Literatura: O supostamente distópico “Os funcionários”, da escritora dinamarquesa Olga Ravn, assombra por ser tão atual

texto por Gabriel Pinheiro

Em um futuro distópico, a nave Seis Mil viaja a milhões de quilômetros do planeta Terra. Dentro dela, humanos e humanóides trabalham lado a lado, explorando a infinitude do espaço. Em Nova Descoberta, um planeta distante e aparentemente árido, com pouco potencial de exploração, os tripulantes encontram um conjunto de artefatos, que são trazidos para dentro da nave. Por essa breve descrição, talvez você imagine se tratar de uma clássica narrativa espacial literária ou, quem sabe, cinematográfica, e que algum terror se esconda por meio desses objetos misteriosos que adentram a nave Seis Mil. Sim, a partir disso, algo fundamental acontecerá dentro daquele ambiente aparentemente controlado, mas numa chave surpreendentemente inventiva. “Os funcionários” é o primeiro romance da dinamarquesa Olga Ravn publicado no Brasil pela Todavia Livros, com tradução de Leonardo Pinto Silva.

Finalista do International Booker Prize e do Ursula K. Le Guin Prize, o romance de Olga Ravn surpreende na forma. O livro é inteiramente construído por meio de depoimentos. Sempre curtos – há alguns que ocupam até duas páginas, enquanto outros se resumem a apenas uma frase cortante – estes depoimentos são dados pelos tripulantes da nave para uma comissão investigativa que busca entender os eventos ocorridos no interior da nave após a descoberta dos artefatos. “Estes depoimentos foram tomados para aferir uma perspectiva das relações entre os funcionários e os objetos nas salas. Ao longo de dezoito meses, o comitê entrevistou todos os funcionários (…) procuramos obter informações sobre as atividades laborais exercidas no local e as eventuais influências que os objetos exerceram sobre os funcionários (…)”.

Se a comissão colhe depoimentos de todos os funcionários, estes não são compilados em sua íntegra no volume. Listados até o número 179 no livro, uma série destes estão ausentes. Não conhecemos os funcionários por seus nomes, mas apenas pelo número do próprio depoimento. Ao longo da leitura, tentamos criar conexões e espelhamentos entre cada um deles, ao abordarem situações ou personagens aparentemente em comum.

A dinâmica entre humanos e humanóides em “Os funcionários” é um terreno fértil para uma multiplicidade de temas. O que me faz humano? Até onde vai a minha humanidade? O que me separa dos outros? A humanidade teria como princípio determinante uma questão biológica? Ao longo de cada declaração, estas noções de humanidade parecem ser colocadas à prova. Enquanto os humanóides parecem cada vez mais humanos, este ambiente baseado no controle, no trabalho e na exploração da mão de obra – conceitos que não têm nada de distópicos, não é mesmo? São temas urgentes do tempo contemporâneo – parecem levar os humanos a um processo de desumanização. Quando só temos o trabalho e nada mais, o que nos diferencia? Como fruir nossa humanidade imersos numa existência aparentemente tão limitada? “Depoimento 021 – Sei que vocês insistem em afirmar que não sou um prisioneiro aqui, mas os objetos me disseram o contrário”.

“Os funcionários” traz questões caras às grandes histórias da ficção científica, com ecos de clássicos do gênero de autores como Philip K. Dick, Arthur C. Clarke ou Isaac Asimov – é interessante, por exemplo, pensar nas Três Regras da Robótica, de Asimov, na relação entre tripulantes humanos e humanóides. Como tais histórias fundamentais, o livro de Olga Ravn assombra por ser tão atual, por ler num futuro supostamente distópico, discussões que são do presente.

O romance é, ainda, uma pungente reflexão sobre a arte e, sobretudo, o potencial transformador do contato com ela – dos nossos paradigmas, das nossas certezas e da nossa própria relação com o universo que nos circunda. Não à toa, Olga Ravn abre “Os funcionários” com uma dedicatória que parece trazer pistas sobre os artefatos que alteram toda a dinâmica daquela nave especial: “Agradeço a Lea Guldditte Hestelund por suas instalações e esculturas, sem as quais este livro não existiria”.

Instalacao “The Inner Space”, de Lea Guldditte Hestelund / Foto de Anders Sune Berg

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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