Entrevista: Bernardo Bauer

entrevista por Bruno Lisboa

Natural de Belo Horizonte, Bernardo Bauer é um multifacetado músico que além seguir em formato solo encontra tempo para dividir as suas atenções com a Pequeno Céu e a Moons, coletivo indie/folk liderado por André Travassos. Sua estreia foi a partir do EP “pelomenosum” onde Bauer já deixou claro as predileções sonoras que apostam num formato mais simples, minimalista e solitário em ode a contemporaneidade.

Lançado em 2019, “Pássaro–Cão” é um álbum conceitual onde o cantautor segue mantendo suas raízes, mas traz como novidade ao seu fazer musical uma série de colaboradores, que acabaram por influenciar diretamente o resultado final – entre eles, Luan Nobat, Mariana Cavanellas e Sara Não tem Nome.

Na entrevista abaixo, Bauer fala sobre o processo de criação de “Pássaro–Cão”, o conceito por trás do disco, as diferenças entre este trabalho e o anterior, as participações especiais, influências, o trabalho com Leonardo Marques (produtor do disco), a parceria com o selo Under Discos, o destrate ambiental de Brumadinho, o fato da música ser remédio para os tempos que vivemos e muito mais.

Como foi o processo de criação deste novo trabalho?
Foi super espontâneo, já havia algumas músicas pipocando na minha cabeça desde o lançamento do ‘pelomenosum’ (2017), e eu queria muito dar esse passo à frente, criar um disco mais coletivo, que envolvesse outras pessoas no processo.

“Pássaro-Cão” é um álbum conceitual que acaba por fazer ode aos nossos tempos. O cotidiano é de fato a força motriz do seu trabalho?
Pode-se dizer que sim. O cotidiano é o substrato principal das poesias que o disco carrega. Quando eu pego o instrumento pra compor uma canção eu sempre procuro falar das coisas que mais me tocam naquele momento exato. Então é natural que elas tratem do dia-a-dia. Eu não costumo muito criar personagens e imaginar histórias descoladas da minha realidade pra compor. Me sinto mais à vontade falando do que eu vivo de fato, então acho que esse ‘espírito do tempo’ acabou se tornando peça central do disco, porque a minha geração, que nasceu no fim dos anos 80, viu, em pouco tempo, a realidade ser completamente desfigurada e uma nova ideia de vida foi projetada nessas telas que hoje regem a nossa vida. Isso me afeta demais e é raro eu passar um dia sem pensar nisso.

Dois anos separam este novo trabalho de “pelomenosum”. Quais as diferenças mais substanciais existem entre ambos?
O ‘pelomenosum’ foi um mergulho interno, foi todo gravado num sítio em Santana do Riacho, onde eu fiquei completamente sozinho por 20 dias. Foi um passo importante pra eu desabafar o que me afligia na época e me posicionar como um artista só. Já o “Pássaro-Cão” representou essa abordagem mais coletiva. Quis trazer os músicos que tocam comigo nas outras bandas que participo pra criar uma estética um pouco menos íntima, já que no disco anterior eu não só gravei sozinho como fazia os shows dessa forma também. Trouxe gente pra dividir os vocais de algumas músicas e acho que isso fez uma diferença enorme no resultado final. O trabalho se tornou um pouco mais ‘pop’, mas bem menos previsível, eu acho. Agora, nesses primeiros shows do “Pássaro-Cão”, já sinto aquele calor da banda e tenho a certeza de que era nessa direção que eu queria caminhar. Não queria me tornar aquele músico solitário que divide o palco só com seus pedais de loop para sempre.

Luan Nobat e Sara Não tem Nome são alguns dos convidados especiais que comparecem neste seu segundo trabalho. Como se deu a aproximação e quais as contribuições eles trouxeram para o seu trabalho?
Poxa, o Nobat é um grande amigo que eu fiz num projeto que a gente teve junto, uma banda de um show só, que uniu músicas minhas, dele e da Mariana Cavanellas (que também participou do “Pássaro-Cão”). Naquele processo, em 2018, eu tinha acabado de criar uma música e quis muito cantar com eles. A gente acabou fazendo um arranjo de vozes que se tornou essencial na música (“Memórias – Uma Cidade Esburacada”). Aí na hora de gravar tive que chamar os dois pra cantar comigo, foi super legal trazer esse clima pro disco.

A Sara foi uma outra história, eu já era fã dela e quando criei a música “Coragem” achei que conversava com as coisas dela. Porque ela tem esse lance de falar coisas super pesadas de uma forma leve, uma ironia do próprio personagem que ela é e eu acho muito foda. E a música tem essa onda, de cantar com a maior leveza do mundo o medo dos comentários da internet, dos juros do cheque especial… Aí, por acaso, a conheci no inicinho desse ano, na casa de uma amiga. A gente passou a noite criando outras músicas e foi super divertido, chamei ela pra participar do disco e depois disso a gente já fez várias coisas juntos – e eu espero fazer mais.

Ao ouvir o disco percebe-se ecos de artistas como o Fleet Foxes, o Bon Iver e o Clube da Esquina. Seu fazer musical se aproxima deles? Quais são as suas referências?
Eu não sei dizer como é o fazer musical desses ídolos que você citou, mas sei dizer que todos os três me tocam muito e eu ouço muito. É impossível não influenciar no que eu crio, porque pra mim, quando eu faço algo que soa como Fleet Foxes, significa que eu estou fazendo algo que me toca. O mesmo eu diria sobre o Clube da Esquina, Bon Iver e tantos outros artistas. Eu também gosto muito de música caipira (Renato Teixeira, Almir Sater, Pena Branca e Xavantinho) e também ouço muito hip-hop. Então a sonoridade do disco acaba importando partes da estética de cada um desses artistas. Não acredito em originalidade absoluta, não me vejo como um artista totalmente original, mas eu tento fazer dessa mistura uma coisa nova. Mas eu diria que as principais influências do disco são dos próprios músicos que tocaram nele. O Guto (baterista do disco), o Henrique Cunha (guitarrista) ou o Felipe D’Angelo (tecladista) influenciam muito mais a mim como músico do que qualquer banda gringa que eu tenha ouvido muito.

Ao mesmo tempo em que desenvolve uma carreira solo você divide atenções com o pessoal do Moons e do Pequeno Céu. De alguma forma, o fato colaborar com outros artistas interfere no seu trabalho?
Vixe, acho que respondi essa pergunta na anterior. Eu acho que as maiores influências musicais vêm dos músicos que costumam tocar com a gente. O Pequeno Céu foi uma grande escola pra mim, a gente experimentava demais e nunca teve muito apego em repetir uma fórmula. É natural, quando a gente tem uma banda e toca junto sempre, que você pegue uns trejeitos de um e de outro de tempos em tempos, que perceba uma harmonia diferente e ela reapareça na sua memória anos depois. Mas já tem um tempo que o Pequeno Céu não toca, atualmente tenho tocado bem mais com o Moons, que é uma banda super ativa e caprichosa nos detalhes e timbres. A gente se encontra toda semana, religiosamente, pra ensaiar. Faz turnê, grava discos e toma cerveja juntos, não tem como não assumir que eles influenciam e interferem no meu trabalho. A diferença é que no trabalho solo eu tento usar a música pra amplificar meus desabafos, minha poesia. Eu sempre escrevi e sonhei em ter uma galera como essa do meu lado pra poder cantar, então, nesse sentido, eu só tenho a agradecer a companhia de cada um.

Leonardo Marques foi o produtor do disco. Como foi esta parceria?
O Leo é um gigante. Ele tinha que ser conhecido no mundo inteiro (risos). Super caprichoso, tira um som que eu não vejo ninguém no Brasil tirando. Tem essa onda vintage, de garimpar equipamentos, nada no estúdio dele é o mais caro ou o mais óbvio, e isso é legal demais. Além disso, é um grande amigo, um produtor que deixa a gente trabalhar numa boa, é muito raro ele chegar e dizer “tive uma ideia pra essa parte aqui, e se você fizesse isso ao invés daquilo”. Ele fica lá na dele, tranquilamente, ouve com cuidado, e normalmente os pitacos são no sentido de secar o excesso de informação. Ele gosta dessa onda minimalista, dos espaços pras coisas acontecerem, e isso ajuda a conter a ansiedade que muitas vezes toma conta do ambiente de gravação. Eu sou fã dele e fico feliz em fazer mais um trabalho junto com ele.

“Pássaro-Cão” foi lançado pelo selo Under Discos. Como se deu a parceria e qual a importância de ter o seu trabalho vinculado ao selo?
A parceria surgiu a convite do próprio Nobat, que é hoje o A&R do selo. É bom ter parceiros, é importante nos percebermos como parte de um movimento, e depois de muito murro em ponta de faca eu percebi que andar sozinho não me faz tão bem assim. O selo me ajuda a alcançar mais gente e a pensar em ações que façam sentido pra minha carreira. A parceria está só começando e eu espero que aconteçam muitas coisas ainda, mas é legal que o Nobat e o Barral estão sempre frequentando as feiras de música, entendendo o que as pessoas estão fazendo em outros lugares e pensando em estratégias pra levar o nosso trabalho adiante. Acho que faz diferença.

Você é de Brumadinho, cidade que recentemente foi devastada pela lama devido as ações criminosas da Vale. Como cidadão local qual foi o impacto que você sentiu? Isto de certa forma acabou por refletir no disco?
Na verdade eu moro no limite do município, o centro de Belo Horizonte é mais perto da minha casa do que o centro de Brumadinho, então minha vida inteira eu vivi mais perto da metrópole, é bom pontuar isso pra não parecer oportunista dizer que sou brumadinhense uma hora dessas. Mas a barragem que estourou é perto de onde eu moro, e quando aconteceu a tragédia criminosa eu estava trabalhando no Inhotim, pegando a estrada (que foi tomada pela lama) diariamente. O trem foi feio, cara. É ainda mais absurdo porque a mesma empresa tinha acabado de matar o Rio Doce dois anos antes. E em Brumadinho não só matou o Rio Paraopeba (que nasce perto de onde eu moro e eu frequentei a vida inteira) como matou centenas de funcionários da própria empresa. O sentimento na cidade era de tristeza profunda, mas também de muito ódio. É foda, porque é um inimigo sem face, não tem onde descontar e eu não vejo a lógica da mineração mudando nesse estado chamado Minas Gerais tão cedo. A gente se sente completamente impotente num momento desses.

Quanto ao disco, eu acho que não influenciou tanto porque ele já estava pronto naquele fatídico 25 de janeiro de 2019. Mas eu posso dizer que já fiz várias músicas pra essa mineração do córrego do feijão. É que perto da minha casa tem um mirante de onde dá pra ver a mineração comendo as montanhas, e eu moro aqui há 25 anos, a paisagem mudou muito, e eu escrevi a música “Nem Com Querosene Essa alma Acende”, que é a segunda faixa do “pelomenosum”, em “homenagem” a essa ação predatória. Na época, o que me chamava atenção eram as queimadas, sempre frequentes no inverno daqui – e é outro fruto ingrato da ação das mineradoras –, mas depois desse crime eu mudei a letra da música e agora ao invés de dizer “cerrado no inverno é bomba-relógio” eu digo “barragem de minério é bomba-relógio”. É uma forma pequena que encontrei de deixar essa memória viva, de levantar essa bandeira e de fazer algo mais que entretenimento da minha música. Eu acredito muito na arte como uma formal de registro histórico e quero regravar essa música com a nova letra.

Sua música soa, para mim, como antídoto aos tempos tempestuosos em que vivemos ao apostar em métricas silenciosos e introspectivos. A interioridade e autoconhecimento são capazes de reverter o caos em que estamos?
Não acho que vamos reverter o caos tão cedo. Mas acho importante reconhecermos ele, aprofundar e cutucar a ferida. É claro que a gente usa a arte pra projetar possibilidades também, mesmo que sejam apenas imaginárias ou distantes. Mas como eu disse antes, acho que o poder de registrar a história em forma de música ou poesia é algo importante, mesmo que de forma mínima. No Brasil a gente tem essa coisa de esquecer o passado e por isso repeti-lo em loop eterno. Eu acho que vai precisar de uma crise socioambiental ainda mais devastadora pro ser humano se perceber perecível como é. Espero que um dia o ciclo se quebre, enquanto isso, nos ferramos aqui, mas como dizia o avô da minha companheira, “só não seja um FDP”.

– Bruno Lisboa  é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.  A foto que abre o texto é de Julia Baumfeld  / Divulgação.

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