Conexão Latina: Usted Señalemelo (Argentina)

entrevista por Leonardo Vinhas 

Você conhece o cenário: banda jovem lança um primeiro disco bem recebido, passa por festivais, vira frisson na internet, faz um segundo disco mais ambicioso – e é reconhecida em sua ambição. Dali a ser saudada como “salvação do rock”, “a última banda que importa” e quejandos é menos que um pulo. Grosso modo, é essa a trajetória da banda argentina Usted Señalemelo (doravante tratada por “US”), trio de Mendoza que lançou dois álbuns, a estreia homônima (2015) e o sucessor, nada imaginativamente batizado de “II” (2017). Juan Saleg (voz e sintetizador), Lucca Beregui Petrich (bateria e programações) e Gabi Orozco (guitarra e piano elétrico) são jovens, bonitos, tocam bem e compõem melhor ainda. Nas entrevistas e nos palcos, mostram segurança, criatividade, profissionalismo e arrogância em doses parelhas – a receita tanto para o grande sucesso como para um naufrágio precoce.

Exatamente por isso é singular a oportunidade de falar com eles, e vê-los ao vivo, neste momento. A banda passou pela primeira vez pelo Brasil em novembro de 2018, tocando no festival No Ar Coquetol Molotov (Recife) e na casa de shows Breve (São Paulo). Comento com a tour manager Tuti Petrich (mãe de Lucca) que essa é uma rara chance de vê-los em um lugar pequeno. “Na Argentina e no Chile isso já não acontece mais”, me responde, entusiasmada, e uma apuração constata que isso é verdade. Seus clipes têm visualizações na casa dos seis dígitos (e o streaming do segundo álbum no Youtube passa de um milhão de usuários), já não tocam mais em clubes diminutos ou bares, e cada vez mais ocupam espaço de destaque na programação de festivais, seja no exterior (como o colombiano Estereo Picnic) ou em sua terra natal (tocaram no palco Garage do Cosquín Rock em 2018, e em 2019 assumirão o palco principal, junto a gente do naipe de El Mató a Un Policía Motorizado, Babasónicos e Los Espiritus).

A música da banda começou como um pop rock simples e bem tocado, e evoluiu para um pop grandioso e bem tocado, no qual o rock é o elemento central. As referências mais imediatas estão no rock argentino dos anos 80, especialmente Virus e (um tanto menos) Soda Stereo, filtradas pela ótica de quem ouviu também Tame Impala, hip hop, LCD Soundsystem e muitas outras coisas – mas nunca teve dúvidas quanto a soar pop. “Eles vão ser maiores que o El Mató”, me assegurou um produtor argentino. “O rock está vivo em Mendoza”, categorizou outro produtor, esse brasileiro. A Noisey latina lascou “clássico moderno”. Sempre dá certo receio quando essas hipérboles aparecem. Mas o Usted Señalemelo entrega de acordo – tanto quando sobe no palco como em disco. E “II” tem cacife suficiente para ter agregado convidados do naipe de Javier Casalla (Bajofondo), Chico Trujillo (um dos maiores nomes do pop chileno) e os conterrâneos La Skandalosa Tripulación.

Vê-los ao vivo na Breve – valente, porém pequena casa de shows da Zona Oeste paulistana – foi, de fato, uma experiência e tanto. Ensanduichados entre João Salazar e Terno-Rei, o US roubou a cena, tocando para um público de cerca de 60 pessoas como se estivessem em uma arena. A diferença na qualidade de seu som – tanto em aparelhagem como em execução – em relação aos seus companheiros de gig era gritante. Mais que isso: tomaram a noite para si, mesmo não sendo headliners, e conseguiram fazer chacoalharem os esqueletos do normalmente ensimesmado público indie. Foi um puta show. A idade e a experiência me trazem o senso de ridículo, por isso não vou dizer que “vi o futuro do rock” ali. Mas certamente vi uma grande banda em formação, e a tranquilidade e segurança com a qual manejavam esse crescimento me fez crer que ele só vai aumentar.

Dias antes, conversei com Lucca Petrich por telefone, nos intervalos de um ensaio da banda, poucos dias antes de embarcar para a diminuta turnê brasileira. Foi a primeira – e talvez seja a única – vez em que entrevistei um músico com menos de 25 anos que já tem mais de 10 anos de carreira. E das raras vezes que falei com um músico que fala com segurança sobre as qualidades de sua música sem que isso seja (ou soe como) bravata.

Pensem em um cidadão hipotético que não apenas nunca escutou Usted Señalemelo, mas também não conhece quase nada de rock argentino. Como você apresentaria a banda para esse cara?
Bom, o som do US, me parece, representa bastante nossa geração, esse milênio, as pessoas da nossa idade. Mas também representa certa melancolia que apela às pessoas mais velhas, que viveu a década de 80 e de 90 no rock. Me parece que para alguém que não escutou nada do rock nacional (argentino), eu diria que a banda é um resumo de tudo que foi a história do rock na Argentina com um pouco de modernidade e com um pouco de nossa cara própria, nossa identidade. Basicamente é rock, com um monte de outros estilos misturados, como o folclore do nosso país, o jazz, a eletrônica, o pop. É isso, algo bastante completo.

Quando a imprensa escreve sobre vocês, sempre citam as influências de Virus e Soda Stereo. Ainda assim, existem outras influências mais contemporâneas, como você disse, e não só da Argentina. O que vocês têm em comum com esses referentes, em minha opinião, é uma concisão e um senso pop que permitem que as canções sejam acessíveis sem serem banais. Concorda?
Pois é, como eu disse, acredito que existe muita gente que tende a ocupar o vazio que bandas como Virus, Soda, Los Abuelos de La Nada e outras deixaram. E nós somos o que as pessoas procuram para dizer: “Isso é como na época do Soda!”, ou “Isso é como na época do Virus”. E a verdade é que crescemos com essa música, mas elas não são nossas únicas influências. Escutávamos música o tempo todo, e hoje a globalização nos permite escutar músicas de outros países, com outros instrumentos e outros idiomas que nem conhecemos, e tentamos condimentar a essência do rock nacional – que temos como banda – com muitos objetos e questões que vão aparecendo por essa coisa que é a internet, e que nos permite sermos influenciados por um montão de coisas.

Vocês estão em ascensão, e com isso vêm os elogios às vezes exagerados, que colocam pressão sobre a banda e alimenta os vícios dos egos. Como vocês fazem para separar o hype do real reconhecimento pelo seu trabalho?
A verdade é que o crescimento da banda foi muito rápido mesmo. Desde que lançamos o primeiro disco, temos claro para nós que queremos fazer música e viver disso. Queremos levar nossa arte às pessoas. Vêm às comparações com outras bandas, como El Mató – que agora a pouco, em seu quinto disco, começou a se firmar em nível nacional e internacional. Nós, com nosso segundo disco, já chegamos no Brasil e fizemos uma turnê muito extensa pela América Latina nesse ano, e muitas plateias já nos conheciam. Isso é produto também dessa característica da internet que te falei, ela foi um fator muito importante para nós, porque as pessoas da nossa geração chegam à música pelo Spotify, pelo Youtube. Então, também foi uma conjunção de muitas coisas, não só da música. Nós, que somos tão jovens – estamos entre 22 e 23 anos – podemos chegar a essas pessoas de outra maneira, uma que bandas com integrantes de 35 ou 40 anos não conseguem, porque não estão no mesmo movimento que nós, pelo simples fato de que são de outra geração. E nós mesmos temos bandas amigas que são de gente mais nova e que nos ensinam muitas coisas. Estamos envelhecendo, e estamos aprendendo enquanto vamos crescendo. Então você vai naturalizando isso.

No álbum “II”, os arranjos ficaram mais ambiciosos, mais ricos, houve muitos convidados… Já tinham em mente que o disco seria assim, quando começaram a compor?
Sim, desde o começo sabíamos que queríamos aumentar a instrumentação. Muitos sintetizadores, caixas de ritmos, pessoas que tocassem outros instrumentos, e aí havia quem fizesse um arranjo de flauta, de trompete, de trombone… Tivemos a oportunidade de colocar um quarteto de cordas, de chamar Javi Casallas, e por sorte todos os que foram chamados a vir se animaram e ficou, como você disse, um disco super ambicioso. Mas não porque queríamos que fosse assim, mas porque queríamos espremer mais. O primeiro disco teve uma instrumentação muito limitada, de baixo, guitarra e bateria. No segundo, nossa cabeça já tinha mudado muito e queríamos fazer outras coisas. E bem, no terceiro certamente teremos muitíssimo mais, nos arranjos, nos instrumentos. Gostamos de brincar com novas sonoridades.

Quem ficou responsável por comandar a gravação do “II” foi você. Como começou tua relação com o estúdio, essa vontade de estar atrás da mesa de som?
O estúdio Fader, onde fizemos os dois discos, é do meu pai (Carli Bergueri). Eu e meu irmão (Bruno Begueri Petrich, da banda Perras On The Beach) crescemos ali, rodeados por mesas, microfones, instrumentos. O primeiro disco fizemos com meu pai, porque não tínhamos experiência, éramos muito amadores no sentido que nunca havíamos entrado ali como banda para gravar um disco. No segundo já tivemos um crescimento, aprendemos muitas coisas, e ao mesmo tempo meu pai foi para os EUA. Fiquei com o estúdio para mim, gravávamos de noite, quando queríamos, experimentamos muito, e por isso que foi possível ter uma identidade tão diferente do primeiro disco. E eu adoro poder gravar, tocar, mixar, todos os três juntos, e assim vamos aprendendo mais.

Dá para notar que a música de vocês têm maturidade. Tiveram outras bandas antes de formar a US?
Não. Essa é a primeira banda que tivemos, e provavelmente será a única que teremos (risos). Quando eu era criança eu tinha uma banda, mas eu tinha 7 ou 8 anos, não se compara ao nível de profissionalismo que temos com o US. É o único projeto no qual estamos desde garotos e que sentimos ser próprio, nos sentimos livres para fazer o que queremos e encontramos nossa forma de trabalhar. Militamos muito no underground de Mendoza, tocamos muito, mas sempre com Usted Señalemelo. Obviamente, há dez anos, eu tinha doze anos, e não era a mesma coisa que agora. Mas sempre estivemos nos festivais de Mendoza, tocando com bandas daqui, viajando, e aí fomos crescendo para essa exposição em nível nacional e internacional.

Vocês são de uma geração que começou a ir a shows já após a tragédia de Cromañon (ocorrida em dezembro de 2004, quando um incêndio durante um show da banda Callejeros deixou 194 mortos e centenas de feridos em Buenos Aires). Vários lugares fecharam suas portas em consequência, e já havia menos lugares para bandas novas tocarem. Como é para vocês viver sob a sombra dessa tragédia?
Bah, quando aconteceu esse lance de Cromañon, foi um golpe! Eu era bem pequeno, mas lembro que meu pai estava bem preocupado, porque eu já estava na música. Ele tinha se dado conta que havia muitos shows em que aconteciam coisas, em que não havia controle da situação. Não havia ocorrido nenhuma tragédia até então, mas ele acreditava, e eu também acredito, que serviu para mudar algumas coisas que precisavam ser mudadas. Claro, teve o lado pesado, que foi o fechamento de muitos lugares, ficou muito mais complicado arrumar um lugar para tocar. Por um lado, isso é bom, porque quem sai para tocar quer fazer isso em um lugar seguro, porém isso complicou porque as opções diminuíram mesmo. Aqui em Mendoza, por exemplo, não tem muitos lugares para tocar, só dois ou três, e são sempre os mesmos, os acertos são ruins… Aí isso levou a gente a criar nossas próprias alternativas: tocar em casa, em festas de amigos, coisas assim, e não em lugares que eram específicos para isso, como o Niceto.

Minha última pergunta é sobre algo que envolve essa questão geracional que você já mencionou algumas vezes. Um amigo veterano sempre me diz que “hoje as bandas competem com Netflix, com as redes sociais e até com a vontade de ficar em casa”. Está de acordo? E o que oferece um show do Usted Señalemelo para fazer esse povo preguiçoso sair de suas casas?
Isso é bastante real. É difícil fazer com que as pessoas saiam de suas casas e paguem uma entrada para ver alguém tocar. Somos bem conscientes disso. Então acho que o único que temos para dizer sobre isso é que Netflix e as redes sociais estarão aí por toda a vida, e que nós, por exemplo, só estivemos no Brasil dessa vez. Esperamos voltar, mas não sabemos quando vamos voltar. Queremos mostrar o que está passando em nossa cena em Mendoza e também em nosso país em nível nacional. Mostrar isso em um país como o Brasil, que tem uma cultura muito rica no que tange ao artístico, e estamos muito contentes de poder aportar um pouco para a cena daí e conhecer artistas daí. Também queremos ir pelo idioma, para ajudar a terminar com esse lamentável preconceito que está no mundo todo hoje. As pessoas escutam músicas em inglês, mas um brasileiro não escuta música em castelhano e talvez um argentino não escute tanta música em português. Queremos ajudar a derrubar essa barreira, e tomara que nossa música colabore para isso.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. É o responsável pela produção e curadoria dos álbuns “Um Grito Que Se Espalha – Tributo a Walter Franco”, “Faixa Seis” e “Brasil Tambien És Latino”  (artistas latinos gravando canções brasileiras), “Ainda Há Coração” (em tributo a Alceu Valença), “Caleidoscópio” (em homenagem aos Paralamas do Sucesso) e “Somos Todos Latinos” (com 16 artistas independentes brasileiros regravando temas pop e rock dos países de idioma espanhol).

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