texto por Alexandre Biciati e Bruno Lisboa
fotos de Alexandre Biciati
Após edição do Festival Sensacional 2022, que foi um dos eventos mais impecáveis do ano em Belo Horizonte até o momento, a capital mineira recebeu uma extensão do evento batizada de “Sensacional Celebra” no anfiteatro do Mineirão. No line up, Mayra Andrade e Gilberto Gil, que após se apresentarem no Coala Festival 2022, em São Paulo, promoveram uma festa bonita, “de chorar”, para um público misto que ocupou boa parte dos três espaços comercializados, apesar da noite fria de domingo. A decoração do palco, muito bem ornamentada com plantas e estrelas em led, contribuiu para o clima agradável e funcionou muito bem para ambas as apresentações.
Fruto da geração de cantoras que debutaram neste século, a cubana (radicada na infância em Cabo Verde) Mayra Andrade viu, gradualmente, sua carreira rumar ao estrelato. Com cinco discos lançados, seu trabalho mais recente, “Manga” (2019), tem colhido elogios mundo afora e tem sido o fio condutor da atual turnê. Cidadã do mundo, Mayra promove um diálogo entre aquilo que costumou-se chamar “world music” e a estética da cultura hip hop, com letras de cunho político e em ode ao amor cantadas em vários idiomas. Tais atributos fazem com que sua apresentação seja um convite à dança e à reflexão.
O público respondeu muito bem ao show e cantou junto com Mayra que também se comunicou bastante e soube inflamar a pista. Se por um lado o público era heterogêneo no perfil etário, no âmbito político era majoritariamente esquerdista. A presença de símbolos progressistas de toda ordem e os cantos muitas vezes entoados em apoio à Lula estavam em perfeita sintonia com o show de Mayra que demonstrou apoio às manifestações.
Grávida, Mayra fez questão de exibir a barriga com orgulho. Em um dos momentos mais belos da noite, assim como fez em seus dois shows em São Paulo (ela se apresentou na quarta dividindo a noite com Rodrigo Amarante e depois na sexta dentro do Coala Festival), a cantora dedicou “Vapor Di Imigrason” a todos os imigrantes que sofrem as mazelas de um mundo imerso em xenofobia. A faixa “Lua”, presente em seu primeiro disco “Navega” (2006), encerrou a apresentação de forma quente.
Nos intervalos, a discotecagem ficou a cargo de festas tradicionais e muito queridas dos belo-horizontinos que têm o disco de vinil como material de trabalho. As pickups foram comandadas pela equipe Sexta Básica com JJBZ, Thiagão, Yuga e Fael e pela Geleia Geral com Naroca e Luiz Valente (na foto abaixo). A missão de manter o público aquecido foi cumprida com sobra. E, assim como no show anterior, quem anunciou Gilberto Gil foi a candidata a Deputada Federal Célia Xakriabá.
Para usar um jargão do futebol, Gil entrou em campo, precisamente às 20h30min, para um jogo no qual a vitória estava encaminhada. Sua longa e consistente trajetória na música brasileira e legado construído ao longo da carreira artística (e política) já eram uma garantia disso, mas a noite culminaria numa recepção tão intensa que só pode ser traduzida por um velho conhecido do estádio Mineirão: a emoção.
Para a turnê “Gil in Concert”, o músico tem seu núcleo familiar como apoio. A banda é formada por João Gil (violão e baixo), José Gil (bateria e percussão) – integrantes da Gilsons – mais Bem Gil (violão e guitarra) e Flor Gil (teclados e vocais). A presença do quarteto, carregado de uma intimidade que extrapola as relações naturais de uma banda convencional, fez com que a apresentação ganhasse em vitalidade, valorizando ainda mais os arranjos originais.
Entre canções acústicas e elétricas, o set foi dividido em dois blocos nos quais o cantor perpassou diversas fases de sua essencial discografia, mas com atenção especial ao repertório construído no século passado, entre os anos 60 e 90. Gil, que trajava um sóbrio figurino em tom cru, começou o show ao violão sentado à frente do palco. Esbanjando carisma, o cantor constantemente agradecia a presença do público que o ovacionava aos gritos de “Gil, eu te amo!”. No intervalo das canções o músico aproveitava para contar histórias de bastidores de cada composição, como em “Back in Bahia”: “Essa música compus no exílio, quando Caetano e eu moramos em Londres. Fomos expulsos pelo governo daquela época”, introduziu.
Diferentemente da apresentação realizada no Coala Festival, o público mineiro foi agraciado com um show de maior duração. De seu próprio repertório vieram pérolas como “Viramundo”, presente no primeiro álbum (1967), “Louvação” e o hit “Estrela” do álbum “Quanta” (1997). Na ala das surpresas, figurou a interpretação de “Upa Neguinho”, de Edu Lobo, que ele nunca registrou em disco, mas pode ser encontrada no Youtube em uma versão dele com a cantora Iza.
Ponto de atenção do show foi também o protagonismo dado a Flor, neta de 14 anos de Gil, que brilha com sua doce voz em duetos com o avô, assumindo faixas importantes como “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim, e “Norte da Saudade”, do álbum “Refavela” (1977). Durante a sequência final, Gil já empunhava suas guitarras elétricas para o cover “Stir It Up”, de Bob Marley; “Vamos Fugir” e “Tempo Rei”, ambas retiradas do álbum “Raça Humana” (1984); “Madalena”, do disco “Parabólicacamará” (1992) e “Toda Menina Baiana” de “Realce” (1979) que encerram um show que ficará marcado no coração de quem teve a sorte de estar presente. “Vocês são sensacionais!”, concluiu o tropicalista.
Mayra Andrade e Gilberto Gil fizeram shows sem ressalvas para um público completamente entregue que foi levado, literalmente, às lágrimas. A única lamentação ouvida pós-evento foi dos cantores não terem dividido uma música sequer. Isso diz da expectativa do público, mas diz também do acerto na escolha de artistas que têm muito em comum: uma identidade cosmopolita, um espírito antropofágico e um olhar atento ao seu tempo. Mayra e Gil demonstraram no palco serem muito mais que músicos munidos de ótimas canções. Mayra foi força; Gil, entidade.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. Alexandre Biciati é fotógrafo: www.alexandrebiciati.com.