Cinema: Veloz e incômodo, “O Homem Cordial”, de Iberê Carvalho, retrata a cultura do cancelamento e a violência policial

texto de Renan Guerra

Aurélio (Paulo Miklos) e sua banda estão em um momento de retorno aos palcos. Sucesso nos anos 1980, a banda de rock está em uma turnê de retorno, quando uma bomba cai sobre eles: viralizou na internet um vídeo que envolve o vocalista Aurélio com a morte de um policial militar na cidade de São Paulo. O bombástico vídeo se espalha e Aurélio é visto como o novo inimigo de uma ala da sociedade que o vê como um assassino de policiais. No caminho do artista surgem dois jovens jornalistas, Helena (Dandara de Morais) e Rudah (Thalles Cabral), profissionais de um site independente que estão em busca de esclarecer o que aconteceu na fatídica tarde do assassinato e buscam por um garoto que desapareceu no meio dessa confusão.

“O Homem Cordial” (2023), de Iberê Carvalho, chega agora aos cinemas nacionais depois de uma longa carreira em festivais e um lenta espera para o lançamento oficial do filme. Com tema espinhoso, que passeia da violência policial aos linchamentos virtuais, é de se entender a dificuldade de lançamento de um filme desse tipo de forma comercial. Infelizmente, o filme não envelheceu nada tematicamente nesse tempo: as questões que vemos na tela seguem urgentes. Tanto que a história de Carvalho se constrói com essa urgência, são menos de 90 minutos e um ritmo veloz de thriller, que nos faz mergulhar de forma abrupta nesse mundo de Aurélio.

Toda a ação se dá em uma noite, entre o centro e a periferia da capital paulista. Nessa tensa espiral, diferentes personagens aparecem, com um elenco de nomes como Thaíde, Roberta Estrela D’Alva e Murilo Grossi. De todo modo, a espinha dorsal do filme está na atuação potente e precisa de Paulo Miklos, que sustenta a figura desse protagonista, o homem cordial – em diálogo direto com o conceito de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” e seu homem brasileiro de cordialidade colonialista. A câmera persegue Miklos e é ele que fica em primeiro plano, entre a incompreensão e a raiva pelo buraco em que ele se meteu, numa dualidade entre o erro e o acerto.

Há uma construção bem estabelecida da narrativa que se coloca nesse cenário de violência urbana e de extensa vigilância, real e virtual. “O Homem Cordial” só vai revelar em sua segunda metade o que acontece na tragédia que desencadeia os fatos da parte inicial do filme e o que podemos destrinchar aqui são as intenções e as resoluções que o roteiro nos apresenta. No todo, os personagens são muito bem construídos, porém a narrativa que os amarra é bastante frágil. Há uma intenção muito clara de debater e tensionar a violência policial e urbana da nossa sociedade contemporânea, porém os meios pelos quais isso se dá nem sempre são os ideais. Se repetem na tela as mesmas violências que as notícias de jornal apresentam sempre: a negra apanhando na mão da polícia; o gay apanhando da polícia. São imagens que dentro da narrativa parecem um tanto quanto esvaziadas: precisamos ainda desse choque da violência sendo nos exposta? A resposta é não, tanto que não recomendamos o filme para pessoas que se sintam sensibilizadas com esses tópicos de violência policial.

“O Homem Cordial” nos joga nessa espiral de violência e insensatez, só que a sensação final é apenas de torpor, pois a amarração final do filme é um tanto quanto falha. Retornamos o contato com o personagem de Paulo Miklos, mas todas aquelas minorias que vimos apanhando durante o filme não reaparecem, suas histórias ficam pairando no ar. É uma sensação de não-encerramento da narrativa, de repetição de uma mesma lógica violenta. Tecnicamente, o filme é excelente, as atuações são ótimas e Paulo Miklos está em seu melhor como ator, porém o amargor final se dá mais pelas inconclusões da própria narrativa construída do que pelo horror do tema real.

“O Homem Cordial” é, essencialmente, um filme incômodo e divisivo. Se a sessão é curta e veloz, o após precisa ser de digressão; e talvez o filme converse com cada espectador de uma forma. Por aqui, a sensação ainda é dúbia, pois há boas intenções, mas o saldo final parece ainda deficitário.

Leia a resenha de João Paulo Barreto sobre “O Homem Cordial”

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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