Literatura: “Mánasteinn – o menino que nunca existiu”, do escritor islandês Sjón, é uma verdadeira jóia narrativa

texto por Gabriel Pinheiro

Um país vê, enfim, a proximidade de sua independência. Um vulcão entra em erupção, espalhando uma nuvem de poeira que, pouco a pouco, escurece a paisagem. Uma guerra entra em seus derradeiros momentos. Uma epidemia assola uma comunidade, um país, um planeta. São muitos os acontecimentos que invadem o cotidiano do protagonista de “Mánasteinn – o menino que nunca existiu“, do escritor, poeta e compositor islandês Sjón, que esteve na FLIP em 2017 e é amigo e colaborador em letras de Björk. Se, numa olhada rápida, eu pareço estar falando de um período recente da história – afinal, a guerra, a doença e a fúria da natureza seguem nos afetando de maneira cíclica ao longo dos tempos – Sjón, na verdade, nos transporta para o início do século XX, em Reykjavik, na Islândia. Com tradução de Pedro Monfort e projeto gráfico de Vinícius Alves, o livro é um lançamento da Ponto Edita.

Máni Steinn Karlsson é um jovem de 16 anos, órfão, que mora com uma tia-avó idosa num pequeno sótão. Gay, o adolescente vende o próprio corpo para homens mais velhos, de diferentes camadas sociais em uma comunidade essencialmente conservadora. Máni encontra no cinema uma válvula de escape para a monotonia e a bruteza de uma realidade pobre, onde sua existência enquanto homem gay é encarada como vício ou, pior, uma doença. O jovem passa as horas e os dias livres entre as duas únicas salas de cinema existentes na capital islandesa, enfeitiçado pelos lúmens do projetor que exibe as hoje clássicas obras do cinema mudo.

Se o cinema é um fascínio, uma personagem parece ter transposto as telas. Steinn se vê seduzido por Sóla Guðb, uma garota da vizinhança que parece à frente de seu tempo, em estilo e comportamento. O rosto de Sóla relembra o da atriz francesa Musidora. Aumentando ainda mais a fantasia, seu jeito de ser e de agir o faz pensar em Irma Vep, uma das principais personagens interpretadas pela atriz no seriado “Les Vampires” (1915/1916). Uma femme fatale por excelência, musa dos surrealistas.

Estamos em 1918. Entre os encontros furtivos com outros homens e o feitiço pela misteriosa Sóla Guðb, Steinn acompanha o processo de independência da Islândia, então sob domínio dinamarquês, alcançar sua conclusão. Ao mesmo tempo, a Primeira Guerra Mundial está prestes a ser encerrada e o vulcão Katla despertou para uma das suas mais furiosas erupções naquele século. Há ainda mais um singular acontecimento que afeta a realidade vivida pelo adolescente, esvaziando as ruas da cidade e as salas de cinema onde ele se refugia: um navio estrangeiro traz consigo o vírus da gripe espanhola. Neste ponto, é assombroso como o romance evoca sentimentos muito recentes, ao nos encontrarmos recém saídos de uma pandemia. Publicado originalmente em 2013, o romance olha para o passado e parece prever um futuro que não demorou a acontecer.

“Mánasteinn – o menino que nunca existiu” é um romance como poucos. Econômico em seu texto, Sjón transborda uma escrita marcadamente poética, onde imagens da realidade pura e simples são perpassadas pelo onírico e pelo surreal num virar de páginas. Uma ode ao cinema clássico, este breve romance parece pincelado de tons de preto e branco, como num filme-mudo que assistimos acompanhados de uma sensível e minimalista trilha sonora. O preto e branco aqui é, por vezes, invadido pelo vermelho – da doença, da violência da homofobia e, principalmente, do lenço de pescoço de Sóla Guðb que Máni Steinn guarda consigo.

Verdadeira jóia narrativa, Sjón constrói um romance magistral, na reconstituição de uma época e nos temas que carrega, como o preconceito, a identidade, o exílio e o poder transformador da arte. Com um final arrebatador, “Mánasteinn – o menino que nunca existiu”, na verdade, dá corpo e voz não apenas para um, mas para muitos meninos que existiram e seguem existindo, apesar de tudo.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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