Entrevista – Luedji Luna: “Sempre me achei uma artista honesta – ia falar ousada, mas não é a palavra… Hoje estou mais corajosa”

entrevista por Renan Guerra

Durante o período de pandemia, a baiana Luedji Luna lançou “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água”, disco que ficou em segundo lugar na lista de Melhores do Ano de 2020 aqui do Scream & Yell. No finalzinho de 2022, a cantora e compositora lançou a versão Deluxe do seu segundo álbum, em um novo projeto com 10 faixas inéditas de autoria própria, e em parceria com compositores já conhecidos em seus trabalhos anteriores, como Marissol Mwaba, François Muleka e Ravi Landim. O projeto Deluxe tem um caráter de lado B do “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água”, com canções que poderiam estar no disco, mas não entraram. Nesse sentido, o tema do álbum permanece o mesmo, é um disco sobre amor na perspectiva de mulheres negras.

Todos esses passos recentes de Luedji Luna a levaram a cada vez mais lugares ao redor do planeta, expandindo seu público em outros países e também suas conexões com artistas de diferentes backgrounds e outras sonoridades – o R&B e o neo-soul, por exemplo, aparecem com mais força em seu recente lançamento. Agora em 2023, a cantora está colocando o pé na estrada e dando segmento a sua turnê do “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água” em diferentes cantos do Brasil (nessa sexta, 31/03, ela se apresenta na Audio em São Paulo. Veja a agenda completa). E nessa fase de louros, Luedji parece mais feliz do que nunca: uma artista consciente de sua importância no cenário musical brasileiro e com ganas de só crescer mais, de ser cada vez mais verdadeira consigo mesma e com seu público.

Em conversa via telefone no início de março, após o nosso primeiro carnaval oficial depois de tanto tempo distantes, Luedji Luna fala sobre a internacionalização de sua carreira, sobre sua relação com a música eletrônica, sua liberdade enquanto compositora e o momento especial que vive em sua carreira. Você pode conferir o papo na íntegra abaixo:

Nos últimos tempos eu sempre começava as entrevistas perguntando como as pessoas estavam nesse tempo de pandemia, de retorno dos eventos, e essa é a primeira vez que posso perguntar como você foi de Carnaval?! Sei que você estava em Salvador… Tocou em alguns eventos? Queria saber como foi esse momento de retorno?
Foi ótimo, meu Carnaval foi melhor do que eu esperava. Eu estava sem perspectiva nenhuma de cantar no Carnaval, queria me concentrar para o show novo, ensaiar, ficar quietinha e de repente foram aparecendo vários convites legais para fazer, para cantar e eu aproveitei muito.

Como estão esses preparativos para a nova turnê do disco “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água – Deluxe”?
Estou me preparando muito fisicamente, me concentrando, é uma bateria de trabalho bem intensa, com bastante ensaio… Estou com uma expectativa muito grande pra esse novo trampo. E acho que vocês vão gostar do resultado, acho que o show pode ser um pouco mais ousado que o disco, (pois) a gente pode experimentar, trazer novas versões, trazer canções antigas, então vai ser um show um pouco mais longo, a gente vai passear por canções dos outros discos, mas focado no Deluxe.

A versão Deluxe traz muitas faixas… Como você definiu que esse seria uma espécie de lado b do “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água”, como foi chegar a essa formatação que é como um extra, mas ao mesmo tempo funciona como um disco novo?
Eu não queria encerrar a história do “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água”, que é um disco muito importante, que traz um tema muito sensível que é o tema do amor na perspectiva de mulheres negras, acho que muita canção poderia ter entrado na versão standard, e não entrou, então eu não queria encerrar a história. Acho que o Deluxe nasce nesse sentido: eu não me senti pronta para encerrar a história do “Bom Mesmo”, mas ao mesmo tempo tem muita música nova dentro desse tema pra poder cantar, gravar e produzir e daí surge com esse caráter de volume 2, de lado B do “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água”.

Nesse disco você experimenta bastante com esonoridades do R&B, do neo soul, que eram gêneros que já apareciam bastante em seu trabalho, mas que aqui fica mais latente. Queria entender se isso foi um direcional que nasceu naturalmente, se você pensou nisso, como foi?
Sempre flertei ali com o jazz, né, mas acho que esse é o trabalho onde a minha pesquisa, a minha escuta está mais alinhada com o que eu faço. Por exemplo, teve uma época que eu só ouvia pagodão, e fiz o “Um Corpo no Mundo”, entende? E acho que essa é a primeira vez que você escuta as minhas referências, o que eu estava escutando, (que era) Solange, Cleo Soul, que consegui imprimir no meu trabalho, em termos de estética sonora. Foi muito uma escolha mesmo proposital, e também fruto dos meus encontros com produtores e artistas dos Estados Unidos que eu já queria trocar há algum tempo, que eu já vinha flertando e, enfim, nesse trabalho eu tive a oportunidade de finalmente fazer feats com essa galera do norte.

Você falou nessa questão dos encontros e acho que isso move bastante todos os seus projetos. Você sempre tem outras pessoas com as quais você troca, com as quais você constrói coisas, e nesse trabalho não foi diferente, a gente tem uma quantidade grande de pessoas que participam, que constroem e eu queria entender um pouco a sua relação com o Kato Change, produtor do disco, que é um artista que você já trabalha ao lado há vários anos. Como funciona essa troca entre vocês dois?
Kato Change é uma figura que conheci na Bahia, ele estava fazendo intercâmbio no Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica, ele é queniano e desde que a gente se conheceu, a gente teve vontade de trabalhar junto, falamos: “não, vamos fazer alguma coisa juntos”. E calhou de eu ser contemplada num edital e consegui trazer ele pra fazer a assinatura das guitarras de “Um Corpo no Mundo”, ele quem faz os arranjos de guitarra do disco. Aí, pouco tempo depois, graças a conexão com ele, consegui cantar em Nairobi, conhecer a África pela primeira vez, foi uma experiência transformadora. Em seguida ele volta para o Brasil para fazer uma turnê nacional pelo edital da Natura Musical, faz a turnê nacional comigo, depois eu volto pro Quênia para gravar o “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água” original – que foi uma desculpa pra eu voltar pro Quênia. E aí ele não só assina as guitarras, como já chega nesse trabalho como produtor junto comigo. Pra mim fazia sentido nessa construção da narrativa do Deluxe manter ele como produtor e agregar o Theo Zagrae, que tem expertise com produção de beats, com rap, com R&B, é um produtor jovem carioca e ele também assina a produção junto com nós dois.

Você falou também nessa questão de ter trocas com os artistas norte-americanos e eu acho que essa internacionalização, digamos assim, do seu trabalho, da sua carreira, foi caminhando de uma forma muito natural para desaguar nesse disco. Você participou de importantes projetos lá fora como o Colors, o Tiny Desk e agora você chega nessa troca e eu queria entender pra você como você percebe esse momento de poder se conectar com esses artistas e também chegar em outros ouvintes?
Desde “Um Corpo no Mundo” tive um feedback muito positivo internacionalmente. E me surpreendeu muito saber que, ao contrário do que eu imaginava, de que a Europa (Portugal) era a minha segunda maior audiência, mas na verdade os Estados Unidos são a minha segunda maior audiência. Então senti que era o momento de estreitar ainda mais a relação com os Estados Unidos, até porque muitos artistas de lá são referência para mim. Tive a oportunidade de cantar no South by Southwest e foi uma experiência super enriquecedora, foi a primeira vez que eu cantei nos Estados Unidos, em Austin, aí depois fui para Nova York que, assim, quase que eu não volto mais! Me apaixonei perdidamente por Nova York. Eu sempre quis ter esse namoro, mas depois que descobri que existe uma audiência lá, uma demanda, percebendo que vários produtores estavam me solicitando, por exemplo, o Odissee foi uma pessoa que me procurou, o John Key foi uma pessoa que me procurou. Há de fato uma escuta e uma atenção à música brasileira e à minha música lá. Senti isso também como um sinal, um momento de explorar essa abertura que eu estou tendo lá e quero que cresça mais.

Você citou o Odissee e vocês lançaram juntos uma faixa anterior ao lançamento do Deluxe, “Nova Deli”, que não entrou nesse disco, ela ficou como single. Queria entender qual foi a ideia de deixa-la de fora?
“Nova Deli” não entrou acho que por questões mesmo de estética sonora, para dar lugar a outras histórias, outras canções, senão eu ia fazer um disco de 20 músicas – ninguém suporta mais, ninguém ouve mais disco e eu tinha tanta música que eu acho que foi mais por uma escolha mesmo estética. Ela não casa ali com o projeto do resto do disco e também dá lugar a outras canções que eu estava afim de gravar.

Você falou dessa questão de casamento de sonoridades e você sempre transitou muito bem por diferentes universos sonoros. Acho que uma das conexões muito interessantes que você faz é com a música eletrônica, com os beats, com todo esse background que também vem do rap, algo que você já fazia lá no “Mundo (Remix)” com o DJ Nyack e que você segue fazendo aqui e em alguns outros encontros no novo disco. E eu queria saber um pouco como é a sua relação com a música eletrônica. Sinto que muitas vezes nos últimos anos a gente teve essa ideia de que música eletrônica era algo muito embranquecido, mesmo tendo suas raízes muito negras.
Sim, sim, a Beyoncé está aí pra provar isso com o house [em seu disco “Renaissance”]. Acho que houve uma apropriação de um universo, ela foi colocada em um contexto que se embranqueceu, mas sinto que a música preta é a música da diáspora. A música preta é a música da diáspora! A música preta é aquela música que se espalha e que cria fundamento e raiz em qualquer lugar do mundo, ao exemplo do rap, do movimento hip hop. Cheguei em São Paulo, não era minha escola, não era o universo que eu transitava lá em Salvador, eu realmente sou filha da MPB, da canção, mas chegando em São Paulo, convivendo nesses ambientes de música preta, de pessoas pretas eu não pude não me trombar com Discopédia, Sintonia, enfim, essas festas de rap e R&B, e fui atravessada por isso. Eu tive a oportunidade de fazer um projeto no antigo Red Bull Station, nem sei se existe mais, com o Illa J, e foi assim que conheci o DJ Nyack. Foi assim que nasceu essa vontade de flertar mais com a música eletrônica, com o rap, com esse movimento e calhou no EP “Mundo” e calhou em tantas outras coisas, acho que esse trabalho fez com que outros DJs, por exemplo, o Mulú, me vissem com esse potencial de cantar essas produções de beats que eu amo, eu adoro. É um outro jeito de compor, é um outro jeito de fazer música, mas é fazer música igual e eu amo igual.

Sim, e é interessante pensar como uma canção como “Banho de Folhas” virou um hit tanto na versão original quanto nesses muitos remixes. Eu estava nesse final de semana em uma festa de cultura gay leather aqui em São Paulo, na Casa da Luz, e eram três da manhã e estava tocando “Banho de Folhas”. Eu pensei o quanto é curioso como a música chega em outros espaços quando tem essas misturas e eu acho que “Banho de Folhas” é o seu grande hit, né?
É meu grande hit e a cada ano que passa é um hit que se atualiza por conta desses remixes, dessas novas produções, eu adoro que ela seja essa canção tão popular e cada vez mais popular. Primeiro que me fortalece, as pessoas acabam conhecendo as outras canções por causa dessa canção e também porque é uma canção política. Eu tô falando ali de uma religiosidade ainda extremamente perseguida, desrespeitada e ver assim um Brasil acolhendo e cantando as folhas sagradas, celebrando um vodum, um orixá, isso é muito gratificante, mostra realmente que essa música tem uma força especial, uma energia especial.

Você falou anteriormente da forma de compor as suas canções, o quanto elas também são muito íntimas, e acredito que esse disco mais recente expõe ainda mais isso, acredito que cada vez mais você se abre em seus textos. Como você percebe isso?
Eu acho que esse disco é o disco em que eu estou mais nua, menos metafórica, menos alegórica e mais literal. E eu acho que é uma confiança mesmo, uma confiança que a gente lida com anos, confiança na minha carreira, confiança no meu público, confiança na música. Por exemplo, nesse disco eu estou cantando a primeira música que eu fiz na vida, que foi com 17 anos – não a primeira música mesmo, eu faço música desde muito novinha, mas essa é a primeira música que eu fiz conscientemente com 17 anos – e eu tive coragem de colocar ela nesse novo disco, que é “Pele”, com participação do Mereba. Então eu sinto que (Deluxe) é um disco corajoso, com menos vergonha, mais maduro. Eu estou mais madura, acolhendo a Luedji do passado e sem vergonha, sem limites com relação ao que eu vivi, senti, com relação a minha história.

E você acha que isso tem a ver também com tudo que você já construiu, no tempo de palco que você tem agora, as novas vivências que você teve, a maternidade, você acredita que todas essas coisas colaboram para esse momento?
Eu acho que sim. Com menos medo mesmo. Eu sempre me achei uma artista honesta – eu ia falar ousada, mas não é a palavra, é honesta mesmo. Fazendo o que eu achava que era justo e fazia sentido para minha música naquele momento, desde “Um Corpo no Mundo”, mas com o passar dos anos, quando você percebe que vai estabilizando a carreira e se consolidando e recebendo respaldo do público. você fica ainda mais corajosa e menos, cada vez menos melindrosa.

Acho que também tem essa questão de que o público responde muito as suas canções que são muito íntimas. É interessante como há essa universalidade na canção de que as pessoas se identificam com coisas que são muito pessoais suas e também tocam em lugares muito pessoais de quem está ouvindo, né?
Sim, sim. É um movimento da mágica da música, ela tem essa capacidade de que ainda que ela nasça de uma fonte, de uma história, da subjetividade de uma pessoa, a existência da música, a essência da música ela é anterior. E outra, a experiência humana no final das contas, a gente se mobiliza pelo amor, para o amor e pelo amor. A grande semente da vida é o amor. Nesses dois últimos discos, especialmente, eu sinto que as pessoas se sentem realmente identificadas com cada canção, porque o amor, a experiência do amor – e do desamor, né – é algo muito nosso, muito humano.

Você falou da questão do amor e uma das frentes desse disco é esse amor da mulher negra e você traz várias mulheres que são suas parceiras, suas amigas, para também conversarem no disco, o que é muito bonito. A gente tem as vozes da Linn da Quebrada, da Maira Andrade, da Winnie Bueno, da Valdeci Nascimento, e eu queria entender qual a importância para você de ter esse círculo de amigas e de mulheres que também te inspiram e trocam com você?
Eu acho que é de suma importância, porque a experiência do afeto, do amor para as mulheres negras, ela não é única, assim como a experiência do racismo também não é, assim como a experiência de estar vivo, de ser um corpo preto e feminino no mundo não é única. E eu não poderia falar de amor sem trazer outros olhares, eu não queria que fosse só sobre mim. E como eu digo em todas as entrevistas, é o amor na perspectiva das mulheres negras e nós somos muitas, nós somos plurais, nós somos diversas, nós temos N desejos. É óbvio que eu não contemplei a todos, mas eu queria que fosse um pouco mais amplo do que sobre o meu próprio olhar, sobre o meu próprio umbigo. Ao mergulhar nessa questão eu queria que fosse para além de mim.

Para finalizar, gostaria de saber qual sua expectativa para esse ano que se abre – a gente sempre fala que o Carnaval é o marco principal do nosso ano novo no Brasil. Queria entender qual a sua ansiedade de colocar o pé na estrada?
Olha, esse ano está assim, eu estou entregue! Estou entregue para 2023. Eu não sei o que mais pode acontecer, sabe quando você faz um plano e é um plano muito bom, o plano que eu tenho pra mim, pra minha vida, pra minha carreira, mas o que o Universo tem me dado, o que a música tem me dado é um plano melhor do que eu tinha planejado, então estou muito confiante, muito tranquila, me preparando para entregar um show a altura do disco e pronta pro que vier esse ano!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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