Entrevista: “Hermeto é meio que meu nº1 no que diz respeito a ser uma força criativa”, diz Michael League, líder do Snarky Puppy

entrevista por Leonardo Vinhas

O Snarky Puppy é “uma porta giratória” de músicos, como já disse várias vezes seu fundador e band leader Michael League. É uma pena que esse aspecto curioso seja muitas vezes o único ponto de referência abordado sobre a banda, que é uma das experiências mais amplas, enérgicas e cativantes do jazz contemporâneo.

Grande parte dessa energia e inventividade vem da visão de seu criador. League é um compositor, arranjador e produtor talentoso, apaixonado por jazz e por diferentes manifestações do folk. Na banda, ele procura trazer tantas nuances quanto possível desse seu universo de interesse, sem deixar de lado inspirações mais identificáveis de funk, pop e rock. Embora algumas de suas composições abram espaço para vozes, a enorme maioria do repertório do Snarky Puppy é instrumental, mas nem de perto restrita ao rótulo que normalmente lhe imputam, que é jazz fusion.

League tem 39 anos e montou o Snarky Puppy aos 20, ainda na faculdade, com outros nove integrantes. Desde então, mais de 40 músicos já passaram pelo coletivo, a maioria indo e voltando. Mais do que possíveis tretas e desavenças, o que mantém a formação fluida é o desejo que League tem de estabelecer ligações reais e profundas com diferentes artistas, e também a possibilidade de que todos conciliem outros projetos em paralelo à banda.

“Empire Central” é o trabalho mais recente do Snarky Puppy, álbum de 2022 que ganhou o Grammy de Melhor Álbum Instrumental Contemporâneo. Tudo foi gravado ao vivo em estúdio, e também registrado em vídeo, o que torna o álbum uma excelente porta de entrada para o universo musical da banda. Visivelmente cansado, mas com grande disposição de espírito, League conversou com o Scream & Yell por videochamada de seu quarto de hotel em Montevidéu, horas antes da apresentação da banda no Uruguai. E como conectividade real é algo essencial para sua música, o papo enveredou principalmente por referências musicais e relações interpessoais.

Depois de vir ao Brasil tantas vezes, e com toda a sua formação, já é fácil sacar que você tem uma relação com a música brasileira. Mas queria saber como é essa relação para além da tradição. Quais os seus marcos contemporâneos na música daqui?
De fato, eu cresci e passei a maior parte da minha vida ouvindo música brasileira. Tenho o mesmo interesse nas coisas contemporâneas que nas coisas mais folclóricas, e tenho grandes amigos que são músicos em atividade, dessa geração mais atual. Não vou dizer que estou super a par de tudo que está rolando, mas muitos desses meus amigos estão tocando na cena, como por exemplo André Vasconcellos, Bernardo Aguiar, Carlos Malta, Gabriel Grossi, Hamilton de Holanda… Mas claro que a primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em música brasileira é Milton Nascimento, Caetano Veloso, Djavan, Elis Regina, esse tipo de coisa.

É que vejo, ainda que não diretamente, um bom tanto de Hermeto Pascoal na música do Snarky Puppy, e…
Ah, certeza! Eu diria que Egberto Gismonti e Hermeto são as duas maiores influências brasileiras na música do Snarky Puppy. Quer dizer, Hermeto é meio que meu número 1 no que diz respeito a ser uma força criativa. E também no que diz respeito a ter um grande ensemble. Ele é o cara!

Aliás, você tem uma banda numerosa, é um produtor e compositor que trabalhou com muitos músicos, e tem uma gama imensa de artistas de peso com quem você colaborou. Deve haver histórias musicais incríveis com todos, mas gostaria de saber especificamente como foram seus processos com a peruana Susana Baca e o cubano Eliades Ochoa, porque a música da América Latina espanhola é um assunto importantíssimo para o nosso site.
Sim, meu deus, tenho tantas histórias! Susana é meio que uma segunda avó para mim. Produzi o álbum “Palabras Urgentes” (2021)… Ele foi indicado ao Grammy Latino? Não lembro. Peraí… Eu deveria saber disso, né? (ri) Ah, foi, sim! Nós gravamos esse disco na casa dela [Cañete, uma pequena cidade do Peru]. Ela gravou com a gente no “Family Dinner – Volume 2” (álbum de 2016, no qual ela canta “Fuego y Agua”), sempre que fui ao Peru me encontrei com ela, trocamos mensagens todos os meses, ela é uma pessoa muito especial para mim. Aliás, vamos fazer alguns shows juntos nos Estados Unidos no ano que vem. Fazer esse disco na casa dela foi incrível – e hilário também. Ela tinha cinco cachorros na época, e eu tenho essas fotos hilárias com todos eles deitados em volta dela enquanto gravamos as vozes, ou então olhando para ela. Vez ou outra, um deles latia e tínhamos que parar o take, e aí ela ficava brava com o cão… Temos tudo isso gravado, foi engraçado demais (risos). Era tão divertido, tinha horas em que ela sumia e quando íamos procurá-la, ela estava na cozinha preparando algo pra todo mundo comer. Ela saía para cozinhar sempre que dava vontade (sorri). Com o Elíades também foi incrível. Eu mal falava espanhol quando produzi aquele disco (“Los Añon No Determinan”, 2017), estava começando a estudar o idioma, e foi engraçado tentar produzir esse cara lendário em meio a sete pessoas que não falavam uma única palavra de inglês. E a única pessoa ali que sabia quem eu era e o que eu já tinha feito era o Eliades, e mesmo assim não muito (risos). Era o empresário dele que tinha me contratado, mas o cara estava fazendo outras coisas e nem estava por lá. Tudo isso num estúdio em Havana Velha, tentando fazer funcionar todo esse equipamento antigo que estava quebrado, e conversando com esses músicos que sempre tocaram de um determinado jeito para convencê-los a tocar de outro (ri). Mas Eliades era sempre muito bacana. Ele tocou no nosso festival (GroundUP, que acontece em North Beach, Miami, desde 2017), é um cara incrível. Eu o amo!

Estou perguntando essas coisas não só pra pegar essas histórias, mas porque sua trajetória na música tem tudo a ver com estabelecer ligações com as pessoas. Essas conexões reais, ao vivo, estão cada vez mais raras nesse mundo “fluído”. Então é pra saber mesmo como você navega nesse mundo cada vez mais digital e dividido em que vivemos.
Toda essa fluidez que temos com todas essas tecnologias e as redes sociais é a constante replicação das experiências reais. Ninguém criou uma nova maneira de interagir que não seja uma diluição derivativa da experiência real. Dessa forma, não acho que minha abordagem – que é gravar álbuns com seres humanos e passar tempo compondo e gravando cara a cara com as pessoas no estúdio, ou virar amigo de verdade das pessoas com quem eu trabalho, formando relações bastante próximas – não acho que essa é uma abordagem jurássica. Não é como se fosse, “ah, hoje isso não se faz mais”. Na verdade, quando alguém posta um vídeo no Instagram e ganha likes e comentários, o que ela está fazendo é uma diluição do que efetivamente acontece quando você está fazendo música com um ser humano e você ganha um feedback real de quem está na sala. É um “like” real da música, um comentário de verdade, e não alguma porcaria que te chegou por um algoritmo ou por um… .Como é o nome daquele código de zeros e uns? (Binário) Ah, obrigado. Eu estou sem dormir direito há uma semana por causa da turnê, me desculpe. Mas então, as pessoas sempre vão desejar buscar relações humanas genuínas, elas sempre desejam e buscam coisas que são feitas com amor e cuidado, não importa se é comida ou vinho ou uma pintura ou o que quer que seja. Qualquer coisa feita com amor e cuidado pode ser apreciada por humanos em pleno 2023. Ainda não deixamos de ser humanos, né? Eu não sou o cara mais ligado em tecnologia nesse mundo, mas sinto que essas coisas vêm e vão, e quando seres humanos criam relações significativas e sinceras, essas coisas duram para sempre, e arte feita dentro dessas relações dura para sempre.

Falando sobre outra coisa que vem e vai, conversemos sobre a formação do Snarky Puppy (risos). Mais especificamente sobre a experiência ao vivo da banda: de muitas maneiras, é uma banda diferente a cada vez, e ainda assim, a mesma banda. Como isso muda a experiência dos shows para vocês e para o público?
Isso assegura que a música seja diferente todas as noites e que nós não estejamos presos a hábitos ou padrões, que não entremos em piloto automático. Refresca a música, por assim dizer. Eu adoro! Eu não conseguiria montar o lineup perfeito e seguir com ele noite após noite. A situação que temos, com pessoas entrando e saindo constantemente, é perfeita. Isso também joga uma luz que a única coisa consistente que temos são as canções, sabe? No fim, o Snarky Puppy é suas canções.

Você compõe músicas de gêneros muito diferentes. O que representa, para você, ser um compositor?
Acima de tudo, é o que eu sou. Minha voz é mais clara quando estou compondo, e onde me sinto mais singular, mais do que quando estou improvisando, por exemplo, ou tocando um groove. Tenho meu próprio som e meu próprio estilo, mas isso não faz de mim alguém diferente, porque todo músico tem seu som e seu estilo. É impossível soar como outra pessoa. Mas enquanto compositor, minha voz é talvez ouvida com mais clareza, e é para mim a parte mais sagrada de fazer música: a parte de criar e lapidar uma arte que pode extrair emoções, até mesmo emoções que não têm nome, nas pessoas, e fazê-las sentir coisas que são muito profundas, ou até muito rasas, dependendo do que você quer fazer que elas sintam, e… (hesita) fazer isso para sempre. Sabe, fazer coisas que 300 ou 400 anos depois as pessoas não se lembram quem estava tocando, mas a canção, a peça, todos se lembram. Porque isso é o que temos da música do passado. Talvez seja assim porque não havia gravações no passado, mas ainda assim, quando você olha na história da música gravada, são os compositores e as composições que ficam. Pense em [George] Gershwin ou em quem fez tantas canções famosas. Talvez você não saiba quem fez sua versão favorita, ou mesmo qualquer versão, mas você conhece a canção. Compor é contar histórias, e é assim que os seres humanos se recordam do seu passado, é como eles são transportados para certos momentos de seus passados, e é também como levamos a história da música adiante.

A turnê que vocês estão trazendo é a de “Empire Central”, um álbum pensado como uma homenagem à história da música negra de Dallas. Por si só, o disco já nos deixa antever muito dessa história, mas queria saber exatamente o que você buscava com essa premissa: era reapresentar a música texana sob uma nova ótica, fazer as pessoas olharem para o passado, ou algo totalmente diferente?
Foram muitas coisas diferentes. Eu queria inspirar curiosidade pra que as pessoas fossem conferir todos esses artistas incríveis, queria reconhecimento para eles. A propósito, eu não sou texano, então não tenho nenhum orgulho especial quanto ao Texas. E talvez por essa razão, por não ser texano, eu consiga ver quão grande é a contribuição que o Texas fez (risos). Eu queria investigar, queria que as pessoas percebessem o quanto o Texas deu para o mundo da música. E também queria voltar às raízes do Snary Puppy, porque o nosso som, no fim, é do Texas. A maioria de nós não é de lá, mas a maioria passou muito tempo por lá e formamos nosso som a partir de lá. 90% do músico que eu sou tem a ver com o Texas!

O álbum teve a última performance de Bernard Wright em um estúdio. Inclusive no vídeo dessa faixa (“Take It!”) no YouTube, há um comentário bastante tocante de sua esposa, Anita, dizendo que “Nard” nunca esteve tão feliz em uma gravação quanto aquela. Sei que ele é um de seus heróis musicais, então, olhando em retrospecto, como foi ter proporcionado esse momento para ele?
Ele me telefonou e disse: “ouvi dizer que vocês estão vindo pra cá, quero colar em vocês e tocar!” (risos) “Claro que sim, Bernard”, eu disse. Ele se convidou (mais risos). Mas ele me disse, “cara, claro que se você não quiser, eu não vou”. Óbvio que eu disse que era para ele vir, e ele não só tocou como apareceu e ficou conosco todos os dias. Foi incrível tê-lo por perto, tanto do que fizemos nos últimos dez anos – porque ele tocou conosco, foi parte da banda por três anos – veio dele. Foi muito especial vê-lo num canto do estúdio sorrindo e agitando e adorando o que estávamos fazendo. Imagine se esse cara que nos deu tanto e em quem baseamos tanto do nosso som não gostasse do que estávamos fazendo! Seria horrível, mas foi muito bom ver que ele tinha orgulho da gente. E foi muito bom ver quão grande foi o papel dele em formar nossa música.

Vocês estiveram por aqui há seis anos pela última vez. O que você diria que foi a maior mudança desde então?
Estamos tocando melhor que nunca. Tocamos uns 300 ou 400 shows desde a última vez que estivemos por aí. Estamos mais aventureiros e exploratórios, e ao mesmo tempo, mais coesos. E acredito que algo aconteceu nesses últimos cinco ou seis anos – rolou no mundo todo, na verdade, mas especialmente na América do Sul: a relação entre o público e a banda está muito diferente agora. Está muito mais quente, parece que as pessoas entendem melhor a música. E acho que em parte é porque as pessoas tiveram mais tempo para ouvir nossa música, mas também porque agora existe uma cena se desenvolvendo na música instrumental, que tem se tornado mais popular no mundo todo. As plateias estão com mais conhecimento em relação ao que está rolando no palco, existe mais educação (no sentido musical) do que havia quando estivemos aí pela primeira vez. Naquela época, talvez fôssemos a única banda instrumental que aquelas pessoas ouviam, ou uma das duas ou três desse tipo. Agora as pessoas compram Kamasi Washington, ou Domi and JD Back (que recentemente tocaram no C6 Fest), todos esses artistas que estão fazendo da música instrumental uma lance mais forte.

– Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).

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