Entrevista: O curador Marcelo Miranda fala sobre a homenagem à Zé Celso e a escolha dos filmes brasileiros da Mostra CineBH

entrevista de João Paulo Barreto

Um dos curadores da Mostra de Cinema de Belo Horizonte – CineBH, que este ano chega à sua 17ª edição, o jornalista, pesquisador e crítico de cinema, Marcelo Miranda, conversou com o Scream & Yell acerca do processo de escolha do dramaturgo Zé Celso para ser um dos homenageados pelo evento desse ano dentro da Mostra Diálogos Históricos.

Com um recorte de três filmes, a visita à presença de José Celso Martinez Corrêa (nome constante do teatro brasileiro) no cinema acontece em um momento no qual a celebração pela sua vida e por sua trajetória se faz presente de modo agridoce, por conta de sua partida tão trágica em julho desse ano, mas com uma certeza de que a perenidade e o aspecto eterno de seu trabalho são características indubitáveis.

Também responsável pela seleção dos filmes nacionais para a CineBH, Marcelo trouxe ao papo um panorama dos longas brasileiros selecionados para a Mostra Continente. Leia a conversa abaixo!

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Zé Celso e Gianecchini em cena de “Fédro”

A CineBH desse ano traz o Zé Celso, que morreu de forma trágica recentemente, como homenageado na Mostra Diálogos Históricos. Foi uma escolha difícil trazer esse foco para ele nesse momento?
Para te falar bem a verdade, João, foi bastante natural. A gente não discutiu muito. Esse ano estou incumbido na CineBH da seleção de filmes brasileiros. Então, todo filme brasileiro que está na Mostra, de alguma forma, passou por um trabalho conjunto comigo, Cléber Eduardo e Tatiana Costa. A Mostra Diálogos Históricos não precisa ser de brasileiros. Às vezes é, às vezes não é. Mas, esse ano, foi muito natural. A gente conversando muito informalmente sobre a Diálogo Históricos e um pouco do nada veio: “E se a gente exibisse filmes em tributo ao Zé Celso?” Todo mundo concordou que era uma ótima ideia. A gente estava ainda reverberando a morte dele. Porque, provavelmente, essa decisão foi tomada antes mesmo de um mês após sua morte. Ainda estava muito na mídia. A gente estava lamentando e percebendo o impacto, e as coisas que ele deixou, e as coisas que ele fez. Era um assunto muito presente em qualquer conversa com alguém que goste de arte, de cultura, de Brasil. A Mostra Diálogos Históricos é um recorte da CineBH que pensa os filmes em conjunto. Normalmente três ou quatro filmes que não têm em comum necessariamente seus diretores, ou seus temas ou suas épocas. Mas eles precisam se conectar como uma conversa entre si e que reverbere algum aspecto da historicidade do cinema em alguma instância. Ela já chegou a ser feita de duas formas. Uma foi convidando alguém para uma carta branca. Então, o convidado escolhe os filmes, faz as conexões e dá as masterclasses, faz os bate-papos. Ano passado, tivemos a presença do crítico e pesquisador boliviano Sebastian Morales, que apresentou um micropanorama da história do cinema na Bolívia. E a cada sessão, ele fazia um comentário. Foi muito legal. Em outros anos, a gente teve outras presenças estrangeiras, como por exemplo Ted Gallagher, crítico americano que, também, sugeriu alguns filmes. E esse ano a seleção foi interna mesmo, justamente trazendo esse convidado externo que é o Zé Celso enquanto presença. Foi um pouco movido por uma sensibilidade do momento e pela vontade de compartilhar com mais pessoas a presença dele no cinema. Conseguimos olhar para essa figura pela lente do cinema e entender como ele foi importante, também, para o cinema.

O recorte que a Mostra Diálogos Históricos faz aqui da carreira do Zé Celso no cinema abrange três filmes: “Prata Palomares” (1970); “O Rei da Vela” (1982) e “Fédro” (2021). Três momentos bem específicos de sua carreira. Como foi o processo de escolha desses momentos para representá-lo na Mostra?
O Zé Celso teve participações muito pontuais no cinema. Inclusive, ele trabalhou no “Encarnação do Demônio” (2008), filme do José Mojica Marins, onde interpreta uma figura importantíssima no inferno. A primeira participação significativa dele no cinema foi no “Árido Movie” (2006), do Lírio Ferreira. Ele tem participações pontuais no cinema como ator, roteirista, performer. No papel dele mesmo. Do próprio Zé Celso, que é uma entidade por si. Nós tínhamos tinha uma grade de três filmes e pensamos: “Vamos tentar construir uma proposta de trajetória do Zé Celso em apenas três filmes?” Porque, também, não era possível fazer uma retrospectiva. Não é isso. Mas em três filmes que a gente possa mostrar três facetas diferentes dele no cinema. Claro, o Zé Celso nunca foi um artista isolado. Então, ele, no cinema, também é ele mesmo no teatro; também é ele mesmo na intervenção cultural e na agitação cultural. Então, vamos mostrar três momentos dele que representam participações diferentes e que tenham sua marca de alguma forma. No caso do “Prata Palomares” (1970), era uma escolha natural. Era a primeira participação registrada dele em cinema. No caso, ele faz o roteiro. É um filme muito imbuído de questões da ditadura e da opressão do regime militar. E ele se exilou poucos meses depois do filme ser lançado. Então, ele já estava percebendo que o cerco estava se fechando. E muito focado na liberdade que o Teatro Oficina tinha. O filme não é o Zé Celso lá. Tem várias outras figuras do Teatro Oficina que participam no elenco e na preparação corporal, também. Porque é um filme visualmente muito impactante e muito performático. E ele é um filme que dialoga muito com a estética do cinema de invenção, do cinema marginal dos anos 1970. Muito fragmentado, muito focado em uma discussão política. Às vezes com alguma irreverência, às vezes com alguma violência. Mas é um filme muito daquele período de opressão e de regime militar pesado. E o Zé Celso faz o texto, faz o roteiro e, também, participou da realização do filme. É um filme de 1970. Ou seja, muito desse período ali do ano do “Bang Bang” (1971), próximo ao “Os Monstros de Babaloo” (1970), a esses filmes que moveram o cinema brasileiro de invenção. Bressane, Sganzerla, Tonacci, Agripino e assim vai. Então, você tem esse primeiro Zé Celso no cinema, escrevendo aquele roteiro. O outro, “O Rei da Vela” (1982), foi feito doze anos depois. Ele tem cenas filmadas da encenação (da peça) “O Rei da Vela” no teatro, mas o filme não é a peça filmada. Ele é uma espécie de viagem antropofágica e tropicalista (risos) pelo imaginário do rei da vela a partir de encenações da peça na segunda vez em que ela ficou em cartaz, em 1971. Nesse ano, ele filmou algumas apresentações no Teatro João Caetano, no Rio. Filmou por filmar, para registrar a peça, pois ela tinha sido censurada nos anos 1960 pela ditadura. Quando ela volta a cartaz em 1971, ele resolveu filmar provavelmente por estar preocupado dela voltar a ser censurada e ele não ter registros. Depois ele se exilou fora do Brasil e essas filmagens sumiram. Quando ele voltou, junto com Noilton Nunes, parceiro dele nesse filme, eles resolveram fazer um longa metragem usando essas imagens, mas, também, indo além.

Pode-se dizer que “O Rei da Vela” é, então, uma mescla entre o teatro filmado e um doc sobre o processo de criação do espetáculo e suas repercussões e lutas.
Então, o filme é uma construção e uma reconstrução de todo um imaginário tropicalista do (espetáculo) “O Rei da Vela”, do Oficina, do Zé Celso, da arte brasileira a partir dessa peça dos anos 1970. Então, ele tem, sim, imagens da peça, mas não só. Ele tem imagens captadas para o filme, tem imagens de arquivo, tem imagens de bastidores do Oficina, e tem toda uma montagem absolutamente delirante e anárquica como só a cabeça do Zé Celso poderia fazer. Tanto é que foi o único filme que ele dirigiu, de fato. Ele competiu no Festival de Brasília, foi exibido na Europa, então, ele tem uma trajetória como longa metragem muito interessante, muito bonita. E ele foi redescoberto há alguns anos após ter ficado muitos anos sem as pessoas terem acesso. Então, é uma oportunidade de conhecê-lo agora. É de 1982, portanto, já nessa fase posterior aos anos 1970, quando houve essa efervescência. E por fim, o “Fédro” (2021), que é um filme contemporâneo. A Mostra Diálogos Históricos não exatamente é de filmes contemporâneos, mas, por que não, se ele dialoga com o resto? E é um filme que tem o Zé Celso figura física. A presença dele enquanto corpo, palavra, imagem, performance. Uma relação muito direta com o Reynaldo Gianecchini, que representa ali, dentro da nossa proposta, o interlocutor do Zé Celso. E que somos nós, também. No caso, ele é um interlocutor privilegiado porque ele foi do Oficina. É um ator que se formou no Teatro Oficina, ou seja, ele passou por essa vida de estar com o Zé Celso e está de volta nesse encontro corpo a corpo com ele. Então, é uma maneira de o espectador da Diálogos Históricos ter um contato muito próximo com a intimidade do Zé Celso poucos anos antes dele morrer. Ele está por inteiro ali. Ele fala de tudo, ele provoca, ele questiona, ele reage. É o Zé Celso mais próximo que a gente tem daquele que se foi. A ideia era que esses três filmes encontrassem esses pontos de contato da obra dele em momentos diferentes.

Curioso que eu me lembro de ter assistido ao “Fédro” e ficar pensando em “Educação Sentimental” (2013) por conta daqueles momentos de encontros teatrais, de intimidade.
Eu acho que faz sentido essa relação por serem filmes de câmara. Muito fechados em ambientes e com personagens apaixonados ali pela arte, pelo corpo, pela presença de si e pela existência. Eu acho que o filme do Bressane que você cita, apesar dele ser um filme mais construído em termos de dramaturgia, ele tem aquela personagem que dança, que anda, que vive, que se relaciona. Já o “Fédro” tem essas duas figuras muito intimas. Nesse caso, é um filme bem mais despojado do que o “Educação Sentimental”. Por mais que se tente controlar o Zé Celso, é o Zé Celso que controla tudo. Tem momentos em que ele questiona o microfone, que ele fica enchendo o saco para o Giannechini tirar a roupa. Então, tem uma coisa de ele saber que estar sendo filmado, mas, ao mesmo tempo, ele não se deixa domar. E ele vai fazendo que aquela afetividade e aquela força dele interior e exterior apareça com muita carga dramática, também. Tem momentos em que ele se exalta, que ele começa a falar de política, começa a falar de moral. É muito legal vê-lo se deixando tomar por aquilo. E é um filme muito íntimo porque é a presença mínima. Você tem os dois e, talvez, uma equipe minúscula ali registrando e acompanhando essas horas do reencontro de duas pessoas que se amam sob vários pontos de vista e que não se viam há vinte anos. Ou pelo menos que nunca se encontraram daquela forma há vinte anos.

Ele traz a importância da voz do Zé Celso nesse aspecto político que você falou agora. Ele passou por essa luta contra o Silvio Santos por aquele local. Justamente um símbolo de arte vs. dinheiro. Ele sucumbe em um acidente terrível e as falas dele no “Fédro” remetem muito ao Brasil dos últimos sete anos, e, obviamente a um Brasil como um todo, que não deixou de existir, mas arrefeceu um pouco politicamente. O simbolismo da escolha do Zé Celso para além da morte dele nesse momento pesa de que forma para você e para a curadoria como um todo? Um artista símbolo dessa resistência.
Eu até ia fazer uma correção, mas você mesmo se corrigiu depois. De que o “Fédro” mostra o Zé Celso falando do Brasil de hoje. Felizmente, não. Ele fala do Brasil de ontem. Porque o filme foi feito ainda durante o governo Bolsonaro. Então, ele está reagindo ali às barbaridades que a gente via cotidianamente. E assistir ao filme, hoje, é uma espécie de alívio. Porque, com todas as dificuldades que o Brasil segue sofrendo, e os impactos dos últimos anos, como você bem falou, a gente vive um outro estado de espírito, uma outra atmosfera. Uma atmosfera de olhar para a frente. E não mais de fundo do poço. Mas aí, quando a gente assiste ao “Fédro”, hoje, e ouve o Zé Celso falar aquelas coisa, dá um mal estar porque percebemos que ele estava vivendo a dor daqueles momentos. E apesar da catástrofe que foi a perda dele e da forma como aconteceu, também não deixa de ser um alívio que ele tenha partido em um momento no qual a atmosfera já tinha mudado. Eu acho que ele teria partido muito pior. Já que era para acontecer, enfim, já que o momento dele era aquele, ele teria ido de uma maneira muito pior se tivesse partido ainda durante o que estava acontecendo quando ele fez aquele filme. Então, ele partiu em um momento em que, pelo menos, eu acho, ele estava mais aliviado com os rumos que o Brasil pode vir a tomar no futuro depois de um recuo ao passado tão brutal como foram os últimos sete anos. Então, contextualizando um pouco, é isso. O “Fédro” é um filme do seu momento histórico. Ele registra o Zé Celso Martinez na sua plenitude intelectual. É um filme de um momento histórico muito específico. É um filme que não trabalha imagens de arquivo. É um filme do presente. Ele é do presente na estética, na feitura e no contexto. Ele não é um documentário que busca coisas e elementos. Ele está mostrando o Zé Celso agora, falando, reagindo e vivendo aquele momento. O filme é de 2021, então deve ter sido filmado em 2020/2021, mais ou menos, ou algo assim. E aí eu acho que, nesse sentido, o filme é um bom fechamento para uma micro trajetória do Zé Celso no cinema justamente por mostrar o mais próximo que a gente tem da presença dele no cinema nesse contexto. Há o filme sobre o Teatro Oficina, que saiu agora, inclusive, depois da morte dele. Não assisti ainda. Não sei se tem ele participando ativamente do filme. Então, não posso falar. Mas acredito que não tenha havido um filme que registrasse a intimidade dele, depois do “Fédro”, daquela forma. Então, nesse sentido, é claro que é bonito e é muito emocionante que ele, mesmo no auge, ali, já um senhor, já depois de décadas de atuação e de agitação cultural e de intervenção, ele continua essa figura combativa, resistente, critica e totalmente despudorada e desrecalcada. Ele é um utópico. Ele tenta ver as coisas de uma maneira que elas não são, mas que ele acha que elas seriam melhores se fosse. Mas, ao mesmo tempo, ele não vive na utopia. É um sujeito que viveu (e vive ali, como a gente vê no filme) na prática das coisas. Ele aplica a própria utopia. Ele não fica só querendo e desejando. Ele põe em prática aquilo que ele sonha e vislumbra. Isso está presente em tudo. E a gente vê isso nos três filmes dessa mostra e a gente vê isso na presença dele na Cultura, nas lutas e em tudo mais. Então, acho que representa muito isso. Representa um pequeno fragmento do significado que é ter o Zé Celso como parte da história cultural brasileira. E mesmo ele tento partido, ele continua. A gente sabe que os artistas, pessoas, se vão, mas as obras vão ficar. E o que elas têm de mais significativo reverbera eternamente. Por isso, o fato dele não estar conosco fisicamente não diminui absolutamente em nada o impacto cultural da obra que está aí e que estamos prestando tributo na CineBH.

Você é responsável pela curadoria dos filmes nacionais como um todo. A Mostra Continente possui um leque bem amplo de filmes brasileiros. Como foi esse processo?
Esse ano, a CineBH não tem mais a chamada Mostra Brasil. Tinha até o ano passado e era um recorte exclusivo de filmes brasileiros. Esse ano, os brasileiros foram totalmente incorporados na programação até porque a CineBH, agora, tem esse viés de cinema latino-americano. Então, o curador Cléber Eduardo, junto com a Universo Produção, definiram que o Brasil seria incorporado como produção latino-americana. (Agora) Tem a Mostra Continente e a Território, basicamente. Além delas, algumas subvariações, como a Cinema de Fôlego, a Diálogos Históricos, que tem outros perfis. E a mostra de Curtas, que são só brasileiros. No caso, há mais brasileiros na Continente. Ela tem seis filmes. E eles apareceram, também, de forma natural. Foram sendo colocados nesse recorte. O Cléber, como coordenador, participou das duas comissões. Ele acompanhou a comissão de latinos que não são brasileiros e eu a de brasileiros. Então, ele foi casando de que maneira os filmes de uma poderiam se conectar aos filmes da outra. E lembrando que o estilo de curadoria que a CineBH busca não é uma curadoria temática, nem uma curadoria de pontos convergentes. Às vezes, são até pontos divergentes entre os filmes, mas que partam ou cheguem em algum ponto que cause essas discussões que são a proposta. Esse ano, surgiu a ideia dos Territórios da Latinidade. Então, por esse viés, todos os brasileiros estão muito dentro do que a gente poderia apontar, sim, como filmes que tratam dos seus territórios e dos seus ambientes contextuais físicos e afetivos, às vezes continentais e sociais.

Quais filmes você destaca nesse conjunto de obras?
Temos filmes como “Propriedade”, que já no título tem algo de território, e se passa em uma fazenda de uma família rica de empresários no Recife. Uma fazenda decadente e os empregados da fazenda se rebelam contra o chefe, contra o empregador, e tomam a fazenda ao criar uma revolta interna para que ela não seja destituída da sua função. Então, é um filme de uma pegada mais violenta, de uma pegada tensional, que trata justamente dessa ocupação de um ambiente que resume o Brasil. Você tem os trabalhadores que dependem daquele lugar para sua sobrevivência vs. o convencionado dono daquele lugar, o dono da terra, que não vê mais como aquilo ser mantido e quer afastar aqueles trabalhadores. Você tem, assim, esse choque cultural, econômico e social. E aí, por exemplo, um filme como “O Estranho”, que é um filme sobre, muito grosseiramente, o aeroporto de Guarulhos, Cumbica. Ele tem como ponto de partiida, de novo, os trabalhadores. Pessoas que trabalham no aeroporto e, de que maneira, aquele lugar, aquele aeroporto, está em uma terra, em um território, em um ambiente que já foi outras coisas. Nem paramos pra pensar nisso. Circulam milhões de pessoas ali por dia, indo e voltando do mundo todo. Mas ali já foi um território indígena, já foi um território quilombola. Toda a cidade de Guarulhos está dentro de um contexto histórico muito específico. “O Estranho” mistura ficção, documentário, reflexão, poesia para adentrar o imaginário de um lugar que a gente às vezes não para pra olhar. Trata-se de uma presença territorial muito grande. E assim os filmes vão indo. “Rejeito” é um documentário mais tradicional no sentido de ser um documentário muito evidente. Ele não tem uma proposta performática. Mas é um documentário de denúncia sobre as mineradoras e as barragens em Minas que mataram e desapareceram com tantas pessoas e destruíram tanto o meio ambiente, também. É um filme que investiga um lado pouco visível dessas histórias. O que não sai na mídia. Os processos jurídicos, os treinamentos que as mineradoras fazem com os moradores em caso de emergência. É uma coisa muito cruel. Eles têm que ensaiar a fuga caso haja um rompimento. As mineradoras estão mais preocupadas em não deixar que os moradores morram em caso de rompimento, do que de não ter o rompimento. Então, você tem ali uma documentação in loco de como elas agem para, em certa medida, não evitar as tragédias, mas evitar os danos para elas. É um filme, também, muito duro nesse sentido. “Amanhã”, que também é um documentário com cara de documentário mais direto e objetivo, é um filme sobre Brasil. O Marcos Pimentel retoma duas figuras que ele documentou em 2002, em BH. Um garoto de classe média alta e uma garota de uma comunidade em que ele colocou os dois para conviver nesse curta metragem de 2002. Levou um na casa do outro, naquele choque social, mas na visão das crianças, que não têm essa visão percebida como os adultos. E aí ele volta a essas figuras vinte anos depois para ver o que aconteceu com elas. E vinte anos significa de 2002 para 2022 com governos muito diferentes. Foram 13 anos de PT, dois anos de Michel Temer, quatro anos de Bolsonaro. Assim, esses vinte anos dessas crianças representam vinte anos de um Brasil em montanha russa. E aí ele vai investigar o que aconteceu com elas e quem são essas crianças, hoje. É um filme bem legal. E o “Nada Sobre Meu Pai” é, também, esse documentário que traz a figura da realizadora Susanna Lira indo em busca do pai que foi, supostamente, um guerrilheiro do Equador. Ela não tem nenhuma pista sobre ele e ela vai desvendando um pouco, mais do que a história dela, a história da América Latina. Ela não consegue encontrar o pai, de fato, nessa busca, mas encontra uma História. Uma História com H maiúsculo. E isso é o bonito do filme. Então, todos eles, esses brasileiros, eles têm os espaços, os países, as nações, as questões latinas muito carregados. E isso não foi pensado anteriormente. Não foi algo de planejar buscar por filmes assim. Mas eles se revelaram a partir desse trajeto. E foram se casando, também, com os outros filmes latinos que, aí, o Cleber fez toda essa montagem.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. A foto que abre o texto é de Leo Lara

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