Cinema: “Rodeo”, de Lola Quivoron, é uma espécie de aventura anti-heroica pelo mundo dos rachas de motos

texto de Renan Guerra

Julia (Julie Ledru) vive em um condomínio de moradia popular ao lado da mãe e do irmão. As relações são complicadas por lá e a jovem prefere flanar pelas ruas enquanto aplica golpes e comete roubos. Seu talento maior é para os golpes em que rouba motos de vendedores on-line: Julia chega como uma compradora interessada e dá um jeito de fugir a toda velocidade na nova moto que conquistou. Mas tudo muda quando ela encontra um grupo de motoqueiros que pratica encontros e rachas pelas estradas francesas e que se reúne em uma lúgubre oficina. Esse é o ponto de partida do filme “Rodeo” (2022), da estreante Lola Quivoron.

Lançado ano passado na Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, o filme saiu de lá com o prêmio do júri, o Coup de Cœur, e depois disso fez carreira em diferentes festivais. E tudo isso tem um motivo: o filme de Quivoron tem um novo fôlego juvenil que é extremamente cativante. “Rodeo” segue essencialmente a figura de Julia, mas um dos pontos mais interessantes do filme se dá nesse choque do encontro dela com todos esses corpos masculinos e como, em diferentes medidas, eles tentam cerceá-la e dominá-la, porém arredia e esperta, a personagem principal consegue nos levar junto dela em uma aventura bastante única.

“Rodeo” é um filme melindroso, que vai da tensão à sedução de forma ágil e consegue nos envolver entre uma série de sequências de motos a correr para lá e para cá que são de tirar o fôlego. O filme está engavetadinho na categoria de drama, porém ele é bem mais amplo que isso, pois há um bom humor, uma acidez na sua forma narrativa que nos envolve. Além disso, tem uma tensão que se conecta com os bons thrillers e filmes de assalto – é uma indefinição que é natural, há uma história que Lola quer nos contar, sem a necessidade de amarras de gênero.

Grande parte de sua sedução emana do elenco absurdamente lindo reunido por Quivoron, mas não só isso, não são apenas rostos interessantes e belos, também conta o fato deles seres filmados de uma forma muito única. É um tesão muito específico quem vem dessas figuras anti-heroicas, algo que remete aquelas figuras míticas de “Juventude Transviada” (Nicholas Ray, 1955). Se lá tínhamos James Dean, aqui temos a presença de Julie Ledru, com seus cabelos volumosos e seu sorriso com diastema.

Ledru fez sua estreia nesse filme. A atriz improvisou muitas de suas cenas e disse que antes do filme nunca se interessou muito profundamente pelo cinema, mesmo assim ia de forma costumaz às sessões – inclusive cita como seus filmes preferidos “Fish Tank” (Andrea Arnold, 2009) e “Rosetta” (irmãos Dardenne, 1999), duas escolhas bem interessantes quando comparadas ao filme sobre o qual falamos aqui. Julie Ledru foi selecionada para ser a protagonista de “Rodeo” por um motivo bem forte: ela também é apaixonada por motos, prática motocross e já competiu em muitos desses rachas franceses.

É Ledru quem faz todas as cenas na estrada no filme e, inclusive, já deixou bem claro que suas cenas preferidas são as em que ela própria podia dialogar com a câmera enquanto estava sobre sua moto. Julie consegue transmitir para o espectador as nuances de sua personagem, as complexidades e dores que ficam subentendidas e é muito latente que ela tem uma relação única com a câmera, tanto que o filme só é do jeito que é por causa dessa protagonista.

A narrativa pela qual a personagem Julia se embrenha durante “Rodeo” se conecta com diversas outras narrativas francesas modernas, como por exemplo as tensões causadas pela violência e pela criminalização de determinadas populações que vemos no excelente “O Ódio” (Mathieu Kassovitz, 1995) ou mesmo a falta de perspectivas e a busca constante por adrenalina que é vista em “Sauvage” (Camille Vidal-Naquet, 2018).

De todo modo, o interessante em “Rodeo” se dá nesse choque de um corpo outro adentrando esse espaço masculino; é um corpo feminino que não segue as expectativas programadas para ele e isso gera tensionamentos interessantes e complexos. Talvez o charme do filme de Lola Quivoron esteja nessas múltiplas camadas que se entrelaçam, em uma trama que é veloz e voraz ao mesmo tempo em que pulsa delicadezas e fragilidades.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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