Literatura: “Electronica”, do argentino Enzo Maqueira, é um retrato intenso e corajoso de uma geração que ainda busca se definir

texto por Gabriel Pinheiro

Ela é uma professora que acaba de chegar aos 30 anos. Não a conhecemos pelo nome próprio, apenas pelo trabalho que realiza. Um trabalho, aliás, entediante, mas que permite o sustento e a vida ao lado do companheiro, o jornalista Gonzalo. Enquanto a relação segue um fluxo em direção ao marasmo e a falta de interesse mútuo, a professora dá início a um relacionamento extraconjugal com um aluno de 18 anos, Rabec. O frescor da idade alheia reconstitui sentimentos e sensações até então atenuados pela rotina e pelas atribulações da vida. “Electronica” é um romance do argentino Enzo Maqueira, lançado em caprichada edição pela Ponto Edita com tradução de Mauricio Tamboni e apresentação de Gaía Passarelli.

“Electronica” tem clima, cores e sobretudo, trilha sonora bem específicos, ao partir do presente da professora em direção ao passado, aos anos de formação da personagem. Enzo Maqueira nos transporta para o início dos anos 2000 na capital argentina, Buenos Aires. Naquele momento uma geração vivia a noite portenha embalada pelas cores neons, pela luz negra, pela batida da música eletrônica e pelas possibilidades infinitas propiciadas por drogas sintéticas. O infinito parecia ao alcance da mão. O ambiente fechado de uma balada noturna não trazia a sensação de aprisionamento. Pelo contrário: a liberdade residia ali. “Você sentiu que, enquanto durasse a bolha do som que o Satoshi fazia flutuar entre as pessoas, parecíamos eternos, e a música repetia tantas vezes o mesmo loop sem sentido, sem letra nem mensagem, que a nenhum de nós ocorria pensar na morte”.

Mas isso era o ontem. O hoje se impõe como uma sequência de promessas não cumpridas. Aluguéis a pagar e salários baixos, as longas jornadas de trabalho e o escasso tempo de lazer. Mais que isso, um país – e um continente – que parece ter estacionado frente às perspectivas de futuro que outrora se avizinhavam. Neste contexto, a professora tenta encontrar o equilíbrio – ainda que este esteja numa dose – em campos como o sexo, o amor, os afetos, o trabalho, a saúde mental. “O maior problema é que a nossa geração é a primeira que está preocupada em viver bem. Nossos avós já fizeram o esforço de começar do zero, nossos pais ganharam o dinheiro, para a gente sobrou a procura da felicidade. Mas a gente nunca encontra, a professora disse. Não, o ninja disse, para a gente não sobrou nada.”

Em um universo de obras que olham para as muitas experiências da geração millenium, o livro de Enzo Maqueira traz um sabor especial, na maneira como trabalha a melancolia do hoje e a nostalgia do ontem. É curioso como parecemos cada vez mais nostálgicos de períodos cada vez mais recentes. Pela própria velocidade da vida contemporânea, pela evolução das estruturas e das tecnologias que nos rodeiam. Tudo parece efêmero demais. “Embora a professora achasse que nunca ia deixar de ser jovem, ela se deu conta de que estava equivocada”.

O romance tem uma estrutura narrativa primorosa, que pode causar certo estranhamento de início, mas bastam poucas páginas – ou nem tudo isso, poucas frases – para embarcarmos em sua proposta ousada e original. Enzo Maqueira intercala entre a terceira e a segunda pessoa, dando saltos vertiginosos no foco da voz narrativa, muitas vezes, numa mesma linha. “A professora ia ensinar o que nenhuma namorada de 18 anos poderia. Seria um curso intensivo rumo à idade adulta, mas também seria, para você, uma revanche”. Este narrador indeterminado fala sobre e também fala com a protagonista, interpelando-a, num olhar ora ácido, ora afetuoso.

A música tem uma função narrativa importante dentro do romance. Ela demarca um tempo, lugares e experiências pessoais e compartilhadas. Ainda que reconstrua uma geração que viu surgir diferentes possibilidades de acesso à música, por meio de novas tecnologias, a televisão e os videoclipes da MTV ainda tiveram ali um importante papel de formação. Air, Radiohead, Tiësto e Red Hot Chilli Peppers, para citar alguns, imergem as páginas de “Electronica” no ritmo de suas músicas.

“Californication”, dos Chilli Peppers, fora a trilha do início da juventude da professora. “Biological”, canção do Air, tantos anos depois, segue causando arrepios em sua espinha. “Lembrou-se da noite de Tiësto, quando enfim conseguiu se levantar o canto onde estava viajando por túneis de luz e o ninja te colocou num taxi e em vez de te levar para um hospital te levou para o apartamento dele e te deu água e os anéis coloridos apareceram no teto”. Para a protagonista, os discos de Radiohead merecem um ritual especial de imersão: “Então você colocou o ‘In Rainbows’ e escutou inteiro, curtindo cada faixa como tinha aprendido a curtir Radiohead: sempre uma oportunidade de se transportar para um outro lugar”. É também a música um gatilho tão potente para nosso sentimento de nostalgia, não é mesmo?

Numa linguagem ágil, a prosa de Enzo Maqueira cria um interessante choque entre passado e presente. Caminha pelo hoje e, na linha seguinte, nos transporta duas décadas no tempo. “Electronica” é um retrato intenso e corajoso de uma geração que ainda busca se definir. Entre os cacos de certezas e promessas quebradas, sua protagonista tenta encontrar seu reflexo.

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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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