Entrevista – Em nome do pai, do filho e da música que toca o espírito: Amenra!

entrevista por Homero Pivotto Jr.

Há quem acredite em figuras divinas de poder onipresente e onisciente. E existem, também, aqueles que creem na música como refúgio sagrado em meio ao inferno no qual padecemos. É entre seguidores desse segundo grupo que o Amenra costuma angariar fieis. A mensagem do quinteto belga de sludge/post-metal não demanda templo para ser propagada. Faz mais sentido quando toca consciências alheias independentemente de onde estiverem. Ou quando reverbera ao vivo em espaços de pequeno ou médio porte onde se pode comungar do peso e da visceralidade musical ao lado pessoas, supostamente, com afinidades em comum.

O som do Amenra promove estranheza e incredulidade em alguns, tão intensa é a força da massa sonora que emana. Em outros, opera autorreflexão guiada não por orações, mas por composições que soam como exorcismos de dramas pessoais com capacidade para se tornarem coletivos.

A proposta do conjunto, desde o começo, em 1999, sempre foi criar essa aura de congregação, de entrega e conexão com o próximo. Como se vê em igrejas. Não por acaso todos os seis álbuns da discografia oficial de estúdio foram batizados como “Mass” (missa, em tradução livre) mais a numeração cronológica de cada registro.

À frente do ritual está o vocalista Colin H. van Eeckhout. Diferentemente dos pregadores tradicionais, ele não faz sermões miraculosos ou de salvação com base na má-fé. O que a voz de CHVE evoca cantando, ou na maioria das vezes gritando como quem é crucificado pelas provações mundanas, é a existência da dor. Só que de uma forma abstratamente reparadora, como um depoimento de superação narrado a plenos pulmões no altar da vida pública.

Ao lado dele no ofício estão Mathieu J. Vandekerckhove (guitarra), Bjorn J. Lebon (bateria), Lennart Bossu (guitarra) e Levy Seynaeve (baixo). São eles que dão suporte ao “ritual de limpeza”, seguindo o próprio CHVE, que prega o Amenra. Consultamos o vocalista por e-mail para compreender melhor a liturgia da banda, a dor como força criativa, a paternidade em meio à treva e sobre o coletivo Church of Ra.

O trabalho mais recente do grupo, “Mass VI” (2017), foi lançado no Brasil recentemente pela Xaninho Discos.

Embora já existisse uma identidade nos dois primeiros discos, a impressão é de que foi a partir do “Mass III” que o Amenra realmente começou a mostrar sua própria musicalidade. Poderia nos contar sobre como a banda transitou de um estilo mais puxado para o metal com toques de hardcore (lembrando nomes como Converge dos anos 1990, talvez) para esse intenso sludge / pós-metal tipo Neurosis?
Não faço ideia. O Converge foi uma das primeiras influências, obviamente, ao lado de bandas como Botch, Disembodies, Breach etc. Então, nomes como Crowbar, Neurosis e Isis chamaram nossa atenção um pouco mais e, lentamente, se tornaram uma grande parte do que fazíamos e ainda estamos fazendo. Há momentos em que as bandas se inspiram ou dão uma reviravolta. Acho que ver o Neurosis tocar ao vivo nos anos 1990 foi uma situação dessas.

Qual foi o background do Amenra na música? Vocês vieram do hardcore ou do metal? Ou ambos?
Viemos de uma cena mais orientada ao hardcore chamada de H8000, de Flandres (Bélgica). Boa parte era hardcore puro e lentamente o metal começou a entrar, com bandas como Integrity e Ringworm influenciando quem fazia parte da cena local. Lennart (guitarra) sempre demonstrou maior apreço pelo metal do que o resto de nós. Enquanto eu, Mathieu (guitarra) e Kristof (ex-baixista) gostávamos do velho screamo do início dos anos 90. Bjorn, nosso baterista, era mais chegado em punk do que nós. Então creio que somos um produto entre quaisquer que sejam os tipos de hardcore / punk e metal, se eu tivesse que limitar nosso som assim.

Por que chamar quase todos os álbuns de “Mass” (missa) mais o número do trabalho na discografia do Amenra? Sempre houve a intenção de que sua música funcionasse como um ritual ou encontro de congregação — no sentido de entrega e comunhão entre a banda e o ouvinte?
Sim, havia a intenção de os álbuns e os shows serem uma espécie de momento de autorreflexão, como se fossem missas na igreja. Parecia apenas uma comparação lógica para nós. Músicas como orações enviadas aos céus ou ao mundo. Você encontra pessoas com a mesma mentalidade em um show também. Rituais de limpeza, talvez.

Falando nisso: não diria religioso, mas sua música parece transmitir algum tipo de inquietação espiritual. Isso faz sentido?
Nossa música e eu, como ser humano, poderiam ser descritos como sendo espirituais sim. Às vezes, algo intangível, indescritível é sentido.

Como você descreveria o processo de composição do Amenra? E as letras: costuma escrevê-las depois de ouvir o instrumental e meio que sente as palavras fluindo ou as coloca no papel e passa para a banda começar a compor algo que possa traduzir seus pensamentos em música?
As músicas nunca são escritas com palavras como ponto de partida. A música é escrita, ou partes dela, principalmente pelas guitarras. Então, lentamente são montadas no ensaio, com muito pensamento e conversa até terminarmos algo em que todos acreditam, ou pelo menos a maioria de nós. Escrevo continuamente em meus livros, e os mantenho e os carrego comigo. Ouço um zilhão de vezes os trechos já escritos, ou as canções, para ver se a estrutura está lá. Então, espero até que minha voz interna comece a cantar. Logo, as palavras vêm até mim e, em seguida, pego minhas anotações e procuro quais dessas palavras são as mais adequadas e onde colocá-las.

Os álbuns do Amenra são cheios de músicas intensas e pesadas (de uma forma abstrata), mas as apresentações ao vivo parecem ainda mais catárticas. Por quanto tempo você acha que será possível manter essa performance física e, por que não, teatral? Essa presença vívida e de entrega cobra algum preço no seu corpo?
Vamos subir até cair. Simples. Lógica da vida. Continuaremos até o fim. Em qualquer forma possível. E isso cobra seu preço em mim, sim.

Pelo menos para mim, ouvir Amenra é uma espécie de liberação de raiva ou exorcismo de desespero. Como é para você? Como se conectar com suas próprias composições ao ouvi-las e ao tocá-las ao vivo?
É sobre como lidar com a frustração ou desesperança, desespero. Encontrar esperança e lutar contra esses sentimentos, superando-os. Quase não penso em raiva quando performo. Simplesmente volto ao período em que escrevi as palavras e quando elas significaram mais para mim.

O Amenra funciona bem não apenas como uma banda eletrificada, mas também acústica. O que acreditam que os fazem transitar tão bem entre esses dois formatos?
Nós apenas fazemos, é natural para nós. É tudo sobre como contar nossa história completa, em seu espectro emocional como um todo.

Faço uma série de entrevistas na qual converso com músicos sobre paternidade e som. Chama-se O Ben para todo mal (uma homenagem ao meu filho Benjamin) e espero poder falar com você um dia mais sobre este tópico para o projeto. Por ora, gostaria de saber como o diagnóstico de um tumor cerebral em um de seus dois filhos teve impacto na “Mass VI”. “Diaken”, a faixa de encerramento do álbum, tem a ver com isso?
Isso teve um impacto muito grande em mim e na minha escrita. Eu quase não escrevo sobre uma situação específica. Escrevo sobre uma certa esfera, um sentimento em geral. Escrevo sobre como me sinto em um determinado período, sobre alguma determinada situação. Não costuma haver uma história específica associada a uma música, na maioria dos casos. Obviamente o diagnóstico do meu filho colocou uma treva sobre tudo o que eu fazia naquela época, então todo o meu ser e fazer foram influenciados pelo meu desamparo. Mas há mais situações que pesaram. Nosso baterista, por exemplo, a maior parte da vida do cara naquele período girou em torno do falecimento da mãe. Nosso então baixista estava em uma crise existencial, e assim por diante. Todo mundo tem um fardo para carregar. Tento abstrair / deduzir para uma imagem universal, ou metáfora, para que cada ouvinte possa se conectar com a essência do meu apelo. Cada canção tem seu significado indefinido. “Diaken” é sobre estar perdido, por exemplo, estar sozinho e desejar ser abraçado. É sobre buscar refúgio. É sobre cuidado. A necessidade de ser cuidado, amparado. Sobre a responsabilidade de ter que cuidar. Tem muito sobre o vínculo pai e filho, seja eu como um pai em relação ao meu filho, ou eu como uma criança perante meu pai ou mãe. “A Solitary Reign” é mais sobre a situação de Bjorn naquela época, a perda de sua mãe. “Children of the Eye” tem um trecho, por exemplo, que aborda a questão do câncer. Perdi parte da família para a doença, e aí meu filho teve o mesmo diagnóstico.

“One tear at a time
You are a threat to mine
Flood trenches
Dredge remnants of my past
Wash away my longing for me to be the last”

(em tradução livre:
“Uma lágrima de cada vez
Você é uma ameaça para mim
Valas de inundação
Draga resquícios do meu passado
Limpe minha ânsia de ser o último”).

Você acha que existem paralelos entre ser pai e cantor?
Não acho que ser pai tenha algo a ver com ser vocalista. Acho que é uma característica minha como ser humano ser responsável em qualquer função que eu tenha, seja ela de pai, de cantor, de amigo ou o que for. Sei que para algumas pessoas tenho uma função exemplar. Então, há quem possa levar minhas palavras a sério, lê-las e analisá-las. Quero que as músicas em que participo inspirem e elevem, quero que elas sejam capazes de curar as pessoas. É tudo uma questão de cuidado. É sobre o coração.

E a decisão de tirar os mamilos tem a ver com tornar-se pai, já que esta parte do corpo é um símbolo de nutrição? É sua intenção dá-los a seus filhos como herança?
Sim.

Nota do autor: Sobre a questão de tirar uma parte do corpo, Colin revelou, em 2017, ao site The Toilet ov Hell, em 2017: “(…) Sou pai há seis anos e não sou o tipo de cara que pensa em masculino ou feminino, temos ambos os sexos ao nascer, mas os mamilos são algo que os homens levam com eles, mas não têm uma função. Para mim, faz sentido me concentrar na questão de ser pai, na coisa do alfa. Faço uma construção na minha cabeça de que devo fazer isso. É como fazer uma escultura — por que você faz assim? Você não pode explicar, é uma coisa abstrata”.

Para finalizar: você pode nos situar sobre a Church of Ra? Como surgiu o coletivo, quais bandas fazem parte e o que vocês, como reunião de pessoas, estão fazendo atualmente?
Não me referiria ao nosso coletivo como uma assembleia de bandas. Outras pessoas de fora já fazem isso há muito tempo. COR é uma reunião de amigos e pessoas com ideias semelhantes que se ajudam mutuamente na criação do que existe hoje e que passou a levar uma vida por conta própria. Estou falando sobre nossa equipe, por exemplo, que nunca costuma ser mencionada. Entre eles, Hein Devos, que na verdade é um membro da banda, precisamos de suas habilidades incríveis para som ao vivo, para ser a banda que somos hoje. Stefaan Temmerman, que está na estrada conosco há anos, apagando incêndios quando necessário, nos ajudando de todas as maneiras possíveis. Ele, entre outros, foi responsável por ajudar a criar o mundo monocromático do Amenra que as pessoas conhecem hoje. Jens Vranckx, que faz nossa parte visual ao vivo, movimenta projetores midiboards e computadores. Philip, cujo compromisso incondicional é de outro mundo. Enfim… Amigos acima de tudo. Designers gráficos, videoartistas, ilustradores, escultores e assim por diante. A lista não para.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.

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