Cinema: “Broker – Uma nova chance”, de Hirokazu Kore-eda, traz um olhar complexo sobre as possibilidades familiares

texto de Renan Guerra

O diretor japonês Hirokazu Kore-eda é conhecido por sua sensibilidade e por fazer filmes que conseguem unir de forma sublime desilusão e sonho. “Broker – Uma Nova Chance” (2022), seu mais recente filme, produzido na Coréia do Sul, é mais um desses casos. Nele acompanhamos uma história cheia de meandros: uma jovem mãe abandona seu bebê em uma caixa numa igreja – igual a roda dos enjeitados que existiu no Brasil durante muitos anos. O pequeno bebê chega ao local bem no turno de uma dupla que surrupia algumas dessas crianças para revendê-las no mercado negro. A questão é que nessa noite duas policiais estavam de tocaia no local à espera de alguma possibilidade de enfim responsabilizar os criminosos. É uma trama meio complexa e não nos aprofundaremos demais nela para não estragar a experiência de ninguém, mas o fato é que por mais que essa sinopse pareça de um filme sobre crimes e investigações policiais, esse não é o caso, o que temos aqui é um filme extremamente delicado sobre relações familiares.

Família é um tópico recorrente no cinema de Kore-eda. “Assunto de Família”, filme que foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 2018, era um tratado complexo sobre o que consideramos família e como elas se formam; “Nossa Irmã Mais Nova” (2015) era uma exploração agridoce sobre como os laços familiares são extremamente definidores de quem somos; já “Pais & Filhos” (2013), também premiado em Cannes, era uma intrincada história sobre troca de bebês que descamba para uma análise complexa sobre identidade, família e a nossa existência dentro de uma sociedade capitalista. Descrito assim, parecem todos filmes complexo e profundos demais, mas o cinema de Kore-eda é cativante pela simplicidade e frugalidade com que ele consegue abordar esses tópicos. O diretor tem uma narrativa que nos faz conhecer e nos identificar com cada personagem e “Broker” não é diferente.

A narrativa do bebê que está à venda leva a mãe Moon So-young (Lee Ji-eun) ao encontro da dupla Ha Sang-hyeon (Song Kang-ho) e Dong-so (Gang Dong-won). A partir disso, os quatro saem numa espécie de road trip pelo interior da Coréia enquanto são seguidos pelas policiais Soo-jin (Bae Doona) e Lee (Lee Joo-young). Essa viagem improvável faz com que o espectador conheça as fragilidades, as incongruências e os defeitos desses personagens e é aí que o elenco brilha. Song Kang-ho, que virou estrela mundial após “Parasita” (Bong Joon-ho, 2019) encanta em um personagem cheio de defeitos e segredos, tanto que foi premiado em Cannes como melhor ator – “Broker” também recebeu o Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de 2022. Ao lado de Kang-ho, Gang Dong-won faz bonito como seu parceiro de crimes, em uma atuação cheia de nuances – na Coréia, o ator é um galã com uma longa carreira nas artes, incluindo cinema, música e televisão.

Outra figura que tem longa carreira no país é Lee Ji-eun. Conhecida pelo seu codinome IU, a jovem de 29 anos tem uma extensa carreira dentro do k-pop e é um rosto conhecido no universo dos dramas. Em “Broker”, Ji-eun demonstra maturidade com uma atuação delicada, minuciosa e encantadora. Sua personagem é uma mãe cheia de tensões, que abandona seu filho, mas se vê num emaranhado de situações quase incontornáveis. A atriz consegue transmitir a dúvida, o medo e todas as fragilidades de sua personagem através de uma construção elaborada, em que gestos simples transbordam emoções. Uma cena envolvendo uma camisa que teve seu botão pregado é um exemplo bastante simbólico disso, porém a força principal desse elenco é demonstrada em uma bela e dolorosa sequência numa roda-gigante de um parque de diversões.

“Broker – Uma Nova Chance” acaba se mostrando como mais uma prova de que Hirokazu Kore-eda é um dos grandes cineastas em atividade na atualidade. O diretor tem uma maestria na hora de pegar as coisas mais absurdas e dilacerantes e extrair humanidade disso, encontrando alguma centelha de bondade em meio ao caos. Em meio a dureza da realidade é preciso reencontrar a delicadeza e a beleza e, no final das contas, é para isso que o cinema serve, para nos conectar em alguma instância com o outro – e com nós mesmos.

Dica extra: leve lencinhos para a sessão.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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