Em sua sexta edição, o Festival Radioca mostrou a potência de um Nordeste diverso num altíssimo nível de grandes shows

Texto por Nelson Oliveira
Fotos de Rafael Passos

Edição após edição, a curadoria do Festival Radioca se submete a dois desafios: montar a escalação mais diversificada possível e levar o evento a um espaço de Salvador que ainda não tenha servido de palco para os seus shows. Como nos cinco anos anteriores (lembrando que, em virtude da pandemia de Covid-19, houve uma pausa em 2020 e 2021), as apostas do jornalista e DJ Luciano Matos, dos músicos Ronei Jorge e Robertinho Barreto (BaianaSystem), e da produtora Carol Morena, que também assina a coordenação geral do festival, foram certeiras.

Foto de Rafael Passos

No fim de semana dos dias 12 e 13 de novembro, o Radioca levou artistas emergentes e consagrados da música brasileira para um dos mais charmosos cartões postais de Salvador: o bairro da Ribeira, conhecido pelas tardes agradáveis em seu calçadão à beira-mar, embarcações atracadas nas marinas, bares, restaurantes e sorveterias. O público do festival podia curtir essa programação antes de se dirigir à Fábrica Cultural, espaço escolhido para a montagem dos dois palcos e de toda a estrutura auxiliar do evento – que ainda contou com feira de moda, arte, impressos e discos, food trucks, bares e espaços de convívio com capacidade para 3 mil pessoas.

Foto de Rafael Passos

No pátio situado entre os armazéns e a chaminé da antiga fábrica de linhos, o itinerante Radioca recebeu 12 shows, sendo seis por dia. Na programação, foram muitas “primeiras vezes”: o lançamento do álbum “Alto da Maravilha”, de Russo Passapusso e Antonio Carlos & Jocafi, na primeira aparição em palco deste projeto conjunto dos artistas baianos; o primeiro show em Salvador dos pernambucanos Otto e Alessandra Leão nas turnês de seus mais recentes discos – “Canicule Sauvage” e “Acesa”, respectivamente; e as estreias na cidade de Ana Frango Elétrico (RJ), Bixarte (PB) e Luísa e os Alquimistas (RN). Completaram o line-up o bloco afro Ilê Aiyê, Mariana Aydar (SP), Zé Manoel (PE), A Trupe Poligodélica (BA/PE), Ana Barroso e a parceria entre Bagum e Vandal.

Foto de Rafael Passos

Havia um componente cultural comum a quase todos os shows do Radioca de 2022: 10 dos 12 shows do festival foram protagonizados por artistas do Nordeste. Porém, se considerarmos que Mariana Aydar (SP) baseou o seu repertório no álbum “Veia Nordestina” (2019), poderíamos dizer que, dentro do line-up, somente Ana Frango Elétrico não tinha ligação direta com a região.

Ana Barroso / Foto de Rafael Passos

Essa opção da curadoria ficou ainda mais explícita quando Ana Barroso deu início ao primeiro show do festival com o mapa do Nordeste estampado nas costas de seu vestido branco. A cantora natural de Vitória da Conquista apresentou o bucólico e elegante repertório do disco “Cisco no Olho” (2021) para o público que, preguiçosamente, começava a se acomodar no gramado da Fábrica Cultural. Além de destaques como “Capitá” e a faixa título do álbum, Ana também prestou homenagem a Gal Costa em “Minha voz, minha vida”.

A Trupe Poligodélica / Foto de Yasmin Fonseca

Em seguida, no segundo palco do espaço, A Trupe Poligodélica deu continuidade ao sábado completamente nordestino do Radioca. A banda originária do Vale do São Francisco, entre Bahia e Pernambuco, ofereceu densas camadas de psicodelia e experimentalismo ao anoitecer – engrandecidas pelo timbre metálico e pouco usual do vocalista Fatel. O grupo não foi tão favorecido pela amplidão do espaço, visto que o público mais distante do palco, em dessintonia com a parcela no gargarejo, não parece ter absorvido as sonoridades com a devida atenção. Assim, acabaram perdendo uma apresentação coesa e tecnicamente interessante, cujos pontos altos foram “Raylander” e a irônica (e recém-lançada) “Portelinha”.

Luisa e os Alquimistas / Foto de Rafael Passos

A noite já estava posta quando Luísa e os Alquimistas entraram em cena para fazerem, com sua mistureba de dub, ragga, piseiro, tecnobrega e batidas de indie pop, um dos melhores shows do Radioca. Embora os potiguares realizassem apenas sua primeira apresentação completa na Bahia, a intimidade entre o grupo e o público parecia de longuíssima data. Tudo passava pelo desbunde de uma banda acostumada a fazer (e a tocar) cachorrada. Como gaiatice compõe o modo de existência básico de Salvador, a colorida trupe de Luísa foi ovacionada a cada acorde e cada sílaba proferida: tanto em faixas de seu trabalho anterior, “Jaguatirica Print”, de 2019 – a canção homônima, “Garota Ligeira”, “Cadernin” ou “Calor no Rio” –, quanto no single “I Love You Lulu” ou ainda nas interpretações de “Boto Pra Torar”, “Guapetona” e “Sabor de Vingança”, presentes em “Elixir”, álbum lançado em setembro deste ano. Performance calibrada.

Alessandra Leão / Foto de Rafael Passos

Após a fuleragem de Luísa e os Alquimistas, o Radioca entrou num período de ode à percussão e às tradições afrobrasileiras. Trabalhando com tambores orgânicos e sintetizadores para dar vida às cirandas, aos cocos e aos maracatus de “Acesa”, o show de Alessandra Leão teve momentos quentes, como em “Campo de Batalha” e na homenagem a Lia de Itamaracá em “A Hora é Minha”. O veterano bloco Ilê Aiyê, com quase 50 anos de existência, promoveu o mesmo com clássicos como “O Mais Belo dos Belos”, “Que Bloco é Esse?”, “Ilê Pérola Negra”, “Negrume da Noite” e “Alienação”. Apesar disso, a temperatura de ambas as apresentações foi menos elevada do que a do espetáculo anterior e a do posterior, protagonizado por Otto.

Ilê Aiyê / Foto de Rafael Passos

No encerramento da primeira noite do festival, um Otto bastante centrado optou por deixar em segundo plano as canções do álbum “Canicule Sauvage” e reabraçar Salvador, onde não se apresentava desde 2019, com seus clássicos. O reencontro do pernambucano com a cidade de sua atual esposa, a atriz e cantora Lavínia Alves, parecia simbolizar uma espécie de renovação dos votos do casal e lhe orientar a uma exibição de gala. Ao lado da companheira, Otto encadeou sucessos, como “Cuba”, “Bob” e “Ciranda de Maluco”, e não deixou de relembrar “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” (2009), o seu melhor trabalho, que várias vezes o levou à capital baiana entre 2009 e 2011. Nesse sentido, não podiam faltar “Janaína”, “Saudade”, “Crua” e “6 Minutos, entoadas a plenos pulmões pelo público.

Otto / Foto de Rafael Passos

Com ânimo renovado após um grande sábado, o público decidiu chegar mais cedo ao Radioca no domingo. Havia um motivo extra: a abertura cabia ao rapper Vandal, dono de um séquito de fãs, em show de sua recente e frutífera parceria com a banda instrumental de indie rock Bagum. Esse encontro de diferentes realidades e sonoridades soteropolitanas rendeu a excelente gravação de “Bikinih Ih Cerolh”, pertencente ao EP “16”, e também deu novas roupagens e uma louvável ambiência mais orgânica a hits do repertório de Vandal, como “Essecaratemh”, “Vemh Nih Minh” e “Balah Ih Fogoh” – o que ajudou a apresentação a ser uma das mais enérgicas do fim de semana. Homenagear Gal Costa, Letieres Leite e cair, de balaclava e batidão, dentro de uma rodinha bem-sucedida de bate-cabeça às 17 horas de um domingo não é para qualquer um.

Vandal / Foto de Rafael Passos

Os papos retos e as rimas cruas continuaram a dar o tom no show seguinte, protagonizado pela rapper trans Bixarte. Como uma líder religiosa extremamente desenvolta e de palavra fácil, a paraibana efetuou um passeio cheio de versatilidade por múltiplas sonoridades (dub, ragga, pop, rap, pontos de candomblé e pagodão baiano), alternando-o a interações potentes e bem humoradas com a plateia ou a discursos políticos – que visavam empoderar outras travestis, pretas e/ou pessoas de corpos considerados fora dos padrões impostos pela sociedade capitalista. Numa apresentação que valeu como uma lufada de vida abundante, destacaram-se “Àrólé” e “Assiste Meu Sucesso”.

Bixarte / Foto de Rafael Passos

Em muitos outros festivais ao redor do Brasil, escalar Ana Frango Elétrico para tocar depois de dois rappers poderia ser considerado temerário. Mas não no Radioca, visto que o seu público cativo é curioso e eclético – e parte considerável dele queria ver a primeira apresentação do elogiado “Little Electric Chicken Heart” (2019) em solo soteropolitano. A cantora fluminense não desapontou a plateia e entregou um show doce e cheio de energia, tal qual “Chocolate”, um dos pontos altos do início de noite. A banda, na qual se destacava o baterista Marcelo Callado, contribuiu para deixar o clima despojado e a conferir o suíngue e as texturas oníricas necessárias para os arranjos de “Promessas e Previsões”, “Se no Cinema” e “Mulher Homem Bicho”. Ainda rolou uma releitura interessante de “Ilegal, Imoral ou Engorda”, de Roberto e Erasmo Carlos, que casou com a voz rasgada de Ana.

Ana Frango Elétrico / Foto de Rafael Passos

Após a explosão de sons comandada pela artista fluminense, o compositor, cantor e pianista pernambucano Zé Manoel teria o desafio de sustentar um espetáculo sofisticado e calmíssimo, feito para salas de concerto, numa arena de festival – e foi bem-sucedido. Com sua voz mansa e fala baixinha, ele entrou numa frequência de delicadeza diferente do show anterior e amarrou o show com faixas de “Do Meu Coração Nu” (2020), como “História Antiga” e “Não Negue Ternura”, e honrou a banda formada por locais – Enio na guitarra, Fabricio Mota no baixo e Tedy Santana na bateria – com alguns clássicos locais, como “Me Abraça e Me Beija”, eternizada por Lazzo Matumbi, e releituras jazzísticas de sambas do Recôncavo e de faixas do É o Tchan (“Gererê”, “Dança do Bumbum” e “Quebradeira”).

Zé Manoel / Foto de Rafael Passos

O encontro entre erudito e popular antecipou a chegada de Mariana Aydar e de seu “arraiá fora de época” – repleto de releituras de hits, como “Medo Bobo”, de Maiara e Maraisa, “Triste, Louca ou Má”, de Francisco El Hombre, e “Morango do Nordeste”, de Lairton. Reencontrando o baião e o arrasta-pé, ritmos nordestinos que projetaram o seu início de carreira como cantora em banda de forró, a paulistana apresentou composições próprias, como “É o Fim do Mundo”, parceria com o pernambucano Barro, e versões contemporâneas de Luiz Gonzaga, Sivuca, Zé Ramalho e Dominguinhos (“Olha Pro Céu”, “Feira de Mangaio”, “Frevo Mulher” e “Lamento Sertanejo”), além de “Pedras Que Cantam” e “Espumas ao Vento”, popularizadas por Fagner.

Mariana Aydar / Foto de Rafael Passos

Mariana Aydar deixou a plateia aquecida para o show mais esperado de todo o festival: o de lançamento do álbum “Alto da Maravilha”, trabalho conjunto dos baianos Russo Passapusso e Antonio Carlos e Jocafi. O discaço, lançado na última semana, já estava na ponta da língua do público, o que tornou a sua apresentação ao vivo poderosa – mais do que já seria graças a uma produção requintada e diligente, com direito a uma big band formada por nomes como Curumin, Saulo Duarte, Ubiratan Marques, Icaro Sá e João Teoria.

Russo Passapusso e Antonio Carlos e Jocafi / Foto de Rafael Passos

A expectativa de show antológico se confirmou a partir dos primeiros minutos. À frente do BaianaSystem, Russo se tornou um dos maiores mestres de cerimônias da música contemporânea brasileira – posto ratificado a cada apresentação da banda, como a do início de novembro, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Ao lado dos veteranos Antonio Carlos e Jocafi, sua função era a de servir de ponte entre a dupla e um público majoritariamente jovem. Algo que, como fã confesso dos vanguardistas, exerceu com muito respeito e generosidade, não hesitando em ficar em segundo plano diversas vezes e direcionar os holofotes para os mais experientes companheiros de palco.

Russo Passapusso e Antonio Carlos e Jocafi / Foto de Rafael Passos

Com ares de culto ao melhor do samba-canção, do funk e das tradições musicais afrobaianas, a incrível apresentação foi esquentando com “Aperta o Pé”, “Alabá” e “Vapor de Cachoeira” e ganhou ares catárticos com “Mirê Mirê”, single do projeto lançado no fim de agosto. Outro momento emocionante se deu com “Catendê”, na voz de Curumin, já na reta final do show.

Russo Passapusso / Foto de Rafael Passos

Ainda houve tempo para resgatar boas canções de “Paraíso da Miragem” – álbum de Russo Passapusso que recebeu menos atenção do que o devido quando foi lançado, em 2014 – e de celebrar Antonio Carlos e Jocafi com dois de seus maiores sucessos: “Você Abusou” e “Glorioso Santo Antônio” foram entoados em uníssono pela Fábrica Cultural, como uma verdadeira oração. Um encerramento em grande estilo para um showzaço e os dois intensos dias de Radioca.

Foto de Rafael Passos

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. 

One thought on “Em sua sexta edição, o Festival Radioca mostrou a potência de um Nordeste diverso num altíssimo nível de grandes shows

  1. Belíssimo relato! Deu (muita) vontade de ter estado aí. E parabéns ao Radioca pela ótima escalação!

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