Hiran brilha ao lado de Kiko Dinucci, Jussara Marçal e Josyara em celebração a Iemanjá

Texto e fotos por Nelson Oliveira

Dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá. Eternizada no cancioneiro popular do Brasil, esta data é uma das mais nobres de todo o calendário de verão em Salvador e é famosa por reunir no Rio Vermelho as celebrações religiosas e os festejos profanos. Os muitos bares, restaurantes e casas de show do bairro promovem eventos musicais para saudarem a Rainha do Mar e, nesse contexto, um deles se destaca sobre os demais: é o Festival Oferendas, que acontece há nove anos e é realizado pela Lálá Casa de Arte.

A edição 2020 do festival se dividiu entre os dias 1º e 2 de fevereiro e contou com 21 apresentações. Para preencher a extensa programação, o curador artístico do Lálá, Luiz Ricardo Dantas escalou figurinhas carimbadas que fazem questão de visitar Salvador para homenagear a orixá (os paulistas Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Iara Rennó), nomes da excelente safra recente da música baiana (Jadsa Castro, Márcia Castro, Hiran, DiCerqueira, Josyara e Nara Couto), o projeto Odoyá Experience (BA/EUA) e os estreantes Héloa (SE), Felipe Cordeiro (PA) e Barro (PE). O festival também teria a participação dos baianos Giovani Cidreira e Majur, mas imprevistos pessoais fizeram com que ambos tivessem de cancelar suas idas ao Lálá.

O line-up recheadíssimo do Oferendas ainda teve um grande número de DJs soteropolitanos, como Ubunto, Catsamps, Camilo Fróes, Riffs, Jerônimo Sodré, Grace Kelly e Béco Dranoff, e de outros lugares – Tutu Moraes (SP), Lorena Calábria (RJ), Mozaum (PE), Patricktor4 (PE) e Analog Africa (Tunísia). Todos os shows e dj sets eram gratuitos e aconteciam num palco montado na varanda, voltado para a rua, mas o Lálá cobrava um ingresso colaborativo para aqueles que desejassem ter acesso à casa, no intuito de poder arcar com os custos do evento, que não conta com patrocínio de empresas.

Como de costume, a celebração na praia do Rio Vermelho começou na noite do dia 1º de fevereiro, com cinco shows e dj sets nos intervalos – todos com duração de 40 a 50 minutos. O Oferendas começou às 22 horas, com a virtuosa e duradoura parceria entre Juçara Marçal e Kiko Dinucci, que fizeram o show do disco “Padê”, lançado em 2008.

Kiko Dinucci e Juçara Marçal

A religiosidade afrobrasileira que marca a carreira dos integrantes do Metá Metá era a forma mais adequada e respeitosa de dar o pontapé inicial às homenagens a Janaína e trazer outros orixás e figuras do sincretismo à baila, como as representadas em “São Jorge”, “Atotô”, “Machado de Xangô” e “Cabocla Jurema”. Entre a perfeição técnica do violão de Dinucci e da voz de Juçara, foi o magnetismo da cantora que voltou a controlar – como em outras festas de Iemanjá – um público grande, que poderia se dispersar num ambiente aberto e de festa popular, geralmente avesso a uma apresentação de voz e violão. Mas não foi o que aconteceu: os presentes ficaram vidrados no que ocorria na acanhada varanda do Lálá e cantaram junto com a fluminense radicada em São Paulo.

Odoyá Experience

Em sequência à apresentação de “Padê”, foi a vez do Odoyá Experience, projeto baiano-ianque que se reúne apenas para live sessions na festa de Iemanjá. Comandado por Edbrass Brasil e participações de Vinicius Mangaio e Junix, o grupo faz um som experimental que capturou o público ao dar destaque para instrumentos de sopro e improvisações.

Jadsa Castro

Kiko Dinucci voltaria ao palco para participar do terceiro show da primeira noite do Oferendas: tocou violão em duas músicas da apresentação de Jadsa Castro, que ainda teve João Meirelles (BaianaSystem) nos synths. A cantora, que lançou o EP “Godê” em 2015, está prestes a divulgar um trabalho completo, que deve incluir alguns singles liberados em plataformas digitais, como “Lian”. A bela canção, em que cita diretamente Luiza Lian, foi o ponto alto de um show mais intimista, que acabou atrapalhado pelo som de alguns cortejos que levavam oferendas para Oxum aos barcos atracados na praia.

Héloa

O penúltimo show do sábado foi da sergipana Héloa, que contou com banda formada por dois atuantes músicos baianos: DJ Raiz nas programações e Felipe Guedes na guitarra. A cantora fez uma versão reduzida do espetáculo do álbum “Opará” (2019), no qual integra sobretudo o samba duro e de terreiro (além do forró pé de serra) a uma estética afrofuturista, alternando momentos mais reflexivos e contemplativos a outros mais dançantes.

À meia-noite em ponto, quando os fogos anunciavam a saída dos barcos para a saudação a Oxum – que, na tradição do candomblé, antecede Iemanjá, por ser a orixá das águas doces –, Héloa entrou em cena com “Mamãe Oxum”, uma das melhores canções de seu trabalho mais recente. Além disso, animou um público que cultivou em suas últimas vindas à Bahia com “Silêncio”, “La Tempo” e a sensualidade de “Agô”.

Felipe Cordeiro e Marcia Castro

A apresentação certeira de Héloa ajudou a deixar o público ainda mais no clima adequado para a saideira do primeiro dia de shows, que já ia madrugada adentro. Habituée do Oferendas, Márcia Castro convidava o paraense Felipe Cordeiro para uma apresentação em clima de pré-carnaval, na qual mostrava o seu potencial de experiente puxadora de trios elétricos em Salvador – honrando o nome de suas xarás Márcia Short e Márcia Freire, ícones da folia baiana como vocalistas da Banda Mel e da Cheiro de Amor, respectivamente.

Felipe Cordeiro

No Lálá, tanto Márcia Castro quanto Felipe Cordeiro deixariam seus repertórios quase que inteiramente de lado para cantarem clássicos da axé music e do samba reggae, como “Rebentão”, “Faraó (Divindade do Egito)”, “Alfabeto do Negão”, “Protesto Olodum”, “Brilho de Beleza”, “Força do Ilê Aiyê” e “Selva Branca”. Por fim, a dupla deixou os anos 80 e 90 para retornarem ao presente e fazerem uma versão de “Lucro: Descomprimindo”, hit do BaianaSystem, e apresentarem seus maiores sucessos: “Frevo (Pecadinho)” e “Problema Seu”.

Após uma noite de merecido descanso e da tradicional alvorada na praia do Rio Vermelho, o Oferendas retomou suas atividades no início da tarde de domingo. O primeiro show do 2 de fevereiro calhou de ser um dos melhores de todo o festival e marcou a ascensão de dois artistas que vem derrubando barreiras sem cerimônias.

Hiran

Hiran era a atração principal e fez uma das apresentações mais sólidas desde que lançou o ótimo “Tem Mana no Rap”, em 2018. O rapper, que é gay, negro e do interior da Bahia, tem denunciado o preconceito de parte da cena de hip hop local, que ainda não oferece generosas oportunidades a pessoas LGBTQIA+. O jovem cantor de Alagoinhas parece cada vez mais consciente do lugar que ocupa e do destaque que tem conseguido: seguro e com um flow mais caprichado, arrebentou com as performances na track que dá título a seu disco e também em “Careta”, “Baile de Ideia”, “Démodé” e “Muda”.

DiCerqueira

O rapper ainda teve a generosidade de quebrar o protocolo e convidar DiCerqueira, cuja apresentação não estava prevista. Assim como Hiran, DiCerqueira é rapper, negro, homossexual e está em ascensão: foi premiado como melhor intérprete no festival da Educadora FM, com “Grandeza” e vem ganhando espaço com um pagorap bastante político e dançante, bem representado por “Desprezível”. Os dois, pela potência e homegeneidade performática, acabaram ofuscando o pernambucano Barro, que teve uma participação curta, com destaque para “Tolerância Zero” – composição sua e de Felipe Cordeiro, já gravada por Hiran com Romero Ferro.

Barro

No meio da tarde, horário mais movimentado do dia 2 de fevereiro, seria a hora de Josyara entrar no palco para mostrar sua mansa fúria – com uma participação discreta de Iara Rennó. O show acabou atrasando uma hora porque um dos músicos acabou ficando preso no engarrafamento causado pela interdição no trânsito, mas uma leve alteração na programação deixou tudo certo. Dessa forma, por volta das 16 horas, a juazeirense deu início a um espetáculo permeado pela frugalidade de canções como “Rota de Colisão” e com as pinceladas de religiosidade de “Iara Correnteza” e “Nanã”.

Josyara

Para encerrar a saga de shows do Oferendas, o festival deu espaço para Nara Couto, cantora oriunda de Pojuca, a mais afastada das cidades da região metropolitana de Salvador. Filha de santo, Nara fez um show belíssimo, no qual (se) emocionou com “Brilho do Mar”, canção feita em homenagem a Iemanjá e destaque máximo de seu repertório – mais do que “Linda e Preta”, composição de Jarbas Bittencourt, que, com sua voz afinadíssima, faz sucesso na cidade.

A escolha de Nara Couto – embalada pelo trompete de Mateus Aleluia Filho, prole do tincoã Mateus Aleluia – como último show do festival foi uma tacada de mestre da curadoria do Oferendas. A genuína emoção da cantora frente a um público tão absorto pelos enigmas da religião afrobrasileira quanto ansioso pelo profano deu o tom do que é viver a festa de Iemanjá no coração do Rio Vermelho. Odoyá!

Nara Couto

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. 

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