Em “Renaissance”, Beyoncé não apenas faz um convite para que o público retorne às baladas, mas repense sua relação com elas

texto por Renan Guerra

Já faz alguns bons anos que Beyoncé chegou em um nível elevado em que seus lançamentos não necessitam das amarras que movem a indústria musical. Diferente da maioria das cantoras pop, ela não depende mais de um hit de verão ou de seguir uma nova tendência de mercado. Na verdade, passou a ser usual nos últimos 10 anos que Beyoncé dite as novas tendências, sejam álbuns visuais, lançamentos surpresas, aparições na mídia ou mesmo uma série de produtos e produções que vão além da música. “Renaissance” (2022) é mais uma amostra dessas escolhas que deixam todos ansiosos.

Sétimo disco de inéditas de Beyoncé, “Renaissance” saiu já há quase três meses e de lá pra cá o público espera ansioso por acompanhamentos visuais do disco, mas nada foi divulgado – ainda. Há takes filmados por fãs de Beyoncé em um set de gravação na rua e ela mesma até chegou a divulgar um teaser de um possível vídeo, mas até o momento tudo o que temos é uma publicidade para a marca de joias Tyffany & Co. Enquanto esse material não surge – sabe-se lá se algo virá à tona – é preciso falar sobre o impacto que esse disco já causou em 2022, pois “Renaissance” é o ato de conexão de Beyoncé com as pistas, um trajeto amplo pela história da música eletrônica – uma história essencialmente negra.

Muitos dos primeiros experimentos eletrônicos estão relacionados a nomes brancos, porém a música eletrônica só ganha algum caldo e passa a ser música de pista e de dança nas mãos de artistas negros. A música seminal do Kraftwerk, por exemplo, ganha outras nuances quando encontra os DJs de Detroit ajudando a formatar o nascimento da música techno. A história da música eletrônica é cheia dessas intersecções e Beyoncé parece ter buscado fazer um passeio intenso por esses sons que permeiam diferentes décadas e cenários, do house e da disco dos anos 70, lá no Studio 54, às sonoridades mais modernas dos anos 2000, em uma viagem que inclui uma quantidade ampla de samples e interpolações.

Esse trabalho de pesquisa e de conexão de samples é algo fundamental na música das últimas quatro décadas, do hip-hop à música eletrônica – para quem quer ir além é só voltar ao trabalho de DJ Shadow, por exemplo. De todo modo, quando Beyoncé leva isso para um espaço de mainstream, essas colagens passam a ser questionadas: a artista não é tão criativa assim? Não há inovação? É uma discussão datada, com o mofo dos anos 90, mas que retornou entre os fãs de música pop. Porém, “Renaissance” é uma aula de história da música: Beyoncé consegue levar seu público por um universo de nomes e figuras fundamentais nessa cosntrução sonora, tudo com unidade, coesão e frescor. Nada aqui parece requentado. Se ela conversa com os anos 70 e 80, não é de forma emulativa, mas sim de real diálogo.

Esse uso de diferentes samples até rendeu algumas celeumas para Beyoncé. A cantora Kelis, por exemplo, não ficou lá muito contente com o sample de sua música “Milkshake”, presente em “Energy”, uma vez que Kelis tem um histórico de divergências com os produtores Pharrell Williams e Chad Hugo, do The Neptunes. A faixa foi então modificada e o sample retirado nas versões digitais do disco e nas prensagens posteriores, porém quem comprou os primeiros CDs e vinis de “Renaissance” já tem um item já raro, que é o disco “original”, sem essas mudanças posteriores. Beyoncé também alterou alguns versos da música “Heated” depois de receber críticas pelo uso do termo “spaz”, gíria que significa algo como “perder a cabeça”, mas que no Reino Unido é considerado uma ofensa capacitista para aqueles que sofrem de paralisia cerebral. Há, ainda, outras brigas envolvendo os direitos de outras canções, mesmo com Beyoncé colocando uma porção de créditos em cada faixa e todo mundo sendo pago corretamente. Para quem curte esses pormenores, vale investigar que ainda há outras histórias sobre ““Renaissance” correndo por aí.

Voltando ao tópico musical: Vimos um interessante revival da disco music recentemente, nomes como Roisin Murphy, Jessie Ware e Dua Lipa beberam de forma bastante intensa dessa fonte, porém Beyoncé aqui parece levar esses diálogos para outro lado. A house music, o hip-hop, a eurodance e outros ritmos constroem uma linha narrativa para que a artista nos leve de novo para as pistas. Depois de tanto tempo em casa, “Renaissance” é um convite ao retorno para as baladas e, mais do que nos chamar para as pistas de dança, o disco de Beyoncé é também um chamado para que a gente repense nossa relação com esses espaços e com esse universo musical. A música eletrônica tem um histórico amplo de pessoas brancas se aproveitando do trabalho de pessoas negras e levando esse crédito – e esses royaltes. É notório o (ab)uso de vozes e samples de artistas negros pela eurodance nos anos 90 ou mesmo o uso que artistas gringos fazem do funk carioca.

Além desse fundamental background negro, Beyoncé ainda faz um resgate da importância das pistas de dança para a comunidade LGBTIA+. E aqui estamos falando de corpos marginalizados: pessoas trans, travestis, drag queens e bichas pretas. Beyoncé celebra o ballroom, o vogue e todas essas manifestações que estão atreladas ao glamour da noite. Para esses corpos marginais, o espaço da pista de dança é muito mais do que apenas um espaço de diversão, é um espaço de liberdade, onde se pode ser tudo que se é, sem medo, sem os julgamentos da rua. A faixa “Pure/Honey”, por exemplo, traz samples da drag queen Kevin Aviance, de sua faixa “Cunty” (1999) e do produto MikeQ, da faixa “Feels Like (ft. Kevin JZ Prodigy)” (2011) – MikeQ é um nome bastante importante na cena ballroom norte-americana.

Um fato extremamento simbólico: Beyoncé dedica “Renaissance” ao seu tio Johnny, citado diretamente na faixa “Heated”. Johnny Knowles era um homem negro gay que morreu em decorrência do HIV/AIDS, porém foi uma figura fundamental na formação cultural e humanística de Beyoncé e por isso aparece aqui celebrado. Johnny é como uma figura símbolo dessa história LGTBIA+ que a artista busca resgatar. “Ele foi meu padrinho e a primeira pessoa a me apresentar muitas das músicas e cultura que servem de inspiração para esse álbum”, escreveu a cantora em seu site oficial.

Para além disso, “Renaissance” celebra uma lista fundamental de nomes: Grace Jones, Donna Summer, Giorgo Moroder, Robin S, Bianca Jagger, Nile Rodgers e Madonna, entre outros. “Criar esse álbum me permitiu um lugar para sonhar e para encontrar escapismo durante um tempo assustador para o mundo. Ele permitiu que eu me sentisse livre e aventureira em uma época que poucas coisas estavam se movendo. Minha intenção era criar um lugar seguro, um lugar sem julgamentos. Um lugar para ser livre do perfeccionismo e da obsessão. Um lugar para gritar, se soltar, sentir a liberdade”, explicou Beyoncé.

Enfim, há muitas formas de se analisar esse novo trabalho de Beyoncé e esse texto apenas aponta alguns possíveis universos nos quais mergulhar. Além disso tudo, o que sabemos até agora sobre os próximos passos de Beyoncé é que esse disco também é chamado de “Act I: Renaissance” e que ainda podem surgir um “Act II” e um “Act III”… Será que vem mais por aí? Tudo segue um mistério até o momento, mas o que já podemos afirmar é que esse aqui já é um dos melhores discos do ano!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. 

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