Ao vivo em Porto Alegre, Roger Waters comprova que seu show continua sendo uma experiência intensa

texto por Homero Pivotto Jr.
fotos de Billy Valdez

“Hello? Is there anybody in there?”, cantou Roger Waters em tom sereno grave no começo de ‘Confortably Numb’, abertura da apresentação em Porto Alegre, quarta-feira (01/11). E sim, havia gente lá: cerca de 30 mil pessoas estiveram na Arena do Grêmio para prestigiar o ex-Pink Floyd em sua quarta passagem pela capital gaúcha, desta vez com a turnê “This Is Not a Drill”. Como das outras vezes, o que se viu foi um espetáculo envolvente de som, imagem e conteúdo.

O público já ia sendo ambientado — e fisgado — sobre o que estava por vir antes mesmo de os músicos entrarem em ação. Uma contagem regressiva de cinco em cinco minutos (desde que faltavam 15 para a tocata) e barulhos de trovões disparados em determinados momentos, via sistema de som multidimensional espalhado pelo estádio, colaboravam para se entrar no clima. Em certo ponto, uma mensagem no telão avisava que a viagem iria começar. Alertas sonoros que simulavam os que se escuta em aviões prestes a decolar soaram. E, então, a jornada sensorial teve início.

O script do show não muda praticamente nada em relação às demais praças no Brasil que receberam o músico inglês de 80 anos — seja com relação à ordem das músicas, dos momentos de interação com a plateia ou dos efeitos especiais. Contudo, presenciar in loco a força de acontecimento é uma experiência intensa capaz de referendar a obra de um artista que fez sucesso no passado, e que sabe dialogar com o tempo em que vive atualmente.

“Mãe, espera tuas filhas”, ordenou uma jovem, acompanhada da irmã, à progenitora que andava mais à frente com cara de estar curtindo o momento pouco antes de Waters e companhia fazerem seu trabalho.

A cena não resume uma possível presença mais massiva de antigos fãs com suas crias, na tentativa de perpetuar o legado do ídolo. A impressão é de que o público, em sua maioria, pertencia às gerações X e Y, como seria de se esperar. Porém, a presença de jovens acompanhando os coroas não era tão visível — ao menos não na pista vip. Ver a cena da menina pedindo para mãe aguardar sugere outra analogia geracional, que é justamente a capacidade de Waters conectar composições escritas durante os últimos 50 anos com o que acontece agora no mundo. Para estabelecer essa ligação, além de uma excelente banda de apoio, ele conta com recursos técnicos modernos do showbusiness para a época em que estamos inseridos.

Há, no conceito da performance, um elemento cênico que se destaca, seja pela preocupação com o cenário ou pela teatralidade dos movimentos. A formatação do cronograma, com dois atos separados por um intervalo de aproximadamente 20 minutos reforça essa percepção.

Outra diferencial é a proposta de transformar a misancene de som e luz em ferramenta para reflexão. Shows de arena são, em parte considerável, voltados ao entretenimento quase que puro e simples. Servem como alternativa escapista da sempre dura realidade por meio da pompa e grandiosidade que servem como justificativa para valores nem sempre acessíveis de ingressos. O que Waters faz, agregado à recreação de socializar e escutar música alta com qualidade, é instigar questionamentos sobre o mundo ao nosso redor. Algo que é uma constante na obra do britânico.

A última visita de Waters em solo gaúcho havia sido em 2018, no estádio Beira-Rio, quando da turnê “Us + Them”, e foi marcada por forte posicionamento político e polêmicas — sintoma da situação pela qual passava o Brasil. Anteriormente, o músico desembarcou no Rio Grande do Sul em 2012, com a turnê “The Wall”, também no estádio do Internacional, e em 2002, com a “In the Flash” tour, no estádio Olímpico (antiga casa do Grêmio).

Em 2023, chama atenção de cara, mesmo antes da apresentação propriamente dita, os quatro telões gigantes em frente ao palco. A primeira vista pode parecer que os equipamentos, feito de material vazado (que permite enxergar para além da tela), ficarão na frente da banda. Ao começar o espetáculo, porém, os dispositivos sobem um pouco, e os músicos ficam livres para que os presentes os vejam.

Entre as mensagens iniciais está a que adverte desavisados: “Se você é um daqueles que diz: Eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”.

As primeiras projeções são cenários distópicos que dariam orgulho a George Orwell. O escritor inglês dos livros “1984” e “A revolução dos bichos”, inclusive, é citado como referência para Waters em textos que aparecem nos telões durante o evento.

Em meio às animações de terra devastada no início do espetáculo, algo meio “The Walking Dead”, surge Waters (que se revezou entre guitarra, violão, piano e baixo) de jaleco branco empurrando uma cadeira de rodas. Entra, então, ‘‘Confortably Numb’ em versão solo e mais sombria, que seu autor disponibilizou em 2022 (a original está no álbum “The Wall” (1979)). O setlist segue com mais temas do clássico disco lançado na final da década de 1970: ‘The Happiest Days of Our Lives’ e ‘Another Brick in the Wall’ (Pt. 2 e Pt. 3).

A essa altura, já é evidente o papel fundamental e cativante das backing vocals Shanay Johnson e Amanda Belair. São elas que sustentam e dão brilho à voz ainda marcante, mas desgastada pela idade, de Waters.

“Essas duas próximas músicas da carreira solo dele tem funcionado muito bem ao vivo”, atenta o amigo Márcio Grings, jornalista musical mais versado no universo Floydiano e de seus integrantes do que o escriba.

Deveras ‘The Powers That Be Play’ e ‘The Bravery of Being Out of Range’ ganham força no show. ‘The Bar’, também da fase solo, vem na sequência e não decepciona, com Waters ao piano. Neste momento, ele fala sobre a composição e da importância de troca de ideias, do diálogo. Depois, três temas de “Wish You Were Here’ (1975): ‘Have a Cigar’, a faixa-título e ‘Shine on You Crazy Diamond’ (partes. 6-9). A canção ‘Sheep’, do álbum “Animals” (1977) encerra o primeiro ato com uma ovelha inflável gigante sendo conduzida por cima da plateia.

Durante o intervalo para a segunda parte do show é a vez de um balão em forma de porco segurar a atenção da massa. Distraídos com a atração voadora que passeia pelo estádio carregando os dizeres ”He’s Mad Don’t Listen. You’re up against the wall right now” (ele é doido, não dê ouvidos. Você está contra a parede agora), alguns se assustam quando a banda irrompe, um tanto abruptamente, com ‘In the Flash’. Outra do disco ‘The Wall’ foi executada em seguida: ‘Run Like Hell’.

Depois do combo ‘Déjà Vu’ e ‘Is This the Life We Really Want?’, parte da discografia solo de Waters, algumas faixas do “The Dark Side of the Moon” (1973) – que ganhou uma “polêmica” revisão por Waters em 2023. A ver: ‘Money’ (um dos poucos momentos em que Waters toca baixo, instrumento que era sua responsabilidade no Pink Floyd) e ‘Us and Them’.

Depois de ‘Any Colour You Like’, ‘Brain Damage’ e ‘Eclipse’ veio ‘Two Suns in the Sunset’. Waters novamente solta o verbo, falando que se trata da última faixa de “The Final Cut” (1983), advertindo ainda sobre o perigo iminente de uma terceira guerra mundial.

Em clima de roda de som, o anfitrião reúne seus comparsas no meio do palco enquanto ele, ao centro no piano, faz uma releitura diferente para ‘The Bar’. Em pé e em fila, o grupo vai se retirando de cena ainda com instrumentos em punho. No telão, imagens da banda chegando ao backstage, ainda tocando, até que Waters ergue as mãos e a transmissão é encerrada. Corte final para o fim do espetáculo.

Abertura com Renato Borghetti
O gaiteiro Renato Borghetti, conhecido e folclórico nome do cancioneiro gaúcho, fez as honras da casa. Por volta das 19h50, despontou no palco acompanhado de dois músicos, um tocando violão (12 cordas, ao que aparece) e outro bombo legüero. Ocupando um espaço pequeno da estrutura, bem no meio dos quatro telões, Borghettinho (como é chamado) apresentou toda a riqueza musical pela qual é conhecido com a gaita ponto em mãos. Entre as músicas que estiveram no curto repertório (menor que 20min), destaque para a bela ‘Merceditas’.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
Billy Valdez é pai da Kaáka, fotógrafo, videomaker, integrante do Coletivo Catarse e baixista da Diokane

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