Séries: “Peaky Blinders” chega ao fim e a estrada foi pavimentada por música, de Nick Cave a Patti Smith, de Bowie a The Smile

por Kaluan Bernardo

Há uma música de 1994 que te convida a andar pelas beiradas de uma cidade, próxima aos trilhos de trem e vãos de viadutos. É um lugar perigoso, cheio de segredos, onde você encontrará um homem alto e bonito, com uma capa preta. Ele é uma espécie de Fausto, que consegue o que você quiser, mas que aparecerá tanto nos seus sonhos quanto em seus pesadelos.

O homem desta música tem uma “mão direita vermelha”, uma referência à vingança divina descrita no poema “Paraíso Perdido”, de John Milton. A canção, “Red Right Hand”, é de Nick Cave e seus Bad Seeds e já foi regravada por inúmeros artistas além de ter aparecido em filmes como “Pânico” e “Hellboy” e em séries como “Arquivo X”.

Mas, quando é tocada nos primeiros minutos de “Peaky Blinders” (2013/2021), ao acompanhar o misterioso Tommy Shelby montado em um cavalo negro, andando pelas ruas sujas de Birmingham, em 1919, ela parece ter sido feita para aquele personagem. O gângster britânico é a representação perfeita do homem dúbio, misterioso, poderoso, determinado e vingativo cantado por Nick Cave.

Não por acaso, rapidamente a canção se tornou tema da série, que chamou artistas do calibre de PJ Harvey, Laura Marling, Iggy Pop, Jarvis Cocker e Snopp Dogg para a regravarem, sempre adicionando uma nova camada simbólica à melodia conforme acompanhamos a trajetória de Tommy Shelby.

Mas é na sexta e derradeira temporada de Peaky Blinders que ouvimos uma das versões mais pesarosas e tristes de “Red Right Hand”. A nova versão, de Patti Smith, acompanha um Tommy Shelby que, após ser destruído por dentro, tentou ser um homem melhor – mas percebeu que seu destino é ser uma ferramenta implacável de vingança. Ele pode tudo, menos ser feliz.

Este é só um dos vários exemplos de como “Peaky Blinders” utiliza músicas para contar suas histórias.

Tristeza, porrada e uísque

Uma boa trama de gangsters exige uma boa dose de violência. E com “Peaky Blinders”, a violência é sempre embalada por uma trilha sonora à altura.

Há um ótimo momento de pancadaria, por exemplo, ao som de “Never Fight a Man With a Perm”, dos Idles, que mostra a tensão de uma guerra não anunciada entre os Shelby e Oswald Mosley, notório fascista britânico que se torna o grande antagonista de Tommy.

Outra banda que dá o ar das graças em várias cenas de pancadaria e aparece nove vezes na série é o Arctic Monkeys. Mas uma das mais interessantes aparições dos ingleses é quando eles emprestam “Do I Wanna Know”, do multiplatinado “AM” (2013) para ilustrar um momento em que Tommy Shelby traz para a família Michael, seu primo perdido que se tornará um Judas na temporada final. O título da música já era um foreshadowing do que veríamos.

Tanto Tommy quanto seu irmão mais velho, Arthur Shelby, foram enviados à França para lutar a Primeira Guerra Mundial. Arthur, no entanto, teve menos suporte emocional do que Tommy e vai definhando mentalmente ao longo das temporadas. Ele é a face mais violenta, tosca e agressiva de Tommy, que o compreende perfeitamente.

As pancadarias estreladas por Arthur não são apenas explosões de testosterona, são tristes. São a expressão máxima de um homem com estresse pós-traumático. É por isso que, em uma dessas cenas, quando toca “Devil Inside Me” de Frank Carter & The Rattlesnakes, há uma catarse. A letra, mais uma vez, parece ter sido feita para o personagem.

Um notório fã de Peaky Blinders era David Bowie, que chegou até a receber a icônica boina da família Shelby como presente do ator Cillian Murphy, que dá a vida a Tommy. Bowie havia dito que gostaria muito que uma música sua aparecesse na trilha sonora e chegou a enviar faixas de seu último disco, “Blackstar”, para a produção.

Infelizmente, Bowie morreu antes de ver seu desejo atendido. No entanto, seja onde estiver, o camaleão deve ter sorrido muito ao ver “Lazarus” em uma das mais belas cenas no quinto episódio da terceira temporada.

A canção tem uma excelente letra autobiográfica, com Bowie deixando suas últimas reflexões antes de partir. No clipe, o cantor está na cama, cantando sobre cicatrizes e falando sobre estados alterados de consciência. Em “Peaky Blinders”, ela toca quando Tommy Shelby está na cama… do hospital. Ele acabou de sofrer traumatismo craniano, está tomando morfina e refletindo sobre suas cicatrizes de guerra. O espelhamento é excelente.

Encerramentos de ciclo

Há várias metáforas de fechamento de ciclo no episódio final da sexta temporada de “Peaky Blinders”.

Ao longo da temporada, Tommy acredita que tem uma doença terminal e se dedica a deixar tudo bem para sua família antes de se suicidar. No instante final, tem uma visão mística e descobre que tudo era uma mentira de seu médico. Ainda assim, morre metaforicamente.

Antes da visão, no entanto, enquanto preparava o suicídio, Tommy deixa seus itens e memórias importantes em uma caravana, que acaba incendiada. Com o passado destruído, finalmente é um homem livre de seus traumas, pronto para cumprir sua missão. É purificado pelo fogo e sai em seu cavalo branco.

Nestes momentos, ouvimos “Pana-Vision”, música lançada em 2022 no álbum de estreia de The Smile, a nova banda de Thom Yorke e Jonny Greenwood. A canção fala, justamente, do renascimento de um homem, que está vendo a verdade pela primeira vez. Destaco os trechos:

A view that is so wide
It’s gonna break
It’s like it holds me in its gaze
If I go, it’s because
It’s happened once before
And now it’s starting all again
As it opens wide
Forget everything you knew
Forget everything you knew
As it opens wide
Like a new born child
Like a new born child
Like a new born child
Like a child
A child

e

My eyes are open wide
And then I see you
Without your robes on
Without your crown
And I don’t want to hate you
I don’t want to bear
The kind of fascination
That gets in my way

A letra narra tão bem o que acontece, que a impressão que se dá é que ela foi sob encomenda para aquela cena. Não é o caso, mas é impressionante esse casamento. É quase como a sensação de ouvir “Dark Side of The Moon” sincronizado com “O Mágico de Oz” (ou “Kid A” com “A Bruxa de Blair”).

Esta, no entanto, não é a última canção no fechamento da série. Na última vez que vemos Tommy Shelby, ele sai montado em um cavalo branco (em contraste ao cavalo negro da primeira cena da primeira temporada). E então ouvimos “All the Tired Horses”, de Bob Dylan, na voz de Lisa O’Neill.

A música é do álbum “Self Portrait”, um disco de quando Dylan estava bem de saco cheio de tudo. Nela, há apenas dois versos (e sem a voz dele): “All the tired horses in the sun / How am I supposed to get any writing done?”.

Combina bem com um personagem tão machucado como Tommy Shelby, mas há uma camada ainda mais óbvia para quem assiste a série. Acontece que a família Shelby fez seu império com… apostas de cavalos.

De seu cavalo cansado, Tommy Shelby voltará mais uma vez, em um longa-metragem, para lutar contra o fascismo. Esperamos boas músicas para contar essa a história.

– Kaluan Bernardo (@Kaluan_) é jornalista e product manager no Terra

One thought on “Séries: “Peaky Blinders” chega ao fim e a estrada foi pavimentada por música, de Nick Cave a Patti Smith, de Bowie a The Smile

  1. Interessante essa leitura. Ainda considero que Sons of Anarchy é a série que melhor explora a questão da trilha sonora em relação a cenas e personagens. A música caminha junto com a série o tempo todo.

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