Os 50 Anos de “Artaud”, a obra-prima existencialista de Luis Alberto Spinetta

texto de Davi Caro

O escritor francês Antonin Artaud (1896-1948) já havia sido parte do movimento surrealista de meados dos anos de 1920 quando da concepção do conceito que o tornaria mais famoso: publicado em 1932, o “Manifesto do Teatro da Crueldade” clamava pela interpretação da arte cênica como uma experiência cerimonial, onde o maior objetivo seria a revelação do ser humano a si mesmo, como forma de libertação do subconsciente. De acordo com o pensador, todos os elementos em cena, de cenários e iluminação a movimentos e sons humanos deveriam ser combinados de maneira a “criar uma linguagem, superior a palavras, que pode ser utilizada para subverter o pensamento e a lógica, e chocar o espectador ao ponto de fazê-lo entender a base do mundo em que habita”. Por consequência, a concepção de Artaud essencialmente se amparava na perturbação do ser, e na instrumentalização de impasses inerentes à natureza humana.

Em 1973, Luis Alberto Spinetta se viu em um desses impasses. À época, o músico já colecionava trabalhos aclamados junto de suas duas bandas – Almendra, com a qual permaneceu entre 1969 e 1971, e Pescado Rabioso, junto da qual tocou entre 1971 e 1973. Se aproximando dos 23 anos de idade, o músico (cujo biotipo magro o concederia o apelido de “El Flaco”) agora encarava um dilema que transcendia o limite do artístico-musical. Sua Argentina natal, num período ainda um pouco anterior à repressiva ditadura que tomaria conta do país menos de três anos depois, via o surgimento de uma nova geração de artistas de rock que representavam as inescapáveis mudanças na contracultura, que agora se mostrava menos idealista e mais rebelde; uma das mais instigantes novidades era a dupla Sui Generis, que incluía seu futuro amigo / parceiro / nêmesis Charly García.

Às vésperas do nascimento de seu primeiro filho, Dante, e ainda recém-enamorado de sua longeva parceira, Patrícia Salazar, o jovem compositor se viu alienado de seus companheiros de grupo, que começavam a gravitar em direção a outros projetos à medida que achavam as ideias trazidas por seu líder difíceis de compreender. O que não faltava era material novo – mais do que simplesmente não fazer feio em comparação com as várias obras aclamadas que Spinetta já havia lançado, as novas canções apontavam um caminho muito menos agitado e eletrificado, apontando uma tendência em direção à sofisticação acústica e ao verniz lírico. Às voltas com a chegada de seu rebento, com a calmaria da vida doméstica, da abstenção de drogas e da sombra imperialista que oprimiria sua pátria por uma década, Luis Alberto procuraria, com a ajuda de dois de seus ex-companheiros de Almendra, Emilio Del Guercio (baixo) e Rodolfo Garcia (bateria) e de seu irmão e também baterista, Carlos Gustavo Spinetta, comprimir as muitas mudanças que aconteciam dentro de si e no mundo ao seu redor. E na descoberta, através do também artista Jorge Pistocchi, dos textos de Artaud, Spinetta encontraria o fio condutor que apontaria o caminho para uma das grandes obras musicais da história da música mundial. A cinco décadas de seu lançamento, “Artaud”, o disco, se sustenta tão monolítico, genuíno, apaixonante, existencialista e inesquecível quanto em sua origem.

Além de mostrar afinidade com inúmeros outros escritores e poetas franceses (dentre os quais estavam Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud), Luis conciliou sua percepção daquele que batizaria seu novo álbum com a mitificação de figuras como Jimi Hendrix, assemelhando a vida de Antonin com a de um rockstar; mais tarde, o músico atribuiria ao escritor o espírito “iconoclasta” do material que chegaria ao grande público. Para além do conteúdo lírico, as gravações, que aconteceram no estúdio Phonalex, carregaram consigo influência direta de discos como “Harvest”, de Neil Young (1972) e “John Lennon/Plastic Ono Band” (1969). A fusão da abordagem acústica do primeiro com o confessionalismo hermético do segundo, assim, resultam numa mistura ainda não alcançada na música argentina da época – mistura esta já demonstrada à perfeição com a faixa de abertura de “Artaud”, a antológica “Todas Las Hojas Son del Viento”: um folk intimista no sentido material do termo, com a mixagem trabalhando com a voz de Spinetta de modo a chamar a atenção para sua enunciação, que, acompanhada ao violão, traz gravidade a suas reflexões ao mesmo tempo sobre o nascimento e sobre a mortalidade, e da naturalidade que une os dois processos – esta canção foi regravada por Nevilton no álbum “Somos Todos Latinos“, lançado pelo Selo Scream & Yell em 2015.

O uso de instrumentação mais “cheia” faz sua primeira aparição na faixa seguinte, “Cementerio Club” – uma das gravadas com os ex-membros do Almendra – onde os dotes guitarrísticos do cantor tomam para si os holofotes, com direito a um de seus mais icônicos fraseados de guitarra (que, mais tarde, seriam incorporados na assombrosa versão de “Té Para Tres”, do Soda Stereo, gravada em “Comfort e Musica Para Volar”, de 1996). O foco volta a ser o violão na delicada “Por”, quase como um preâmbulo para os ritmos quebrados de “Superchería”, uma das faixas do trabalho que, provida de maravilhosas harmonias vocais e breaks cavalgantes, fez casa no repertório de Luis por anos a frente. Ao invés de manter o contraste entre o acústico e o elétrico, “La Sed Verdadera” promove uma mescla entre as duas abordagens, com ritmos palhetados complementados por efeitos eletrificados que aprofundam a ambientação da canção.

O lado B do velho vinil é inaugurado por outra das grandes canções do disco. “Cantata de Puentes Amarillos” é mais uma de Spinetta sozinho ao violão, com destaque para uma das letras mais diretamente inspiradas pelo autor-título, em reflexões sobre o naufrágio de “uma balsa que nunca zarpou”. E ainda que a abordagem puramente acústica predomine na segunda parte do álbum, o momento de ouro, e talvez mais conhecido, do repertório está em “Bajan”: convertida em clássico e com lugar cativo em um dos mais vastos repertórios da música popular latino-americana, o baixo à frente na mixagem cria o momento de melhor dinâmica instrumental em “Artaud”. Não são precisas muitas audições para compreender a estatura que conquistou no songbook de Luis Alberto.

“A Starcosta, el Idiota” destaca, pela primeira vez, o piano, que embala alguns dos versos mais belos já compostos por seu compositor, e, em seu núcleo, guarda o momento mais experimental até aqui; com um pré-histórico sample de “She Loves You”, dos Beatles, fazendo uma rápida aparição em meio a dissonantes acordes de teclas acrescidos de guitarras gravadas ao contrário, seguido de melodias vocais que poderiam estar no “Álbum Branco” dos rapazes de Liverpool, trata-se da mais clara demonstração da devoção de Spinetta à música de Lennon-McCartney. É o equivalente a um bálsamo frente à potência de “Las Habladurias del Mundo”, com um distinto interplay de quatro e seis cordas inédito até então, como se indicando os caminhos que Spinetta seguiria nos anos seguintes.

“Artaud” foi alvo de muita curiosidade e intriga mesmo antes que os primeiros acordes de seu conteúdo fossem ouvidos pelos já devotos fãs de seu autor. Paralela à confusão do crédito atribuído a uma banda que já não existia (uma vez lançado sob o nome de Pescado Rabioso apenas por razões contratuais, como documentado no encarte), a obra chegou às mãos do público em geral como uma peça de quebra-cabeças perdida. Literalmente: fazendo uso de um design destoante, cheio de pontas e ângulos tortos – de autoria do designer Juan Gatti, que já havia trabalhado com Sui Generis, Pappo’s Blues e Crucis – com um fundo verde marcado por uma mancha amarela e uma singela foto do escritor homenageado pelo álbum, o “disco-objeto”, cujo design inusitado foi preservado em suas reedições ao longo dos anos, até hoje surpreende aqueles que procuram o ter em suas coleções, mesmo que seja por causa de seu formato. O esquema de cores da capa, conforme também explicado nas notas que acompanham o trabalho, faz referência a uma carta enviada por Antonin Artaud ao também escritor Jean Paulhan, de 1937:

“E por acaso não são o verde e o amarelo cada uma das cores opostas da morte. O verde para a ressurreição e o amarelo para a decomposição, a decadência?”

Não precisou muito tempo para que qualquer estranhamento fosse quebrado por uma oblíqua, ainda que fervorosa, aclamação. “Artaud” seria apresentado oficialmente em dois shows no dia 28 de Outubro de 1973 que, apesar de registrados, permaneceriam inéditos por décadas até, em 2019, serem recuperados pela família de Spinetta e lançado oficialmente (ouça no final do texto). Integral à apresentação, além das canções, são as várias digressões de Luis a respeito das novas canções integradas às performances, que também contou com jóias pinçadas do catálogo prévio do cantor. O show de lançamento também veio acompanhado de um texto apócrifo às ideias defendidas no disco e no palco: intitulado “Rock: Musica Dura, La Suicidada por la Suciedad”, o manifesto confrontava de forma incisiva a paternalidade como forma de preservação da natureza formulaica e mitômana do rock – algo que, em tempos onde o espírito do rock pode ser encontrado com mais facilidade em gêneros que pouco ou nada tem a ver com a gênese do estilo, escancara a inflexibilidade daqueles que o querem colocar numa caixinha de ditames e dogmas com mais de seis décadas de idade. Luis conclui:

“O rock morre apenas para aqueles que tentaram sempre substituir este instinto [de liberdade criativa e busca da elucidação da identidade cultural] por expressões do superficial, portanto o que vem deles segue mantendo a repressão, somente estimulando ‘a mudança’ exterior e contra-revolucionária. Não existe mudança possível entre aqueles que reprimem a opção de liberação interior. O rock não morreu.”

Quase que imediatamente após o lançamento de “Artaud”, Luis Alberto já estaria dando os primeiros passos em direção ao que seria um de seus projetos mais célebres, Invisible. Com a nova banda, Spinetta dobraria a aposta na sonoridade elétrica, voltando ao rock mas sempre deixando espaço para o experimentalismo. Outro dos grupos que formaria e com o qual lançaria discos, o Spinetta Jade, abriria ainda mais caminhos em direção à complexidade jazzística e valorizando a liberdade criativa. Entre os discos mais ou menos bem interpretados e sempre dignos de atenção que lançaria depois, o padrão de qualidade a ser alcançado, ao menos aos olhos do público, seria para sempre aquele esquisito artefato de cor estranha, que continha algumas das grandes passagens do cancioneiro argentino em todos os tempos.

A reverência àquele que foi tido como o maior disco de rock argentino de todos os tempos segundo votação da Rolling Stone Argentina, de 2007, só fez aumentar ao longo dos anos (em setembro de 2023, uma nova lista elaborada pela matriz estadunidense da publicação enfatizando os 50 melhores álbuns latino-americanos de rock posicionou “Artaud” no 13º lugar). Para além da citação a “Cementerio Club” o vocalista e guitarrista do Soda Stereo, Gustavo Cerati, também incluiria “Bajan” em seu primeiro disco solo, “Amor Amarillo” (1993), em uma versão que nem de longe eclipsa a original, mas deve ter dado orgulho em seu criador. E não faltou oportunidade de ver esta conjunção ao vivo: Cerati foi um dos muitos convidados do evento “Spinetta & Las Bandas Eternas”, um show no estádio do Vélez Sarsfield no qual, ao longo de quatro horas de música, Spinetta conduziu seus músicos de apoio num passeio em meio ao melhor do que a música argentina pode se orgulhar de ter. Dividindo espaço com outros convidados (como os colaboradores e discípulos Fito Páez, Charly García e Ricardo Mollo, bem como membros de Almendra, Pescado, Invisible, Jade e Los Socios Del Desierto), Gustavo foi responsável por escolher as canções que interpretaria ao lado do mestre. Uma foi a já citada “Bajan” – a outra, pasme, foi “Té Para Tres”, numa performance de marcar época.

O espetáculo (que ainda teve “Cantata de Puentes Amarillas”, foi registrado e depois lançado em 2010 e está disponível no final do texto) seria uma das últimas apresentações de Luis Alberto Spinetta. Lutando contra um câncer de pulmão, o cantor faleceria em 2012, com uma onda de luto e gratidão tomando conta do cenário do país que chamava de seu assim como em muitos outros lugares onde sua lenda já era mais do que consolidada. Ao fim, Spinetta terminou sua vida mais próximo do autor francês que o inspirou em sua obra mais incensada do que dos rockstars ao qual o havia assemelhado antes: em sua longa carreira, confundiu a muitos e explicou àqueles dispostos a ouvir. Tal qual o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, seu álbum de 1973 segue uma ode à catarse pessoal, a busca da verdade interior e às multitudes do potencial humano. Da mesma maneira que os escritos do falecido pensador europeu, “Artaud”, o disco, segue sendo descoberto e redescoberto por muitos fãs e artistas ao longo das últimas cinco décadas. Parafraseando o jornalista americano Tom Breihan, talvez em algum momento dos próximos 50 anos, a iconoclastia de “Artaud” venha de encontro com algum jovem escritor ou músico ansioso para explodir e expandir os limites da própria arte, e o inspire a criar sua própria obra-prima. Talvez, esta futura obra possa até se chamar “Spinetta”.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo

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