas de novelas – o que os projetou nacionalmente –, o grupo de pop reggae apresentou uma chuva de hits como “Vem pra Cá”, “Lua Cheia (Fica Doida)”, “Disco Rock”, “Oba Oba”, “Blusinha Branca” e “Eu Sei”. O segundo show nostálgico da noite só aconteceria depois da aparição de Alceu Valença – que inclusive nos trouxe, definitivamente, o sol.

Alceu Valença

Um dos artistas que mais se beneficiaram desse movimento de resgate da música brasileira que marca o Turá (e diversos outros festivais brasileiros, como o Coala, um dos precursores) foi o pernambucano Alceu Valença, que além de afastar as nuvens cinzas do céu, se apresentou literalmente no entardecer. O mago das brasilidades começou seu espetáculo, batizado de “Alceu Dispor” (sim, inspirado no meme), com “Bobo da Corte”, seguido de “Pagode Russo”, de Luiz Gonzaga, e “Girassol”, regendo a plateia. Super interativo e contagiante – “vocês são os cantores, vocês são os percussionistas”, disse o artista durante a apresentação – , o show seguiu com músicas como “Pisa na Fulô”, “Flor de Tangerina”, “Coração Bobo”, “Como Dois Animais” e “Táxi Lunar”, finalizando, obviamente, com “La Belle de Jour”, “Anunciação” e “Morena Tropicana”. Show alegre, não? Mas antes de cantar “Solidão”, Alceu contou a história de como ela foi feita, e declarou: “Se não fosse a tristeza, não teria alegria. Mas eu torço pra que a gente tenha 99,9% de alegria.” Talvez venha disso a vibração de um dos melhores shows do dia.

Pitty e Fresno

Já de noite, a Fresno fez o penúltimo show do primeiro dia de festival. A apresentação também foi especial, celebrando o encerramento da turnê “Vou Ter Que Me Virar” neste ano. Apesar deste último trabalho ir bastante para o lado do eletrônico, o show foi um tanto elétrico, com muita guitarra distorcida. Já na primeira metade do set, uma surpresa: a música “Manifesto”, que não costuma entrar no setlist da banda, foi tocada e com participação da atração seguinte da noite, Emicida, levando o público do grupo, que já é bem aficionado, à loucura. Lucas Silveira também cantou sucessos como “Quebre as Correntes”, “Eu Sei”, “Cada Acidente” e “Desde Quando Você se Foi”. E então veio um dos momentos mais esperados do show e da noite: a participação da roqueira baiana Pitty, que é quase uma unanimidade nacional, prendendo de fato a atenção de todos nesse momento. Fresno e a artista cantaram juntos apenas uma música da banda, “Casa Assombrada”, e depois rolou o repertório da cantora, como “Na Sua Estante”, “Máscara” e “Me Adora”. O grupo, que veio do underground, demonstrou emoção em estar em um dos palcos mais importantes de Porto Alegre.

Emicida

O headliner do dia foi Emicida, que não deve em nada para os medalhões da MPB. Um dos artistas brasileiros mais visionários, interessantes e completos da atualidade (principalmente após o projeto “AmarElo”, de 2019), Emicida, que faz tempo que já ultrapassou os limites do rap, comandou a plateia com voz, agogô e flauta transversal, muito bem acompanhado de sua banda, que é a cereja do bolo do show do paulista. Numa apresentação que trouxe “A Ordem Natural das Coisas / Chiclete com Banana”, “Quem Tem um Amigo (Tem Tudo) / A Amizade”, “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, “AmarElo”, “Pantera Negra”, “Boa Esperança”, “Principia”, “Passarinhos” e “Hoje Cedo” – com a presença inesperada de Pitty, novamente – Emicida encerrou a primeira noite do Turá renovando as energias do público. O sábado já tinha cumprido as expectativas, mas o domingo seria ainda melhor.

Domingo: Sem samba (e água) não dá

Após a trágica morte de Ana Clara Benevides durante show de Taylor Swift no Rio de Janeiro, cuja principal suspeita é de desidratação, o ministro da Justiça Flávio Dino anunciou uma portaria de execução imediata determinando a obrigatoriedade das produtoras de shows disponibilizarem hidratação nos eventos. Por isso – e também, provavelmente, pela produtora do Turá ser a mesma da turnê da cantora norte-americana no Brasil –, no segundo dia de festival a água foi distribuída para o público gratuitamente, o que foi importante para aguentar o calorão que fez de tarde.

Bloco da Laje

Com mais gente que no sábado, o domingo começou com o Bloco da Laje, um dos mais interessantes do carnaval gaúcho. Coletivo que surgiu no teatro e que se autodefine como “grupo cênico, musical e carnavalizado”, o bloco de carnaval alternativo e nichado foi se tornando um dos principais e mais queridos da cidade, o que ajudou a reunir mais gente logo no início do evento. Músicas como “O Sol É o Rei”, “Recanto Africano” e “Deixa Brincar” coloriram e trouxeram muito brilho para o início do dia.

Francisco, El Hombre

No mesmo embalo chegou Francisco, el Hombre. Definitivamente, o grupo formado em Campinas com integrantes brasileiros e mexicanos é uma banda de palco, com larga experiência em apresentações de rua. Por isso, são ótimos músicos, mas infelizmente com músicas medianas, com exceção do hit “Triste, Louca ou Má”, “Calor da Rua”,“Tá com Dólar, Tá com Deus”… Mas também é visível que o intuito maior ali é agitar e interagir, como por exemplo no momento em que abrem uma roda no meio do público. Enquanto performance tá valendo, e se tem gente que gosta, é de certa forma uma missão cumprida.

Marina Sena

A mineira Marina Sena surgiu no final da tarde renovando o público do gargarejo. Mesmo com muita gente questionando sua capacidade artística (sobretudo vocal) e com o uso de playbacks de apoio nesse show, a apresentação surpreendeu positivamente, entregando qualidade musical e estética. Marina lançou o ótimo “De Primeira” em 2021 e o não tão bom “Vício Inerente” em 2023, mas nem por isso o setlist ficou inconsistente, mesclando canções mais antigas como “Me Toca”, “Ombrim”, “Pelejei”, “Voltei pra Mim” e “Por Supuesto” com as novas “Sonho Bom”, “Tudo pra Amar Você”, “Me Ganhar”, “Mande um Sinal”, “Que Tal” e “Dano Sarrada”. Uma fã entregou um retrato da artista em aquarela a ela, e Marina recebeu com muito carinho. Ele exala carisma e, sim, tem “star quality”. Mas pecou em não apresentar a banda.

Duda Beat

A seguir, mais uma dessa nova leva de divas pop brasileiras: Duda Beat. Uma artista que tem sua base de fãs muito apaixonada e ela sabe disso: curte seus ouvintes, curte estar no palco, curte criar e com autenticidade. Com uma estética muito bem amarrada e trabalhada, a cantora pernambucana ficou tão à vontade com o público do festival que se apresentou tomando vinho e, na metade do show, tirou sua bota e se apresentou descalça. Músicas como “Nem um Pouquinho”, “Tangerina”, “Bédi Beat”, “Meu Jeito de Amar”, “Meu Pisêro” e “Bixinho” fizeram parte do setlist, e Duda cantou pela primeira vez o single “Saudade de Você”, lançado apenas nesta terça-feira (21/11), faixa bem voltada para o eletrônico.

Baco Exu do Blues

Mudando completamente a vibe, Baco Exu do Blues atraiu um dos maiores públicos do festival. O rapper baiano também se destaca no gênero, trazendo para sua música muitas referências da literatura e da música popular brasileira, além de falar sob a ótica das religiões de matriz africana. No show, Baco interagia bastante com suas backing vocals, dando bastante protagonismo a elas (até houve um momento em que uma delas cantou sozinha “Você me Vira a Cabeça (Me Tira do Sério)”, da Alcione), fazendo com que elas brilhassem junto com ele. O artista cantou músicas como “Dois Amores”, “Mulheres Grandes”, “Me Desculpa Jay Z”, “Samba in Paris” e “Te Amo Desgraça”. Apesar dos pontos positivos, Baco deixou a desejar na sua performance.

Caetano Veloso

O headliner de domingo foi Caetano Veloso, a grande aposta do Turá Porto Alegre. Sob expectativa de que ele tocasse alguma música do disco “Transa” (1972), que está sendo homenageado em shows pontuais do artista, Caetano cantou “You Don’t Know Me” logo no início, mas ela já estava presente no setlist de apresentações anteriores. Iniciando a apresentação com “Avarandado” (dele, mas gravada por Gal Costa),o set trouxe surpresas não tão surpreendentes como “Sozinho” – bem música de galera, mesmo, afinal a cover de Peninha é o maior sucesso de toda carreira de Caetano –, “Muito Romântico” e “Menino Deus”, que foi composta na cidade quando o baiano viu uma placa escrito “Menino Deus / Tristeza / Ipanema”, bairros da zona sul da capital gaúcha. No mais, o show foi repleto de hits bem populares, como “Sampa”, “Menino do Rio”, “Leãozinho” e “Odara”, entre outros, finalizando com “A Luz de Tieta”. Antes disso, o baiano cantou a nova clássica “Sem Samba Não Dá”, lançada no seu último disco, “Meu Coco” (2021). Na canção, Caetano homenageia vários novos nomes da música brasileira, entre eles Duda Beat, que estava ali presente e deu uma canja na hora. Além de Duda, Marina Sena também retornou ao palco, levando o público ao delírio e promovendo o grande momento do festival.

Marina Sena, Caetano Veloso e Duda Beat

Se Caetano Veloso já representa uma espécie síntese do melhor da nossa música, esses encontros proporcionados pelo Turá evidenciam que o objetivo do evento, que visa promover abertura, cultura, mistura e releitura, foi alcançado de maneira gloriosa. E mostra que Porto Alegre tem público e estrutura para receber o festival e quaisquer outros eventos culturais. Ainda mais no Anfiteatro Pôr do Sol, um espaço público que passou bons anos abandonado pela prefeitura, quase tendo sido demolido para virar uma marina e é o palco perfeito para eventos musicais na cidade. Com shows pontuais, público de 20 mil pessoas e estrutura geral funcionando bem, o Festival Turá Porto Alegre fez uma ótima primeira edição, já deixando saudades no público e, acima de tudo, altas expectativas para o próximo ano.

– Ananda Zambi é jornalista musical e assessora de imprensa. Também colabora para o site Hits Perdidos

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