A Capa do Disco: Fleet Foxes e os “Provérbios Neerlandeses”, de Bruegel

texto por Luciano Ferreira

Há uma expressão popular muito conhecida que diz: “Não julgue um livro pela capa”. A frase serve como alerta para pré-julgamentos e pode ser usada também para discos. Quantas vezes a arte de capa de um disco, por si só, não foi motivo de afastamento por parte dos ouvintes? Seria até interessante um trabalho que avaliasse a influência da capa de um disco em sua aceitação/rejeição.

Dada a subjetividade da maneira como cada um enxerga uma capa – influenciada por aspectos até mesmo religiosos –, não são poucos os casos de artista s/ bandas que a obra sofreu algum tipo de preconceito simplesmente porque, por algum motivo, a capa não foi bem aceita pelo público, pela gravadora ou por lojistas. Um exemplo foi a capa de “Journal for a Plague Lovers”, do Manic Street Preachers, censurada por algumas redes de lojas, como observado nessa coluna.

Falamos em expressões populares porque é o motivo principal da capa do disco que comentaremos dessa vez, retornando ao trabalho de um artista do século XVI que ilustrou com uma outra obra famosa a capa de “Nheengatu”, dos Titãs (também dissecada aqui).

Um detalhe da pintura a óleo do artista renascentista flamengo Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), “Provérbios Neerlandeses” (Nederlandse Spreekwoorden, 1559, 117 x 163 cm, óleo sobre madeira, Gemälde Galerie, Berlim) ilustra a capa do homônimo álbum de estreia do Fleet Foxes, de 2008.

Também conhecida como “Die verkehrte Welt” (“O Mundo de Ponta Cabeça”) e “De Blauwe Huyck” (“O Manto Azul”), alguns ressaltam que mais que ilustrar provérbios, Bruegel buscou, com essa obra em particular, “catalogar a loucura humana”, retratando pessoas com características que o artista costumava usar para os tolos.

Nascido em 1563, Bruegel era bastante religioso, o que se reflete em suas pinturas. Algumas delas objetivavam funcionar como alertas para as pessoas sobre seus comportamentos, a partir dos preceitos bíblicos, para se absterem das atitudes pecaminosas. Uma de suas pinturas mais famosas, “A Torre de Babel”, tem como tema uma passagem bíblica do livro de Gênesis para falar da desobediência e ganância dos homens.

O artista é comumente comparado e citado por estudiosos como influenciado por outro artista do Renascentismo, o também holandês Jeroen van Aeken (1450-1516), mais conhecido como Hieronymus Bosch. A religião é um tema comum na obra de ambos, mas muitos observam que enquanto Bosch ilustrou obras até aterrorizantes, mostrando as consequências dos desvios das atitudes humanas dos preceitos bíblicos, as pinturas de Bruegel são uma espécie de alerta. É esse alerta que está explícito (ou não?) em “Provérbios Holandeses”.

Olhada de forma superficial, a pintura pode parecer ilustrar o cotidiano de uma aldeia medieval à beira de um rio; de perto é possível perceber que ela apresenta mais de 100 provérbios, expressões linguísticas e sentenças usuais à época do autor, algumas pouco conhecidas, outras usadas até hoje.

Cabe uma observação. Muitas das obras de Bruegel, o Velho, foram posteriormente copiadas por seu filho, Bruegel, o Jovem. No caso dos “Provérbios Holandeses”, estima-se que ele pintou pelo menos dezesseis cópias do quadro do pai, com diferenças entre os provérbios e também em outros pequenos detalhes.

Os historiadores de arte alemães Rose-Marie e Rainer Hagen catalogaram as expressões presentes em ‘Provérbios Neerlandeses” e seu significado. Seguem algumas:

– O telhado está coberto por tortas (pães) (reina a abundância/vive-se muito bem.);
– Casar debaixo da vassoura (sem a bênção da igreja);
– A vassoura está do lado de fora (os homens não estão em casa);
– Ele enxerga pelo meio dos dedos (Ele não observa direito, em todo o caso teria a necessidade disso);
– Ali está a faca pendurada (desafio);
– Eles têm um ao outro pelo nariz (eles se traem mutuamente);
– Os dados foram lançados (foi decidido);
– Ele caga para o mundo (pouco se lixando);
– O mundo de ponta cabeça (o contrário do que deveria ser);
– Passar a tesoura pelo olho (lucrar de maneira desonesta, ou ainda: olho por olho);
– Aos beijos, ela amarra até o diabo ao travesseiro (a teimosia vence até o diabo);
– Ele é um mordedor de postes (ele é um lisonjeador hipócrita);
– Armado até os dentes;
– A tesoura está pendurada do lado de fora (imagem figurada de ser explorado por preços muitos altos, roubo).

Conheça a lista completa de expressões presentes no quadro aqui. E para ver o quadro em tamanho ampliado e com maior riqueza de detalhes, além de um dos quadros pintados por seu filho, sugerimos este.

Lançado em junho de 2008 pela Sub Pop / Bella Union, o disco de estreia do Fleet Foxes tinha um prodígio Robin Pecknold (na época com apenas 22 anos) à frente da banda, mas assinando todas as composições. A formação era completada por Skyler Skjelset, Nicholas Peterson, Casey Wescott e Craig Curranem,. Antes da estreia, o quinteto havia lançado dois EP’s, “The Fleet Foxes” (2006) e “Sun Giant” (2008).

Em entrevista de 2008 ao Drownedinsound, Robin comentou sobre o conteúdo da pintura:

“Quando você vê aquela pintura pela primeira vez é muito bucólico, mas quando você olha mais de perto tem todas essas coisas realmente estranhas acontecendo, como caras defecando moedas no rio e pessoas pegando fogo, pessoas esculpindo uma ovelha viva, esse cara estranho que parece sentado nas raízes de uma árvore com um cachorro. Há todas essas coisas realmente estranhas acontecendo. Eu gostei que a primeira impressão é que é apenas bonito, mas depois você percebe que a cena é um caos estranho. Eu gosto do fato de você não realmente entender o que é, que sua primeira impressão está errada”.

Em uma outra entrevista, de 2009 à Revista Mojo, Pecknold explicou como a pintura acabou na capa:

“Estávamos tentando descobrir o que queríamos fazer, e meu irmão estava trabalhando em algumas coisas, quando vi aquela pintura de Bruegel em um livro que minha namorada tinha. Eu gostei porque tinha um significado realmente intrigante, como se houvesse uma história para cada pequena cena. O que eu achei apropriado para aquele disco denso, mas unificado, não uma colagem nem nada. E eu gostei do estilo ‘Onde está Wally?’, que era algo que você poderia olhar por um longo tempo em uma capa de vinil e encontrar novas coisinhas. Foi muito fácil conseguir a aprovação do museu em Berlim”.

Disco de arranjos bucólicos e ambientações ricas em melodias e instrumentação, capa cheia de história, a arte ficou em primeiro lugar na votação da premiação Best Art Vinyl Award, organizada desde 2005 pelo site Artvinyl.com. O “pódio” foi completado por “Slime And Reason”, do Roots Manuva, em segundo lugar, e ‘Viva La Vida Or Death And All His Friends’, do Coldplay, que ficou em terceiro. Outros feitos do álbum: entrou no livro “1001 Álbuns para Ouvir Antes de Morrer” e também na lista de melhores álbuns da década, feita pela revista Rolling Stone, além de entrar na lista de melhores do ano de diversas publicações.

É importante ressaltar que as capas dos álbuns posteriores do Fleet Foxes mostram um cuidado apurado na escolha das imagens, sempre belíssimas, como a de “Shore”, último álbum de inéditas lançado pelo grupo.

Uma curiosidade a mais: no mesmo ano de 2008, a banda Titus Andronicus citou o artista em uma faixa de seu álbum ‘The Airing of Grievances’, “Upon Viewing Brueghel’s Landscape with the Fall of Icarus”, em referência ao quadro ‘Paisagem com a Queda de Ícaro’, também de Bruegel.

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 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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